quarta-feira, novembro 14, 2007

Ainda a Razão e a Emoção

Vou voltar para casa. Toda a vida se resume em voltar para casa, a casa que me resta tão diferente de tudo o que um dia foi casa. Minha casa das ilusões, de fingir que tudo está tão bem com o que se tem. De me esforçar para não desabar a frágil estrutura que não sei para que lado vai, se da reconstrução ou da ruína.
O futuro me olha de longe, indiferente, sei que seus planos não me incluem, não consideram minha existência. E sei que é tarde para tanta coisa. Só não sei o que é que se há por fazer que não seja ainda tarde. Sei bastante do tempo perdido, que não se busca mais, porque não vale a pena. Nem tanto.
Eu me lembro de mim e esse tempo de que me lembro é sempre outrora. Às vezes nem sei se lembro, nem sei mais se posso lembrar se fui feliz ou não. Algumas alegrias pelo caminho, isso sim. Alguns muito bons momentos, talvez. Alegrias que nunca me prometeram ser eternas e nem nunca firmaram o compromisso de tornarem-se felicidade. Felicidade? Na metafísica dos sentimentos tornados possíveis pela tola e vã razão, de longe o mais obscuro. As alegrias, pelo menos, talvez tenham sido sinceras.
Terá havido amores. Por certo, algo perto disso que se pode chamar amor. Ou paixão talvez. E entre esta e aquele o enorme abismo onde ensaiamos nossos tímidos passos de viver. Viver! Essa aventura impossível, e incabível, insuportável. Por vezes torturante. Esse permanente desejo de ser mais do que se pode ou do que se consegue, sempre outra coisa que não a coisa que somos.
Se ainda há de permanecer qualquer coisa que possa chamar de paixão, o amor tornou-se mais abstrato e inatingível. Vou me apaixonar por muita coisa ainda, por muitas pessoas, por algumas mulheres ou por uma mulher em especial. Mas vou desistir logo, dada a impossibilidade de isso poder ser amor. Inventaram de “desinventar” o amor. E não inventam de reinventar.
Certo de que ninguém mais daqui em diante vai me amar, tudo se tornou de repente um sonho inútil. Vou amar à toa, inutilmente e sempre em segredo. Jogaram a água do banho com o bebê dentro. Varreram do mundo dos nossos sentimentos logo o maior deles, o mais genuíno. E construímos nossos castelos de emoções espúrias. Num mundo tão prático toda emoção é bastarda.
Hoje o amor é visto como possibilidade. E como possibilidade o amor é contingente. É algo a se considerar, a escolher. Isso mesmo. Damos sempre a impressão (e temos essa pretensão) de que escolhemos em matéria de amor. Havia um tempo em que era doce a ilusão de que o amor é que nos escolhia. Mas tem coisa pior do que isso. O amor é também objeto de conhecimento e, quanto a isso, assolado pelas mais severas críticas, sejam intelectuais, culturais e até mesmo filosóficas. Eu diria que até críticas científicas. E a verdade é que ninguém mais é capaz de sentir amor, ou de se entregar a esse sentimento.
Se há ainda alguém que resista a isso, é logo taxado de romântico, como se ser romântico fosse ser portador de uma doença abominável, de um defeito grave, ou ainda ser ultrapassado. O amor está fora de moda. Eu sou fora de moda e vez por outra sou acusado de ser romântico. Já me xingam de poeta, logo haverão de me chamar parnasiano.
Sempre que puder vou reavivar a polêmica dicotomia posta arbitrariamente entre razão e emoção. Ainda que não considere um par de opostos, pois não se anulam de forma alguma, e ainda que muitas vezes não se complementam, pois o excesso de uma sempre há de atrapalhar outra, diria que razão e emoção convivem perfeitamente. Mas afirmo que a emoção não é racional e a razão não é emocional. A não ser que isso seja extremamente necessário.
Tudo isso para dizer que parece que vou desistir de amar. Cansado de coisas inúteis nessa vida, vou tentar arranjar algo mais proveitosos para fazer. Então, desisto. E muito a contragosto.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Não me quer sair o poema

Poema que não me quer sair poema, prosa que se insinua e me põe a andar na rua quando estou aqui dentro, preso, aqui dentro, com tudo preso aqui dentro de mim que ninguém ouve ou sabe, pouco importa dizer, ser ouvido e sabido, que o que dói não é o silêncio, mas sim o desperdício de palavras soltas ao vento. Que me custam o preço do sangue que jorra emoção pura, indescritível e indizível, que eu tento mesmo assim dizer, mesmo sem saber por quê. Ninguém para ouvir.
Não é estar só o que me mata aos poucos, mas é estar triste e não ter recurso para transpor essa tristeza sempre presente, estar triste e esquecer que há alegrias por toda parte, porque a parte que me cabe não mais me toca e de longe nada mais me provoca. E o que evoca esse vazio além de ser só o vazio é esvaziar-me tanto de tanta coisa que nem tenho. Eu me mantenho calmo e atento, eu tento ter tanto dessa força que não tenho, que me pensam ter exatamente quando mais preciso e não tenho. Ninguém para saber.
E você nem sequer me devora essa palavras, faminta e voraz como eu queria, não se alimenta do que sei que sei sentir. E me vomita as suas e procuro em seus despojos alguma coisa do pouco de tanta coisa que pode ser minha. E não encontro nada na digestão de meus pensamentos mal digeridos em sua consciência. Há esse grito, ainda esse sufoco, esse estar um tanto louco e mais um pouco do que consciente de que é tênue a fronteira entre a loucura e a lucidez. Talvez uma ou outra, agora, uma ou outra ainda ontem, uma ou outra quem sabe amanhã, quem sabe por muito tempo ainda, quem sabe para sempre. Ninguém para entender.
E ter que me pintar de todas as cores para não me verem incolor, me valer de todos os sabores para não me terem insípido, me adornar de cheiros para não estar inodoro. Todas essas máscaras, essas pequenas farsas, esse desconversar sempre oportuno, ter que disfarçar o medo e a angústia, esconder essa lágrima e a outra, a anterior e a próxima, a imprevisível e a incontrolável. Revestir-me da mais bela e forte armadura, a esconder-me um eu dourado por dentro e férreo por fora. Eu esse mistério insolúvel, essa trama desfeita mal costurada, essa história inacabada, sempre por se fazer, sabe-se lá o que fazer. Eu um outro que não esse, esse que podem ver a esconder o que sou. Ninguém para perceber.
Mais uma madrugada e meus fantasmas, companhia mais certa da mais certa solidão, meus pensamentos e lembranças, isentos de qualquer esperança ou de qualquer outra coisa tão tola que nos embala o viver, todo instante tão igual a provar-me que dura muito o que não queremos e que é tão efêmero tudo de que precisamos. O tempo é esse temível monstro, protagonista de todos os pesadelos, receptáculo de todos os medos, de toda a angústia, depósito de todas as minhas horas vazias, o tempo que desperdiço, o tempo que me devora, e me torna nada de nada de nada. Essa sensação de estar preso, isolado, náufrago em cada segundo que passa incessante nessa ilha que não se visita, que não se conhece a localização. Meu cadáver que sempre vem dar na praia. Ninguém para resgatar.
Todas essas janelas e cada um de nós sem asas, ou esquecidos da capacidade de voar, com medo das alturas, tanto chão para rastejar, tanto por indagar, o mundo das coisas e o mundo dos significados das coisas, as perguntas sem respostas e as respostas sem perguntas, o medo de saber, os conceitos e os preconceitos, nossa mediocridade humana, nossa pretensão de centro, de riqueza, de domínio, nossa pretensão de razão e motivo de alguma criação, enfim, nossa pretensão de que a verdade seja algo que bate com nossas representações, ou nossas quimeras, nossas divagações, nossas mais tolas ilusões. Tanto mistério lá fora, muito mais mistério aqui dentro. Ninguém capaz de desvendar.
E agora essa vontade de ter ficado calado, não ter revelado tanto do que se sente, tão à toa, e impunemente, e assim tão inutilmente. Ao meu redor só olhares estupefatos, e atônitos ouvidos de quem não pode e nem quer entender nada, de quem teme aquele olhar para dentro de si mesmo, essa apatia da vida e esse medo da morte, fazendo-nos aceitar mentiras que nós próprios todo dia construímos com tanto desvelo, e com tanto empenho. Melhor que essa melancolia, muito melhor mesmo, é todo o silêncio possível. Sabemos tudo de nós mesmos e esquecemos, não queremos saber, lembrar, pensar. E ninguém mais para nos revelar.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Ainda a saudade

