quarta-feira, setembro 28, 2005

Velando armas


Há uma batalha que se avizinha e estou velando armas. Não sei se a vida é essa batalha. Não sei se viver é lutar. Sei apenas que não fui sagrado cavaleiro, embora uns embates aqui e ali não deixaram de ocorrer. E se eu morresse na batalha da vida, morreria então sem honra e sem glória.
A impressão que me resta é essa. Passamos rapidamente pela vida e não temos tempo de fazer nada. Quantas não foram as vezes que percebi que tudo o que quero é sempre outra coisa. Levantar toda manhã e matar um leão por dia, para sobreviver. Andar a gastar todo o tempo útil de cada dia a conseguir dinheiro, exatamente essa coisa que não temos.
E a cidade ergue-se à nossa revelia, ergue-se silenciosa, e muitas vezes nem fazendo o devido silêncio, e é cada vez mais o lugar onde a gente não quer estar. Todo mundo não quer ficar e vai ficando, por não fazer as escolhas ou, se as tiver feito, fez aquelas com as quais menos se identifica.
E tenho a nítida impressão de que viver é pouco, só isso é pouco. Deve haver algo muito mais importante que isso, mas nós não sabemos o que é. Inventamos o que é viver.
Quando saio a andar pelas ruas, quando entro e saio do metrô, as pessoas vêm e vão e seus rostos não têm expressão. Cada um tem sua história e fico imaginando qual seja. Cada um existe a despeito do outro ao seu lado, existe por mera teimosia e teima pela sobrevivência. Ninguém presta atenção ao fato de que existe.
Todos os valores que tenho não fui eu que escolhi, mas escolheram por mim e para mim, numa lavagem cerebral cuidadosa que passa sempre despercebida. Mídia. Instituições. Família. Tradição. Religião. Nossas muletas ideológicas. O que tenho que escolher? É como se perguntássemos sempre à mamãe realidade o que é bom de se comer e o que faz bem para a tosse. Então a realidade manda a gente não esquecer o casaco que está muito frio lá fora. E a realidade não é mãe, é só mais uma puta que nos pariu. Somos filhos da realidade. Todos nós.
E o que foi feito do amor que tive? Sempre foi insuficiente para manter-me vivos os sonhos. Que sonhos? Nem sei mais. Eu sonhei que era outra coisa a vida e que a realidade era uma vasta planície a ser explorada, calma e tranqüilamente. Mas esqueci de ser. E hoje eu preciso ser, mais do que ter, eu preciso ser. Além de ser só uma coisa faz falta: saber. Então eu preciso, além de tudo, saber que sou.
E para saber elegi buscar o pensamento dos cientistas, dos filósofos e dos poetas, nessa ordem, de preferência, ou a depender do tema numa outra ordem. Só o pensamento dessas três categorias de pessoas me interessa. Os cientistas procuram colocar suas perguntas sobre o que vêem no mundo, os filósofos sobre o que não vêem e os poetas sobre o que nem está no mundo. Desse modo, o ato de perguntar está plenamente satisfeito. E garantido o caráter racional, supra-racional e irracional do conhecimento, quer dizer, a razão, o além da razão e a não-razão. Então é aqui que ouso afirmar, de um outro modo, o que costumo afirmar tantas vezes, o amor não é racional. Nada tem a ver com a razão, a verdade ou a realidade. O amor não é para ser pensado, muito menos sentido. O amor é para ser entranhado na carne, para nos fazer pensar e sentir de modo muito peculiar.
Acontece que estou vivo. E a vida não tem limites assim tão determinados. Acontece também que sei que penso que estou vivo. E o entendimento também não funciona como uma fórmula matemática. E = mc².
Sei apenas que está frio lá fora e aqui dentro do peito há uma inconfundível tristeza feita de silêncio e perplexidade. E a cidade continua a erguer-se e as pessoas sem rosto não param de ir a lugar nenhum. Milhões de janelas que sempre soube me espreitarem e as janelas, mesmo abertas, têm muito a esconder. Esta aqui é uma janela que se abre para esconder muitas coisas. Ou para espreitar milhões de janelas que me espreitam, num jogo insano cujo resultado inesperado pode ser o encontro. O encontro de si mesmo. Ou o encontro do outro. Porque por ora o que vivemos a todo tempo é somente o desencontro. E ninguém me vê quando estou na multidão. Pelo contrário, alguém me vê quando estou sozinho à janela.
Não sei ao certo o que quero fazer aqui. Prometo, porém mostrar-me quando tiver necessidade de me esconder. E esconder-me, quando tiver necessidade de me mostrar. Ou se quiser, não prometo coisa alguma.
Não sei também o que quero dizer aqui. Talvez tudo, mas preferencialmente nada. Dizer somente.
Talvez seja só mais um grito imenso no escuro.
Talvez seja só o romper do enorme silêncio.
Talvez seja só a busca do vazio de si mesmo.
Que é quando somos plenos.
E quando nos sagramos cavaleiros.
Quando há dentro o vazio e fora a batalha.
E empunhar a espada seja não responder a nenhuma pergunta.
Porque todas as perguntas já deverão ter sido feitas.
E todas as respostas devidamente esquecidas.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Walking and Fighting


Viemos a essa vida para andar e lutar. E mesmo antes de vir lutamos para vir e gente que possibilitou a nossa vinda, lutou também, lutou antes de nós. A luta está presente na natureza e provê nossa sobrevivência. Andamos atrás de vida e das condições que a mantêm, andamos atrás da caça e da coleta do alimento que nos manteve vivos e evoluindo. Mantemos nossa espécie não sem essa capacidade de luta, muito embora essa luta hoje adquira significados não assim tão explícitos como eram outrora. Somos devoradores da natureza, comedores de carne e devastamos a cobertura vegetal, a fecundidade e fertilidade da Terra. Não é um discurso ecológico, antes disso, é um discurso sobre a nossa vocação para dominar a natureza, que uns acreditam dada por Deus, enquanto outros não acreditam em outra coisa a não ser nos acidentes da matéria ou na dança da precisão do acaso.
Tanto faz. Estamos aqui e temos fome, temos sede e frio, temos medo, queremos reproduzir a espécie, temos a inquietação quase que insolúveil que pariu toda a filosofia que pariu todas as ciências. E que pariu o homem que engravidou do mundo em que vive e o pariu tal como ele é e deseja que seja outra coisa que não isso que fez. Puta que o pariu! A Mãe Terra é a puta que nos pariu e nos abandonou ao Tempo que nos devora. Somos órfãos de pai e mãe na Eternidade, seres únicos capazes de entrar em confronto com a própria subjetividade, mas incapazes de explicar ou entender o absurdo de cada pergunta que aniquila sua própria resposta. Seres únicos capazes de articulação da palavra, essa mesma palavra que esconde a verdade.
E a verdade é que tenho fome, tenho sede e sono, tenho frio e tenho medo e quero reproduzir minha inquietação pela eternidade afora. A verdade é que tenho o desejo de descobrir se há na morte a plenitude da vida.
A verdade é que sou repleto de palavras que me escondem a verdade. Uso máscaras e esqueci o meu rosto refletido nas águas calmas e tranquilas do último lago em que fui matar a minha sede. E ainda tenho sede, ainda tenho fome, ainda tenho frio e medo e necessidade de me reproduzir.
Não sei se reproduzir a fortuna de não saber as respostas ou a desgraça de fazer as perguntas.
Reproduzir a subjetividade da palavra que esconde a verdade. E da verdade que seja capaz de me esconder a vida.
Agora o jogo começou: aqui estão as minhas palavras!