Em alguns momentos, todas as mulheres são Ela. E o são no que têm de comum a todas as mulheres, as quais eu sempre olho sem evitar me lembrar dela. E ao mesmo tempo não são, porque ela é uma mulher entre tantas, uma mulher entre todas.
A distância e a saudade, a impressão quase certa de que nada será como antes, tudo isso sendo carregado de um lado para outro, como uma bagagem que não se escolheu levar. Toda a história em seus mínimos detalhes repassada a cada instante na mente, como se isso fosse refazer a história ou dar-lhe outros contornos, eliminar as contingências, evitar as vicissitudes, para que tudo acontecesse sempre da melhor maneira que se possa querer.
Mais uma vez a caminho da universidade, depois de volta à estação do metrô, a presença dessa mulher ou de seu fantasma, esse tudo que aqui ficou e que não sei onde ponho e com o que não sei o que faço.
Se em tudo procuro dela me afastar, de um modo ou de outro tudo dela me aproxima. Na ausência dela há um ranço de presença, um rastro que indica que não levou tudo. Não consigo esvaziar-me, não consigo simplesmente abstrair qualquer lembrança, não me entrego ao esquecimento.
Eu me vejo ali naqueles lugares todos, como um tolo contemplando com incontida emoção tudo que não terei de volta. Tomo suas mãos a caminho do metrô. Outra hora estou sentado numa mesa de bar perto dela com um assunto qualquer, só para ter levado mais perto meu olhar de seus lábios, dos seus olhos e cabelos, do contorno dos seios. Para poder olhar disfarçadamente seu corpo quando se vai e quando volta dali a uns instantes. Para estar bem perto de seu sorriso, ouvir tudo o que diz mesmo que fosse em sussurros.
Mas ainda ontem refazia por outros motivos esse caminho. E à noite parece que as lembranças são mais vorazes em fazer doer em nós tudo de que sentimos falta.
Então eu me canso. Canso de tudo tão fácil demais e demoro, no entanto, para perceber esse cansaço. Tanto, que quando percebo, ele é extremo. Canso-me de olhar tudo em volta e tudo me fazer lembrar dela, ainda que não faça muita questão de esquecer, o que eu não queria mesmo era lembrar dessa forma, como uma falta que me faz, como ausência que me deixa incompleto, como impossibilidade que não me deixa viver sentindo-me inteiro.
O tormento, para tentar esquecer, é ficar repassando cada cena dessa história, o que excita a memória e provoca o efeito contrário do esquecimento. E é ainda mais do que simples lembrança, é o desejo de que esses momentos todos nunca tivessem acabado.
Não sei mais o que dizer a mim mesmo disso tudo que me atormenta. Sei apenas sentir-me atormentado pela grande possibilidade de ter que levar a vida a partir daqui sozinho, que é mais econômico e saudável, economiza muito de nossas emoções baratas que gastamos à toa e nos livra de estarmos doentes de sentimento, amor, um mal que parece não ter cura.
Tudo isso me leva a uma triste conclusão: sinto menos falta de mulher do que sinto dela.
Agora mais um prazo para uma dissertação de mestrado. Estou às voltas com minhas tão malfeitas leituras e sem saber do que quero falar. Filosofia, onde é que eu fui me meter? Epistemologia e subjetividade. Alguma coisa que faça uma ligação entre filosofia e literatura, o mundo do texto, os contos de Cortazar, os romances de Umberto Eco, as pinturas de Van Gogh. Mas o que eu quero saber, o que eu quero entender? Quero tentar entender como é que o artista cria e, conseqüentemente, como e por que cria. É uma boa pergunta. Mas por onde começar. Acho que me assusta o titulo de mestre. Sempre soube viver muito bem os bastidores de todos os meus talentos. Algum bloqueio me impede de colocar todos eles em cena.
Escrever algo que muita gente goste de ler. Esse é o sonho. Sei que é isso que eu sempre quis fazer, ainda que não soubesse ou demorasse a descobrir. Os livros sempre estiveram a minha volta, como o maior sinal no qual bastaria ter prestado um pouco mais de atenção.
Paciência! Antes tarde do que nunca.
Agora cuido do meu caldeirão de emoções baratas, cozinhadas em banho-maria.
Sou assim, parece que nunca quis ser outro. E pronto!

terça-feira, outubro 30, 2007

Seis mundos possíveis ideais

Eu me “desapaixonei” de você. É simples assim. A gente pega aquele monte de paixão e acua num canto qualquer do peito, põe de castigo, não deixa mais ir brincar na rua por um tempo indeterminado. Essa paixão acuada e de castigo, encerrada lá naquele canto não pode mais ser pensada. Não se pensa nela de jeito nenhum. Não é fácil. Porque tudo em volta vai fazer você lembrar, tudo em volta vai conspirar a favor da menor reminiscência. Então você tem que ser decidido em não mais pensar. Você tem que se tornar um especialista em esquecimento. E tem que fazer de conta que tudo de tão bom e belo que foi trazido por essa paixão não é assim tão importante. Tem que achar coisas mais importantes nas quais pensar, nas quais dedicar seu tempo. Por exemplo, aprender sânscrito. É difícil pra caramba, mas tentando, você vai esquecer qualquer paixão. Quer dizer, você vai se sentir tão incompetente, que vai achar que nem para se apaixonar você presta. Pode ser outra língua: russo, gaélico, hebraico, árabe, mandarim. Não vale inglês, francês ou espanhol, talvez nem italiano, alemão, porque vai que você aprende e aí vai ficar dizendo por aí “eu te amo” em qualquer uma dessas línguas. Se não der certo, tente decifrar hieróglifos, sem ajuda.
Mas tem essa coisa das coisas levando você às lembranças. Isso é complicado. O jeito é você tratar isso como uma história, um verdadeiro romance ou uma boa novela e excluir-se como personagem. A história é linda, é verdade, mas aquele que lá está fazendo e dizendo todas aquelas coisas, aquele que está sentindo todas essas coisas tão lindas e boas, aquele não é você. Definitivamente não é você. Não pode ser você. Não deve ser você. Você não. Pronto. Você fora da história já é bem um meio caminho andado.
Tem mais um problema. São as pessoas apaixonadas a sua volta. Vai ter que lidar com isso, e vai ter que lidar bem. Os casais que andam de mãos dadas, que vivem se bicando aos beijos, abraçadinhos em tantos momentos, com aqueles olhares e tudo o mais. Não preste atenção por mais de um minuto nos amassos alheios, que é uma possibilidade muito grande de recaída. Faça de conta que você é um tipo de representante superior da espécie humana e paira acima dessas vicissitudes, digamos, emocionais, sentimentais. Isso é um mero desperdício de energia e você poupa suas energias para coisas mais elevadas, mais prazerosas e gratificantes. Não seja um reles ser humano mortal e passional, não, você é mais.
Ocupe-se de algo mais proveitoso. Como por exemplo mudar todas as concepções de mundo que você tem e mesmo as que andam por aí aos borbotões. Porque visões de mundo há por aí de cambulhada. Use toda sua imaginação em coisas muito mais úteis e questões mais edificantes, do que essa coisa de gosto dela e ela não gosta de mim, ela gosta de mim mas eu não gosto dela, eu queria encontrar alguém, não ouse sentir medo de ficar sozinho. Ficar sozinho é bom, é muito bom. Não passe suas valiosas horas de vida achando que você precisa encontrar alguém. Sabe quem você precisa encontrar? Aquele que lhe aparece no espelho do banheiro. Então, ocupe seu tempo em imaginar mundos possíveis ideais, mundos que certamente são melhores do que este. Muito melhores.
Nunca se atreva a se sentir sozinho, pense no silêncio e no sossego, poder espremer a pasta de dente no meio, deixar cuecas jogadas pelo quarto, toalha de banho no espaldar da cadeira, louça suja em cima da pia, levantar e não arrumar a cama, levantar num fim de semana e ir dormir de novo. Ouvir a música que você quer e cantar junto sem ninguém dizer que você desafina ou que errou a letra. E poder pensar sobre o que vai fazer depois de fazer nada, mais nada e depois disso, descansar de ter tanto o que fazer, porque até fazer nada às vezes cansa. E, afinal de contas, quem pode provar que dormir ou tirar um cochilo na poltrona não é fazer alguma coisa? Ninguém vai lhe perguntar aonde vai, onde foi e com quem, o que fez ou deixou de fazer. Pode ir a padaria com a roupa que usou para dormir, ninguém lá fora sabe que dormiu com ela.
Não desista de tentar imaginar aqueles mundos possíveis ideais. Mas, antes disso, é preciso livrar-se de algumas palavras fictícias, que são todas aquelas que só servem para nos enfeitar as fantasias ou alienar-nos da torturante realidade. Esta que nós temos tanto medo de encarar. A realidade crua e cruenta. Diria até que é cruel, para continuar no trocadilho proposicional. Vamos tentar uma pequena lista: amor, paixão, compaixão, resignação, esperança, fé, caridade, bondade, fraternidade. E por aí vai. Esse é só o começo da minha lista, façam a sua. As palavras, afinal, servem apenas para nos afastar da verdade. Aliás, verdade, uma outra palavra fictícia. Diria então que as palavras só servem para nos afastar da realidade, do que é real. O que é real? Que nascemos, vivemos e morremos. E sofremos tanto por tudo isso. Tenho dúvidas de que a palavra sofrimento seja fictícia. Acho até que é uma palavra curinga, que pode ser real e fictícia. Não vou fazer aqui uma lista das palavras curingas. Façam vocês a sua própria lista, memorizem e nunca esqueçam dela. É bom acrescentar coisas novas.
Não saber porque nasceu, viver e procurar em vão um sentido para isso, e não conseguir negar que vai morrer, embora não se pense muito nisso, e nem se fale, é tudo o que nos afasta do real e nos faz criar essas ficções para atenuar o nosso medo da morte, a “angústia de quem vive”. Angústia, aliás, uma outra grande palavra curinga. Assim como solidão e tristeza. Mas eu tinha jurado que não faria uma lista.
Mundo possível ideal número um: deus existe e criou tudo quanto existe para nosso bem e conforto, o dia em que percebermos isso seremos muito mais felizes. Soframos cá na terra, há um céu que nos aguarda, no qual seremos recompensados por tudo que aqui passamos. Recompensados eternamente. Por isso é que temos o Bem introjetado em nossos corações. Nos desviamos, mas há a possibilidade de sermos perdoados, bastando para isso o sincero arrependimento de todas as nossas faltas. E bastando que saibamos também perdoar. E tudo é divino e maravilhoso. Tudo tem um propósito que precisamos compreender nesse grande plano divino.
Mundo possível ideal número dois: o amor existe e sua conseqüência maior, o seu fim (no sentido de finalidade) é a felicidade, que também existe. Parece difícil, mas qualquer um pode alcançar a felicidade. Há pessoas felizes para onde quer que eu olhe, por todo o lado o que mais tem são pessoas extremamente satisfeitas. Mas há lugares no mundo em que falta o amor e, conseqüentemente, a felicidade. Felizmente, há também pessoas que são capazes, são fortes o bastante para isso, de levar o amor onde ele falta e tudo fica bem.
Mundo possível ideal número três: existe um estado de natureza, tão sonhado pelos filósofos do XVII-XVIII, pelo Iluminismo-Humanismo. Sim, o homem é bom por natureza, mas já em sociedade... A sociedade é que corrompe o homem. Tendo aceitado o fato de que existe um estado de natureza, basta almejar atingi-lo (ir até ele ou a ele voltar, vai saber), e a humanidade será enfim tudo de bom. Cada ser existente vai usar só aquilo de que precisa, nada além disso. A natureza vai ser preservada, com ela a humanidade. Harmonia nem será uma palavra curinga, será pura realidade. Harmonia de tudo com tudo o mais, de cada um com todos e de todos com cada um. Um verdadeiro paraíso materializado e tornado possível aqui e agora, nessa nossa tão palpável vida. Descobrir-se-á que a guerra é um grande engano, não mais se matará por motivo algum, todos os estados resolverão suas “disputas” ou na discussão pacífica ou, em último caso, por sorteio. Ou ainda em jogos. Jogar-se-ão jogos para dirimir as questões. Só que vencedores e vencidos ainda assim haverão de confraternizar como iguais, como irmãos. Aliás, descobrir-se-á que somos filhos de um mesmo pai criador, portanto, irmãos. Todos os povos assim se tratarão.
Mundo possível ideal número quatro: na seqüência do estado de natureza, não haverá posse e nem propriedade. E nem haverá riqueza, porque a riqueza só tem sua razão de ser sendo o oposto da miséria. Como não haverá miséria, não vai haver porque existir riqueza. Todos serão iguais e terão somente aquilo que necessitam para viver e viver bem. Se ocorrer de alguém não ter esse mínimo necessário, deverá ser por descuido ou acidente, então deverá haver a partilha. Uns ajudarão aos outros e assim todos ficarão bem. Não haverá nesse caso má distribuição desses bens mínimos necessários para se viver. Aliás, não haverá nem necessidade da existência de dinheiro. Todos os bens de produção serão muito bem distribuídos a cada qual segundo as suas necessidades. A humanidade em estado de natureza será a mais ideal das cooperativas.
Mundo possível ideal número cinco: tudo será mágico. Cupido existe. Você se apaixona e a pessoa apaixona-se por você de volta. Quanta felicidade! Ninguém será carente, insatisfeito, não haverá solidão e nem depressão, se houver choro será apenas de alegria. O amor será tanto nesse mundo que será muito difícil não partilhar esse amor com tantos quantos encontrar. Seremos uma bela e enorme família. Não haverá ciúme, raiva, rancor, vingança. Se somos capazes de partilhar o que é material, portanto perecível, seremos capazes de partilhar o que não é material, portanto, imperecível.
Mundo possível ideal número seis: não haverá preconceitos de qualquer ordem, em lugar algum. Sexo vai ser tão simples como um aceno de mão. Alias, compreender-se-á que um aperto de mão, um abraço ou um beijo são tudo coisas que a gente não consegue dar sem receber de volta, quer dizer, já o recebemos quando damos. Não se terá medo ou nojo do corpo. Tudo será limpo, sublime e perfeito. Todos serão igualmente belos por isso, pois a conquista não fará mais nenhum sentido, tudo estará posto, como a fruta na árvore, pronta para ser colhida e degustada. Degustaremos, enfim, essa existência feliz.

Pode ser de agora ficarem imaginando se tudo isso que foi dito é mesmo sério ou é apenas uma ironia. Seriedade e ironia também são palavras curinga, assim como todo este texto. Eu sei o que quis dizer e disse. Quem vai ler... bem,que se virem!
E sobre as tais palavras fictícias que não sei se o são ou se são curingas, as que me parecem mais próxima do real são três: a fome, a sede e o tesão.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Uma hóspede


Faz uns três dias que ela chegou para ficar de vez. E me bater doído, jurando que de lá não sai tão cedo. Eu sabia que viria mais cedo ou mais tarde, ainda mais numa noite chuvosa de quarta-feira. Segunda e terça eu já pressentia sua presença, ou sua aproximação. E tal proximidade ameaçadora deu-me a certeza de que teria que amargar uma longa convivência. Meus pensamentos perambulando por aí, eu me dizia o tempo todo que “vai ser assim”, sim, vai. E não deixava de perguntar: vai ser mesmo assim? Sim, vai. O silêncio aterrador em volta respondia que sim, vai ser assim.
Não vou lá agora recebê-la com banda de música e tapete vermelho, vem sem ser convidada, não que não seja até bem-vinda, mas chegar de mala e cuia, com ar desafiador, instalando-se na minha vida sem me perguntar se posso, se quero, se suporto. Banda de música não, mas uma música ao menos achei na bagunça de meus pensamentos, de um velho disco de vinil que eu gostava tanto de ouvir, só não ouvi na chegada dela porque aí ia ser muito disparate da minha capacidade inabalável de rir da própria desgraça ou, quando não muito, colocar nela um adequado fundo musical. Lembrei Alceu Valença, uma letra de música que é um poema que eu gostaria de ter escrito, de tão simples que é chega a ser profundo, e diz tudo em tão poucas palavras. E serve para recebê-la, de modo a dizer que fique o quanto quiser, eu terei recursos para nos alimentar a ambos, pode dormir onde quiser, mudar o que quiser. Fique o tempo que precisar, que achar melhor para seu intuito. Eu não vou ser mais do tipo de me importar com muita coisa.
Com um sorriso nos lábios, na fronteira inteiramente tênue entre a loucura e a lucidez, eu a recebo, abro a porta para ela entrar com toda sua bagagem, hei de lhe passar um café quente, trocar os lençóis da cama, se for necessário, limpar com esmero o apartamento, talvez falte alguma coisa na geladeira que providenciarei com urgência. Se quiser dormir do lado da cama em que durmo, eu durmo do outro, se quiser descansar na minha poltrona preferida, pode ser, pode ir, pode ficar. Pode usar minha toalha, eu uso a outra, e os meus chinelos, ou se não eu compro um novo par.
Pode ir ficando, porque eu sabia que ela viria mesmo, que se instalaria de vez na minha vida, sem me dar conta ou satisfação de quando iria embora ou se iria, quem sabe, um dia, atormentar a rotina já atormentada de um outro que dela precise mais do que eu.
Não se importe muito comigo, com meus caprichos e minhas pequenas e mesmo as grandes manias, tudo é tão pouco e tão insignificante, dá para ficar sem levar muito tudo isso em conta. Eu durmo tarde porque não durmo cedo, e não durmo cedo porque quase não durmo. Acordo no meio da noite sempre com medo de descobrir que amo, eu amo, amo, eu amo, sempre com medo de descobrir. Depois volto a dormir e durmo logo, um sono sem sonhos, tudo muito simples. Não me siga pelos cantos, como agora, quando fujo para os cantos é porque gosto de chorar sozinho, sem ninguém me perguntando o que é, o que foi, o que será, por que e para que. Já me basta o próprio solilóquio com todas as suas indagações até agora sem resposta, sem a mínima chance de poder ser desvendado qualquer questionamento. Eu não sei. Pois não sei saber. Eu apenas sinto, pois isso eu sei, eu sei sentir.
É por isso que as lágrimas são líquidas, para não poderem ser represadas. A gente tapa um furo aqui, outro ali, reforça toda a estrutura. De repente tudo explode, e sai aos soluços. Depois dá um alívio danado, junto com um certo cansaço, uma fadiga, que eu poderia dizer, de existir, de ter de estar ali nesse momento, de estar vivo, de fazer coisas e ser coisas, de pensar coisas, de tentar entender as coisas. O que é melhor depois de uma crise de choro é um bom banho e algumas horas de sono. O banho inverte o sentido da água, em vez de água de dentro para fora, água de fora para dentro, ou só fora, lavando o cansaço. E o sono há de aquietar qualquer pensamento, esses cavalos selvagens a correr pelas pradarias da vida, mesmo eles, que não são domados de jeito nenhum, têm que descansar.
Então, não ligue muito para mim, nem me olhe, não se preocupe comigo muito que não vale a pena. Sinta-se em casa, só me diga por que nome devo chamá-la. Porque se não for assim, ainda tenho a música de que falei antes, a passear-me os pensamentos. E, nessa música, sei seu nome e seus maiores atributos, para melhor hospedá-la na minha humilde morada, ou na minha infame vida.
Pode ir ficando, que a música de Alceu Valença não roda na agulha do toca-discos, mas ninguém pode me impedir de cantarolar a música em minha mente:

A solidão é fera, a solidão devora.
É amiga das horas prima irmã do tempo,
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração.
A solidão dos astros;
A solidão da lua;
A solidão da noite;
A solidão da rua.

E só mais uma coisa: melhor ela não me dizer quando e se vai embora. Melhor deixar eu tentar adivinhar.

Um hóspede


Ele já estava antes de ela chegar. Vamos ter que conviver os três (ou seriam quatro, se contar a Samambaia?), a mais estranha família que se possa ter notícia de se formar, tão estranha que até pode dar certo. Uma planta, um felino, um humano e um ente subjetivo. Este último tem muito mais presença na casa do que os outros três.
Mas o caso é que ele já estava lá, devidamente instalado, adaptado, ele já tomou posse de tudo o que acha que pode ser dele, ou de tudo o que acha que é dele. Ou seja, tudo.
Tenho que providenciar que sua estada por ali seja das mais satisfatórias, o que quer dizer que tenho que satisfazer todas (ou quase todas?) as suas vontades. Vontades? Sim, vá lá, por falta de termo melhor, vamos chamar esse existir displicente, com essas coisas que ele tem que fazer, e quer, de vontades. O problema não será meu se o termo “vontade” a ele atribuído suscitar algumas discussões filosóficas. Valor de verdade por valor de verdade, sou mais poeta do que filósofo, ou nada filósofo e alguma coisa poeta, coisa que o valha, espero. Então prefiro dizer que lhe faço as vontades fazendo as minhas, ou faço as minhas vontades procurando fazer-lhe as suas. A questão é que nossas vontades combinam, elas se dão muito bem.
Depois da chegada do ente subjetivo querendo dominar tudo e todos, eu e ele nos unimos mais, estamos mais amigos, mais divertidos, mais moleques, inventando jogos e coisas tais e quais para passar o tempo. Parece que nenhum de nós a quer, aquela hóspede compulsória, e nos viramos como podemos.
Mas não vamos falar dela, que este é para falar dele.
Sair de casa virou algo que precisa de uma estratégia de guerra. Dá que ele foge de novo, e a moça bonita do apartamento sete não esteja por lá para recolhê-lo e acolhê-lo como da outra vez. Tenho que estar certo, então, ao sair, de que o danado fica dentro. E que tudo esteja devidamente fechado. Janelas da sala e do quarto, as portas, a da saída-entrada, claro, a que dá para a área de serviço e a do banheiro, por ora para evitar que transforme em brinquedo todos os rolos de papel higiênico.Aliás, brinquedos ele tem de monte. Todos fáceis de conseguir.
Depois da chegada dela, a hóspede cujo nome não ouso pronunciar, a não ser com aquela música, eu saí ontem para uma hora do almoço aqui pelo Centro que se resumiu em andar sem guarda-chuva debaixo de uma leve garoa, e a idéia que me ocorreu só na rua de que precisava comprar algumas cuecas, e meias e bermudas. Nos grandes magazines os preços são altos. Mais uma voltinha e entro numa loja, digamos, mais popular. Volto para o turno da tarde enriquecido de mais pertences: dez cuecas, seis pares de meia e duas bermudas. Precisava só das cuecas, mas com o dinheiro que compraria seis cuecas no grande magazine, comprei tudo o que enumerei ali atrás. As meias novas me fizeram lembrar de que posso me livrar das meias velhas, aquelas que ou estão encardidas ou já apresentam um furo pequeno ou médio aqui e ali.
Chegar em casa é outra campanha de guerra. O gato sempre me espera já na porta e vai abrindo todos os miados possíveis, quer tudo ao mesmo tempo, água, comida, brincadeira, cafuné, e tudo não necessariamente nessa mesma ordem. Se pudesse mesmo ser tudo ao mesmo tempo, para ele seria melhor, bem melhor. Mas eu presumo que ele já percebe que para chegar a ele cem por cento livre para dar cem por cento de atenção, tenho que me livrar de algumas coisas que afinal de contas só eu faço. Levar fora o lixo, depois de recolher o dito cujo, claro, limpar a caixa de areia, já que ele suja apenas e é só o que pode fazer, trocar-lhe a água, beber eu próprio um pouco de água. E café, se eu lembrar de fazer, ou de der tempo. Minha mochila e a sacola com cuecas e meias estão em cima do sofá. Ele quer brincar. Esconde-se atrás de uma porta e espreita daquele jeito que aparece uma orelha e um olho, e acha que está escondido. Essa brincadeira começou como pega-pega, mas virou também esconde-esconde. E ele não só corre de mim, mas também corre atrás de mim. Ele me dá um certo sossego quando estou fazendo um lanche na mesa, não se atreve a subir lá. Mas quando termino o lanche e estou ao telefone, aí parece que ele quer escutar a conversa.
Tudo feito, nada mais para fazer. Nada disso. Deu para fazer mais bolas de meias com as meias velhas. Percebi que ele agora tem catorze bolas. Resolvo dar nome a esses brinquedos. Vamos lá imaginação pueril! Os nomes: Wilson, Peninha, Espinhuda, Mizuno, Cinza, Bunda Cinza I, Bunda Cinza II, Chico & César, Rasta & Fari, Orelhuda, Barban Tina e Playmobil. Confira-se: catorze bolas. O gato me olha de soslaio, achando que devo ter pirado por ficar dando nome a bolas de meia. Olho de volta para ele, de soslaio, ele deve ser pirado, não percebe o quanto parece bobo brincando com essas bolas.
Dou umas boas risadas no meio da noite, o gato correndo de um lado para o outro. Pula das bolas e em cima delas, feito macaco. Ele é engraçado e nem sabe o quanto, pois faz tudo isso a sério.
Hora de dormir. Tudo feito afinal, três horas da manhã. Alguém nessa casa precisa trabalhar, ração de gato não dá em árvores, o que é uma pena. Vou para cama com uma última leitura da noite. Ele nem pede mais licença. Deita-se lá também e dorme primeiro do que eu. Acordo e ele ainda está lá, do mesmo jeito e com as mesmas coisas. Rio de manhã lembrando as estripulias de ontem. Bom dia, Logan! Até mais à noite.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Ao filho que amo

Meu filho caçula faz hoje quinze anos. Pudesse dar-lhe um presente que prestasse, daria um outro mundo, outra realidade. Daria uma vida com mais livros e menos TV, mais jogos na rua do que na tela do computador. Mais que todo avanço tecnológico que proporciona um sem par de utensílios que poderia lhe dar de presente, daria uma boa dose de fantasia, aquela coisa que acho que é própria dos meninos de se acharem o maioral, o mais forte, o mais inteligente, o mais bonito. Se bem que tudo isso ele já é de fato. Eu lhe daria, não sei de que modo, mais infância, afinal de contas, tudo o que mais faz falta aos infantes de hoje em dia. Fazer e não comprar, procurar e não ter à mão, criar um universo do qual é protagonista e não engolir um já criado onde é um figurante.
Seria imprescindível dar-lhe gostar da lua e das estrelas, gostar de árvores e de bichos, gostar de livros e olhar de vez em quando algumas pinturas. Daria a ele todas as palavras que tenho para ele construir suas próprias indagações e conseguir suas próprias respostas. E daria todas as boas noites de sono e sonhos de grandeza tão aceitáveis aos adolescentes, ainda que sejam para nós, chatos adultos, inaceitáveis.
E tentaria explicar a sensação de tomar um banho de chuva, sapatear em poças de água, ou o que é muito mais difícil, essa coisa toda que sentimos quando nos apaixonamos pela primeira vez. Daria o gosto pela amizade leal e sincera, e também aquela pirraça que temos que ter que só os amigos mais leais e sinceros podem suportar. E que viver nada mais é do que gostar da vida.
Tentaria ensinar tantas coisas que custei muito a aprender e mesmo as que ainda não aprendi. Quem sabe pudesse mostrar o quanto é bom ler e escrever poemas, desenhar mapas de mundos inexistentes, inventar e contar histórias, contar causos, rir à beça de uma boa peça pregada a alguém. Roubar fruta no quintal do vizinho, fazer um esconderijo no próprio quintal.
Tentaria mostrar o quanto é bom um toque de carinho, cafuné de mãe, risada de pai e pai babando alguma coisa que faz bem demais. E o quanto é bom ter irmãos, irmãs, primos e primas, tios e tias, avós. E que é uma aventura andar de ônibus de um lugar ao outro, ou ir a padaria comprar pão. E como é tão gostoso dançar e bolo sem nenhuma cobertura. E bolinho de chuva, pipoca, pastel, suspiro, bala de goma, rocambole. E ouvir música, saber que tudo é música.
E queria ser capaz de mostrar que crescer não dói e não é chato. A gente só não pode fazer mais algumas coisas mas pode fazer muitas outras mais. E nem precisa esquecer que foi criança um dia e gostar disso.
Enfim, se eu tivesse, por um passe de mágica, agora, minha infância de volta, mandaria embrulhar num papel dourado, e daria de presente ao filho que amo.

Pensando coisas...


Pensando coisas é que me perco. Pensasse menos, encontraria uma certa paz. Ainda mais agora que já sei o nome da árvore que enfeita minha janela: Tabebuia pentaphylla, mas podem chamá-la ipê-rosa-el-salvador. Sim, é um ipê, não como os nossos aqui, é mesmo de El Salvador. Os nossos, o também Ipê Rosa, o Branco, o Roxo e o Amarelo (eu vi todas essas árvores, e com flores) são do tipo de dar galhos mais comportados, formam uma bela copa, são bem mais elegantes que o seu primo de El Salvador. Mas eu gosto deste último, com seus galhos não comportados. Dão flores em ramalhetes, quer dizer, várias flores no mesmo lugar. E dão flores enquanto têm as folhas. Mas vocês todos, quando a virem, podem chamar de árvore mesmo, que ela atende de qualquer modo.
O gato trava uma guerra contra os insetos. E ele tem como brinquedo seis bolas de meia, duas bolinhas de plástico, algumas que aparecem, feitas de papel, tem como brinquedo ainda eu e a casa toda. Tudo é dele e tudo é brinquedo. Ele aprendeu a brincar de pega-pega. Gosta de correr de mim e atrás de mim, já demos umas quase trombadas. E sempre me ameaça quando estou descalço e de bermudas, caçando qualquer um dos meus pés. Ele é divertido, mas acho que eu o divirto ainda mais, enquanto me divirto com ele. Mais do que isso, só vendo.
As pessoas no terminal rodoviário são pura ansiedade. Lá estão a esperar alguém que vem de longe num ônibus, ficam espreitando feito gato cada ônibus que chega. E se ô ônibus é da cidade de que vem a pessoa esperada, ficam espreitando cada um saindo pela porta. E as pessoas que descem já procuram alguém conhecido no meio dos muitos ansiosos rostos. Quando encontram, já se cumprimentam pelo olhar e por um sorriso que eu diria que simplesmente ou escapa ou muito dificilmente pode ser contido. Mas essa é a hora da chegada.
A hora da despedida tem as mesmas coisas de modos diferentes. É um outro tipo de ansiedade. A antecipação da saudade certa que vai pairar entre quem parte e quem fica. Inevitável. Querem falar de tudo um ao outro, ou uns aos outros, nos minutos que antecedem a separação que se dará de fato. Outros ficam abraçados, incapazes de decidir se quem fica quer ir ou se quem vai quer ficar. Ou se pegam nas mãos, beijam-se, fazem pequenas carícias, um afago no cabelo, um correr dos dedos pelo rosto. Olhares que dizem adeus e querem dizer volte logo. E os ônibus são monstros gigantes a engolir e carregar para longe quem a gente ama.
Estive ontem na rodoviária. Sempre olho com hostilidade para o monstro gigante. Ela entrou num desses e se foi. Que pessoa de rodoviária ela é? Que pessoa ela é da minha vida? De tanto olhar, não pude deixar de perceber. Chegando, ao descer do ônibus, ela olha direto para o bagageiro do mesmo, como se sua bagagem fosse lhe pular no colo feito um animal de estimação. Sempre tem gente na frente a pegar suas malas. Ela espera sem olhar para ver se chegou quem veio esperá-la. Estou ali, já a vi e ela não me vê.
E na hora de partir, ela esgota os assuntos, mais preocupada em dar o bilhete ao motorista do que se entregar ao ritual da despedida. Não sabe se quer apertar as mãos, abraçar, beijar, e de novo beijar, abraçar e pegar nas mãos. É muito desajeitada com gestos íntimos em público ou com despedidas, não sei qual das duas coisas. Então, ela simplesmente entra e vai.
Então foi assim que ela se foi. Assim termina o romance que na vida eu escrevia, que tinha de tudo para ser tão mais belo e insistiu para ser apenas belo o suficiente. E no tempo certo, não muito além da conta.
Não contente em ficar encarando o monstro gigante que a levou para longe, achei de ficar encarando todos os outros monstros gigantes a fechar as suas portas e partir, levando tanta gente e suas histórias para bem longe. Separando as pessoas.
Depois disso, era imprescindível que eu fumasse dois ou três cigarros, para configurar a saudade para agüentar mais um tempo, com a nítida certeza de que esse tempo vai ser mais longo do que eu possa imaginar. Esse tempo pode ser para sempre.
Se eu tivesse na vida mais despedidas, faria a alegria e a fortuna dos livreiros. Saí de lá com mais um livro para ler no trem a caminho de volta para casa. E para ler e reler a vida toda, porque é um bom livro de um bom autor tratando de um bom assunto. Tudo parece tão bom.
Cheguei em casa com uma sensação que não é muito fácil de descrever, sei apenas que não é simplesmente alívio e muito menos é resignação. Mas é como se tivessem tirado a adaga fincada bem no meio do meu peito. Tenho que correr atrás do gato. Ele vai querer correr atrás de mim. Não sei o que ele pensa quando me arranca risadas no meio da noite. Mas acho que ele se diverte bastante.
PS.: Claro que o ipê da foto não é o que está em frente a minha janela. É apenas imagem para quem não conhece. Também acho que o ipê da foto é o brasileiro, não o de El Salvador, que não perde as folhas quando dá flores. Ah! Preciso mesmo de uma máquina digital, para poder mostrar o ipê da minha janela. Providenciarei.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Uma aventura

Eu preparo uma aventura. Quer dizer, eu me preparo atirar-me a uma aventura. E olho para trás a procura de aventuras do passado, quando foi a última? Tirando as de caráter pueril, ou mais próprias da adolescência, que são só aventuras porque parecem aventuras naquela idade, tirando isso, desde que me entendo por gente, essa coisa adulta cheia de peso na bagagem, às vezes até em volta da cintura, essa coisa cheia de limites e limitações, essa coisa cheia de ponderações, que não se sabe se dono ou escravo da própria razão, desde que virei isso que sou, não sou capaz de me lembrar de mais nenhuma aventura de verdade.
A vida que querem que tenhamos, ou que permitem que tenhamos, nos enquadra da forma que quer e no que quer, dita o tamanho de nossos passos, a extensão de nossas ambições, os limites de nossas possibilidades. Quem dita isso? Sei lá, não vou tecer nenhum tratado sociológico ou antropológico, e muito menos filosófico, a essa altura dos acontecimentos. Mas tenho todo o direito do mundo de tergiversar sobre o que quero e o que não quero, à vontade. Minha vontade, só minha, vontade minha.
Mas também deixemos dessas considerações rebeldes desprovidas de causas plausíveis. A realidade é que ser o que queremos e tudo o mais nessa porcaria de vida tem um preço, e muitas vezes a gente vende a alma para pagar esse preço. Ou às vezes vamos entregando tudo em intermináveis prestações, pagando o preço em doses homeopáticas, com juros e correção monetária, sempre com correção no nosso saldo devedor. Não estou falando de dívidas bancárias, que também tenho, como podem pensar. Estou falando de nossa dívida existencial, para respirar e existir pague! E pague bem caro. Não tem dinheiro? Então pague indiretamente, consumindo tudo o que lhe oferecem para você ser algo mais do que é, (puxa vida!), essa porcaria que não figuraria bem num horário global, nem no núcleo pobre da pior novela. Esse algo que é que não fotografaria bem suas caras numa certa revista, que não seria bem visto passeando em Beverly Hills ou transitando distraidamente em Hollywood. Ora bolas!
Declaro-me, desde já, um inadimplente.
Mas não era disso que eu estava falando. Eu falava de uma certa aventura. Será que queria mesmo falar? Agora é tarde, meus dedos correm muito rápido pelo teclado e falam por mim. Eu falava de uma aventura de amor. Desde fevereiro que não a vejo e ainda acho que ela é minha namorada. Parece não ser mais, acho que terminamos por telefone (por telefone?). Não! Não posso aceitar isso. Se pelo menos fosse por carta, ainda ia.
Às vésperas desse feriado, deu-me de me dar uma idéia louca e absurda, inteiramente pueril, de fazer uma viagem de setecentos quilômetros só para ver a pessoa amada. E de ônibus. Tivesse trem para lá seria muito mais emocionante, além de romântico, é claro. Mas não há. Parece que não há. Ônibus mesmo, e estrada, esses meus dois velhos conhecidos. Já fiz virtualmente a bagagem, vou levar bastante papel, lapiseira e caneta. Roupas? Não sei se vou precisar. Vou num pé e volto n’outro. Sem hospedagem. Vim aqui não para conhecer essa fabulosa cidade, mas só para ver você. E só ver mesmo, se for o caso. Como se fosse a última coisa que tivesse para fazer na vida. Nem que seja para ouvir ao vivo e em cores que está tudo terminado. Mas vou ver você. O que mais vou conversar? Não sei. Não dá para ficar fazendo ensaios com essas coisas. Levarei todas as palavras que tenho não na bagagem de mão, mas em outra minha bagagem, essa que acho que trago desde sempre, desde que comecei acumular. Levarei esses meus ultrapassados sentimentos. Como não sei rezar e nem cantar, levarei meu olhar, meu olhar. Acho que deveria levar também flores, só para parecer ainda mais antiquado. Levarei então o presente de aniversário atrasado, isso, com um mês de atraso, mas tudo bem, será um outro livro, de longe o presente que mais gosto de dar e é muito bom quando encontro alguém que gosta de ganhar exatamente esse presente. Que mais? Que mais? Não sei. Nem sei mais.
Mais perguntas? Quais são as minhas verdadeiras intenções? Bem, eu só quero ver a moça. Preciso parar de sonhar com aqueles lábios espalhados por toda parte. Ou, quem sabe, ter motivos para sonhar com eles ainda mais. Aventura, cada um tem a que merece.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Talvez sim! Talvez não! Talvez...

“Aquele que trabalha com suas mãos é um operário, aquele que trabalha com suas mãos e sua cabeça é um artesão, aquele que trabalha com suas mãos, sua cabeça e seu coração é um artista”

Talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não. Talvez...

Talvez eu seja rancoroso, desde que haja um bom significado para a palavra. Talvez eu saiba amar e as pessoas não saibam ser amadas, talvez o contrário disso. Talvez nada disso, talvez eu precise aprender a não amar tanto, ou achar que amo tanto, ou talvez encontrar um outro jeito de amar. Talvez eu tenha pelas pessoas muita consideração. Consideração demais e talvez me importe muito com isso. Talvez eu nutra uma estranha esperança com relação às pessoas. Uma esperança de todo inútil, frágil e sem sentido. Talvez...
Talvez eu precise sonhar menos e agir mais. Ou talvez agir o suficiente para poder sonhar o quanto quiser, sonhar à vontade. Talvez a realidade não tenha para mim nenhum significado. Ou talvez tenha significado demais. Talvez eu seja mais racional, racional ao extremo, mais racional do que eu possa imaginar. Talvez seja uma grande e tola ilusão que eu seja assim todo sentimentos. Talvez eu me engane muito com as paixões, talvez achando que delas me alimento até me fartar. Talvez essa fome de tudo ser outra coisa um tanto melhor não seja fome, mas algo que não tem nome. Talvez...
Talvez eu tenha pela vida mais desprezo do que ouso ser capaz de perceber, talvez muito mais do que sou capaz de ousar admitir. Talvez esse asco, esse olhar de viés, talvez esse dar de ombros, essa ausência de um esperado desespero, essa mais completa falta de ansiedade, essa nulidade de quaisquer ambições, talvez isso tudo seja meu melhor jogo de cena posto em meu melhor personagem, que sou um “eu” nenhum de nenhum lado dos espelhos em que me olho. E talvez isso não resista a um olhar atento no espelho. Talvez...
Talvez seja melhor eu estar sozinho, sempre, talvez. Talvez seja bom não ter aonde ir, para onde voltar, não ter onde ficar. Talvez seja melhor sempre recomeçar tudo do zero, talvez esquecer tudo o que quero, deixar de lado tudo quanto espero. Talvez o melhor de tudo seja não esperar nada. Talvez...
Talvez seja bom não desperdiçar esses olhares, não lidar talvez tão bem assim com as palavras e procurar talvez lidar com os números. Talvez eu deva fazer mais silêncio, talvez calar mais sobre tudo aqui dentro, para talvez sofrer menos, ou não, talvez , sofrer logo tudo de uma vez. Talvez...
Talvez seja tarde, tão tarde talvez para tudo na vida. Talvez eu deva somente respirar essas tardes que avançam na noite, essas noites que desabam sobre mim, impiedosas e naturais, e se tornam madrugadas torturantes. Talvez eu deva sorver mais as noites de sábado e as tardes de domingo como coisas só minhas. Talvez dormir mais, viver menos, pensar menos. Talvez menos amor à sabedoria, em tudo o que é, afinal, tão muito mais simples do que podemos ver. Talvez um outro amanhecer de luzes assim tão estranhas, talvez um amanhã que me saia das entranhas, e talvez essa manhã tão supostamente impossível traga quase por um mero acaso algo de novo. E talvez a mim reste apenas esperar. Talvez...
Talvez eu deva dar graças por estar vivo, e andar sobre as duas pernas, conhecer todos os caminhos, ter rumo e direção. Talvez não. Talvez eu deva ser grato pelo alimento, pela água, pelo ar e pelo veneno. Talvez eu deva ser muito agradecido por tudo que afinal de contas eu tenho que arrancar do nada para mim mesmo. Talvez eu deva louvar a vida e todas as suas portas, mesmo que sejam do céu ou do inferno, todas as portas me são batidas na cara e há sempre de todos estarem dentro e eu fora, fora de todas as lógicas, de todas as histórias, de todas as lembranças, fora de todas as casas, de todos os olhares e sorrisos, fora de tudo que é afinal tão simples e corriqueiro, esse sentimento exato de que a vida cabe numa equação matemática. Talvez eu deva seguir as estradas certas, trilhar os bons caminhos, ter uma sina, crer no destino, fazer parte de algum horrendo plano divino. Talvez não. Talvez eu deva me perder mais do que me perco, perder-me ainda mais e mais, de uma vez por todas, para nunca mais me encontrar, para talvez ser menos, ter menos, desejar menos, merecer menos. E me contentar talvez por estar sempre olhando para o nada, o nada da morte, essa angústia de quem vive, o nada da solidão, esse fim de quem ama. Talvez toda essa dor tenha um sentido e um significado, talvez tenha mesmo, mesmo que eu nunca consiga desvendar, talvez tenha. Talvez...
Talvez me falte sal ou açúcar, talvez um sabor de qualquer coisa. Algum sabor. Talvez em tudo tivesse que ter um outro tempero, ou algum tempero, mesmo que fosse uma pitada de raiva, um pouco que fosse de amor-próprio, um grãozinho de ódio ou de desespero, talvez devesse ter usado alguma mágoa a meu favor, alguma doidice ao meu dispor. Talvez eu tivesse que ter gritado, xingado, ter dado todos os possíveis murros em ponta de faca. Talvez ter dito desde o início e imediatamente que não quero mais. Talvez mais montanhas para escalar, mais ladeiras nos caminhos, mais becos escuros, e terrenos baldios, talvez mais poços sem fundo onde me afundar, talvez um tanto mais de emoções baratas, talvez um coração mais duro e uma mente menos displicente. Ou talvez não, apenas minhas lágrimas secretas em minhas noites vazias por simplesmente tudo e em tudo meu mais profundo silêncio, talvez me arrepender por todas as palavras, por cada frase dita, por cada pensamento libertado sem nenhum mistério. Talvez...
Talvez eu devesse ter mentido, ou talvez ocultado ao menos minhas reles impressões sobre qualquer coisa que pudesse parecer verdade. Talvez eu devesse ter aprendido onde por os pés, onde por as mãos, talvez aprendido para onde ter dirigido o olhar, ou talvez devesse ter fechado os olhos a tudo, talvez menos luz, menos lucidez. Talvez...
Talvez eu devesse ir atrás de você, ter ido atrás de tudo o que quero. Talvez eu devesse tentar tornar fáceis as coisas difíceis, mesmo sabendo que é muito difícil tornar fácil as coisas difíceis. Ou talvez eu torne sempre difícil as coisas fáceis e, desistindo delas enquanto difíceis, essas coisas permaneçam sendo o que realmente são, fáceis. Talvez muito mais fáceis do que percebemos. Talvez jogos de palavras e de idéias, talvez apenas jogos, nada mais. Ou talvez tentar outro caminho, outros desertos, outros portos distantes, talvez eu devesse ter prestado atenção em tantos outros pensamentos que se dão muito além do cais. Talvez um mar aberto, uma ilha perdida, um naufrágio talvez, não ter tantos tesouros escondidos. Talvez eu devesse construir com gestos todas as histórias, todos os destinos, talvez um desatino, uma coisa nunca antes pensada por se fazer, apenas por fazer, ação e simplesmente isso, ação talvez. Talvez...
Talvez eu devesse deixar que vivesse mesmo uma vida melhor do que a vida que posso lhe dar. Talvez fosse de fato necessário livrar você de todo peso, de toda a incerteza trazida pelo tempo, talvez afastar você dessas coisas todas tão complicadas. Talvez complicadas. Talvez não. Talvez eu soubesse de toda a distância mesmo antes de a distância se fazer concreta, palpável e presente, e talvez eu devesse viver somente todas as distâncias, nunca estar por perto, nunca desperto, e não cultivar talvez qualquer proximidade com o que quer que seja. Talvez...
Talvez tudo seja apenas isto: essa tristeza e essa solidão, esse imenso silêncio nas horas mais erradas. E talvez esses medos todos nas horas mais acertadas. Talvez tivesse que ter aceitado a efemeridade desses momentos que às vezes parecem tão eternos. Ou talvez percebido que há eternidade em momentos apenas efêmeros. Talvez só isso. Talvez...
Talvez eu devesse ter olhado as estrelas mais como astrônomo do que como poeta. Talvez tivesse sido melhor ter olhado a vida como espectador mais do que como amante. E talvez sentido o amor mais como objeto do que como sujeito. Talvez fosse melhor não querer nada tão perfeito, talvez nada ter feito, talvez nada revelado, nada escrito, nada pensado, nada dito. Talvez nada. Talvez...
Talvez ter olhado para tudo mais como observador do que como amante, esforçar-me talvez para não amar e não ser amado, ter economizado sentimentos tão caros e tão raros. Talvez ter todo o prazer como coisa corriqueira do corpo, talvez só isso, como se fosse possível, talvez tornar possível, como algo somente do corpo muito mais do que como alguma coisa d’alguma alma. Talvez...
Talvez eu devesse apagar toda a história, destruir talvez todas as memórias, viver de esquecimentos, talvez, rasgar todos os papéis acumulados, quebrar todos os instrumentos que me tornam outra coisa, talvez desativar todos os mecanismos da imaginação. Talvez encarar tudo o que se derrama mais como tolices do que como inspiração. Talvez não inspirar, não respirar, talvez não mais caminhar, não ter talvez tanto empenho e arte em lembrar e relembrar e lembrar tudo outra vez. Talvez...
Talvez eu devesse ter dito tudo isso e muito mais. Talvez não ter dito nada, nunca mais, ou talvez nunca ter dito. Entre o tudo e o nada, o dito e o não dito, uma existência que se resume em grandes fracassos diante de pequenos triunfos, esse poço que somos de emoções baratas, talvez me esvaziar mesmo dessas águas. Talvez ter arrancado tudo pela raiz, talvez não ter desejado tudo quase por um triz. Talvez fosse melhor eu não ter querido tudo como quis. Talvez não ter me iludido poder ser feliz, porque a felicidade é melhor não saber se existe do que saber que não se tem. Talvez...
Talvez haja um outro modo de ver tudo, de sentir tudo, de saber tudo, tudo o que é necessário, nada além, nada a mais, nada mais, só o necessário. Talvez haja um outro olhar, um outro mar, algum outro cais, talvez haja mesmo essa coisa de nunca mais. Talvez...
Talvez eu devesse escolher viver sem você, e muitas outras coisas que não quero. Talvez não escolher entre o querer e o poder, talvez nem ao menos poder. Talvez o querer seja só mais alguma coisa com a qual a gente se engane, talvez haja uma fronteira tão tênue entre o que se é e o que não se pode ser. Talvez...
Talvez haja alguma grande coisa nessas coisas tão pequenas, talvez o demônio tenha criado a luz e deus as trevas, talvez o mundo não seja pequeno e nem o universo infinito, e nem seja a vida um fato consumado, talvez haja em meio a todo esse terror algo talvez muito belo. Talvez belo. Talvez...
Talvez haja ainda tempo, tempo para mais um poema, um monte de palavras tolas e inúteis lançadas ao vento, a se perderem nos quatro cantos, talvez um pouco mais de tempo para essas coisas lindas que jamais existirão. Talvez sim. Talvez não. Talvez...
E talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não.
Talvez eu viva para brincar em outros quintais. Talvez não.
Talvez...
Talvez eu ame você para sempre. Talvez eu esqueça todo o amor ao virar a esquina, talvez não haja mais essas esquinas por que passei, talvez eu desista mesmo de amar, nem sei, talvez sei, se é que sei que não sei que sei. Talvez haja mais o que pensar e fazer, talvez vida muito mais além dessas janelas, talvez haja vida lá fora, lá fora no mundo, fora do mundo, talvez fora de tudo, talvez fora de mim. Talvez...
Talvez tudo isso termine, talvez derramar tudo de uma vez seja sofrer toda essa dor inútil e sem fim ainda uma outra vez. E talvez não aprendemos nada ainda sobre o fim, do fim e com o fim. Fim talvez de tudo. Talvez...
Talvez eu alimente esperanças em relação a todas as coisas, e nem dê com isso a devida atenção, talvez eu nunca esteja atento com o fato de que o que nos mata ou faz sofrer é qualquer esperança. Talvez então eu possa estar vazio, esvaziar o corpo das dores, a alma dos amores. Ou talvez esvaziar meus olhos das cores, das paisagens, talvez não haja mais o perfume de flores, talvez esvaziar minhas mãos dos gestos , meus ouvidos das mais belas sinfonias, talvez eu possa esvaziar todos os meus dias, esvaziar a mente das lembranças, esquecer os gostos e em minha língua matar as palavras, conter os pensamentos que me invadem, expulsar os demônios, matar os anjos, correr com os santos para fora do templo, sem pressa e sem preces, talvez eu possa destruir todos os deuses, todos os ritos, todos os mitos. Talvez...
E, vazio de mim, e em mim, vazio por mim, talvez isso não passe mesmo de palavras ao vento, poemas para o esquecimento, e nada mais. Talvez...
Talvez essa tristeza seja somente medo, medo da solidão. E talvez essa solidão seja só uma tristeza que nasce sempre de uma certeza. Ou talvez nem seja medo, talvez um arremedo dele, um pequeno engano, talvez uma impressão apenas, uma impressão de medo que mais é uma coragem velada de tocar em frente com o que vem e com o que se tem, e como vem, quando vem, talvez um desejo reprimido e escondido de estar a olhar em volta e ficar satisfeito em não encontrar ninguém. Talvez ninguém. Talvez...
Talvez abandonar tudo, deixar meus passos pelos caminhos, meus rastros em nenhuma estrada, talvez cessar de lançar palavras ao vento, colher as tempestades, não permitir nunca mais nem lágrimas nem lamentos, aceitar o mal como mais possível e real do que o bem que imagino espalhar-se por toda a parte. Talvez ser capaz de negligenciar quaisquer sentimentos acerca de absolutamente tudo, tudo talvez absolutamente sem o menor sentido. Talvez sem sentido. Talvez...
E talvez procurar não me arrepender de tudo aquilo que não fiz. Talvez procurar fazer todas as coisas, sem medo algum de me arrepender. Talvez nunca o arrependimento. Talvez!

(05/10/2007 – 17:45 * 06/10/2007 – 14:42 * 07/10/2007 – 15:18 * 08/10/2007 – 09:20)

terça-feira, outubro 02, 2007

(Des)arrumação

Depois da chegada e devida arrumação da nova estante, sobrando tanto espaço na velha, e depois da chegada e inevitável desarrumação do novo habitante felino, tudo o que faço é arrumar e arrumar, organizar as coisas, como se arrumar tudo em volta e fora de mim arrumasse tudo dentro de mim.
Depois da glória efêmera de mais uma premiação poética, ponho-me a pensar que sou poeta coisa nenhuma. De volta ao ostracismo e ao esquecimento, resta-me arrumar meus muitos papéis, depois da arrumação dos livros. E lá vou arrumando esses tais papéis, muitos textos, alguns lidos, outros não, apenas colecionados. Etiquetando: poesia, literatura e filosofia. Escapam outros gêneros, história, ciência e alguns que são classificados mais no geral com uma etiqueta grafada diversos.
Tenho que sair rapidamente para o meu almoço, pegar o livro que deixei encomendado ontem. Bem que vai ser útil para um projeto de tese de mestrado, que parece se avizinhar nas cercanias de minha criatividade. Eu sei que vou escolher o tema mais difícil de ser abordado. Eu sou desse jeito, um sujeito difícil. Mestrado? Ora, o que estou dizendo?
Eu escrevia com pressa, mas perdi toda a pressa, uma questão de ritmo é sempre minha questão. Sinto-me como se estivesse sentado numa pedra bem no meio do deserto, para onde quer que eu olhe, nada.
Eu estava agora a pouco na livraria, aguardando o livro encomendado. Tantos livros são escritos. Eu que comprei um tanto desses que foram escritos, agora quero escrever um. Quero? Não sei se quero.
O Centro da cidade, tantas pessoas! De repente, um sentimento de estranhamento: o que são as pessoas? Ao que me parece, esse poço de emoções baratas. Eu quero ser esvaziado dessas águas. As pessoas e seus rostos, seus olhares, seus esgares, fico cá pensando na misantropia de minha grande amiga, talvez também esteja se perguntando o que são as pessoas. Ou talvez não. Talvez uma tristeza na qual eu não tenha prestado atenção. Talvez esteja ferida de uma batalha que trava sozinha, sem que eu possa fazer qualquer coisa. Sinto sua falta, mas parece que estamos vivendo nossos momentos em que algo mais nos falta. Isso mesmo. Aprendendo sobre o que exatamente nos faz falta. Ou quem sabe aprendendo a não fazer falta para nada e ninguém desse mundo. Uma arrumação, provavelmente, da bagunça interior. Um tal de um “sentimento de não estar de todo”.
Pois foi chafurdando na minha bagunça de papéis que encontrei vários poemas, que fui lendo quase com uma devoção extraordinária. Prestando atenção em como os poetas de verdade usam as palavras, tantas palavras mais do que as que eu uso, e fazem suas tão belas construções, pintando os sentimentos das mais variadas cores. E fiquei dessa vez me perguntando por que e para quê. Por que temos que ter tanto para dizer, o tempo todo, porque essa tagarelice escrita e rimada, bem construída? Melhor que ficássemos todos calados. Melhor que desistíssemos de achar que podemos querer mudar ou melhorar o mundo.
Ainda olho a caixa de correspondência, o telefone não toca e nem eu toco nele. Um e-mail eu não consegui responder. Parece que finalmente não tenho mais nada a dizer. Mais nada. Meu silêncio me atormenta, o vazio que fica me assombra. Não sei mais o que fazer das coisas do coração. Não sei mais. Silenciar. Entregar-se de uma vez por todas às lembranças de tudo que, afinal de contas, passou e, passando, acabou. E que não parece querer recomeçar.
Quanto ao coração, melhor seria que nunca tivesse amado, do que a possibilidade de um dia não amar mais. Do mesmo modo, melhor era nunca ter sido amado do que não ser mais amado. Esses instantes em nossas vidas tão impossíveis de serem eternos. E esse gosto por eternidade que temos por mera recaída do viver. Não! O tempo nem apaga e nem cura nada. Muito menos o tempo vence. O tempo apenas devora. A imagem mitológica, na minha humilde opinião, é a que ainda tem mais peso.
Então vamos seguindo em frente, sempre com um pedaço a menos do que somos, devorado pela voracidade do tempo. Errônea impressão de que somos mais enquanto o tempo flui. Vamos no fluir do tempo sendo cada vez menos, até sermos nada, nosso fim último e mais provável. Tudo isso sem grandes inquietações existenciais. Verdade!
Diria-nos Horácio, nessa hora tenebrosa: carpe diem.


Última semana de setembro

Semana cheia essa que passou, a última do mês de setembro, afinal um mês qualquer, com suas coisas ruins e boas, cada uma delas na justa medida. Cheia de emoções corriqueiras, nem grandes nem pequenas, médias talvez, uns tantos minutos de fama que me tiraram do ostracismo, para me devolver a ele com a mesma rapidez e desenvoltura. O que fazer depois de conquistar Tróia? Querer conquistar Roma. E o que fazer depois de conquistar Helena? Querer o amor da própria Afrodite. Toda megalomania, ainda que só desejada, sonhada, tem que ser controlada, colocada nos limites do possível. Será mesmo que tem?
Na segunda não fui ao trabalho. Recebi um telefonema da universidade, avisando que dois poemas dos três que coloquei no concurso foram classificados. Classificados Beijo e Errando Poesia, fiquei matutando por que é que As Horas ficou de fora. Talvez tenham sido poucos concorrentes. Disseram que não, que foram apresentados duzentos poemas, então dos treze classificados dois eram meus. Desci imediatamente o chicote na megalomania. Calma lá com o andor.
Mas também me convidaram para ir ao estúdio de rádio da universidade, para gravar as minhas poesias, que na quarta-feira seriam colocadas no site da universidade. Fui lá e gravei. A professora responsável disse que estava ótimo, logo de primeira leitura, o operador da mesa de som, no entanto, pediu-me para repetir um ou dois trechos. Depois fui conferir o resultado no site e odiei a minha voz de taquara rachada, minhas poesias lidas sem a devida entonação e não passando a emoção adequada. Autocrítica inevitável! Eu bem que tinha dito que preferia as poesias lidas na voz do Paulo Autran. Não! Eu não sou nada bobo.
Na quarta-feira, estavam todas as poesias no site. Deu um frio na espinha, achei três ou quatro muito bons e eles não eram meus. Comecei a ensaiar saber perder, afinal de contas, não se pode ganhar sempre. E também nunca é possível agradar a gregos e troianos, o que se dirá também dos romanos, que achei de colocar na peleja. E aquela minha voz de taquara rachada. Tudo bem, não sou locutor de rádio, mas sou um reles poeta.
Enquanto o resultado não vem, vamos ao simposio. Nesta mesma quarta ouviu-se sobre Nietzsche, Para muito além do tédio. Os expositores foram competentes no que prepararam. Mas cá no ouvido doeu um pouco a história de trabalho contra o tédio e uma outra história sobre ócio produtivo. Talvez eu deva escrever algo sobre como conviver com o que achamos que é tédio, embora eu concorde que ele exista, prefiro ele a um monte de coisa por aí. Quanto ao ócio, taxa-lo de produtivo, ou querer que o seja, é transformar o ócio em algo que ele não é. Ócio é ócio e pronto. Se estiver a produzir alguma coisa, por simples e pequena que seja, já não tenho mais ócio. Preciso pensar melhor nisso.
Valeu esse dia para depois da palestra, a caminho do metrô, achar aquele que seria meu futuro gato de estimação. Quer dizer, não fui eu quem o achou, minha grande amiga o achou por mim. Levamos ele para a casa dos gatos, onde já há sete residentes e pelo menos uns cinco visitantes nos telhados vizinhos. Hospedou-se lá por essa noite ao menos, para a decisão de quem ficaria com ele, Trinity ou eu. Eu ainda acho que ela planejou tudo direitinho, porque depois poderá se ver que quem ficou com ele fui eu.
Na quinta-feira perdi grande parte da palestra, sobre o tempo, porque fiquei perdendo meu tempo aqui no Centro da cidade, noite quente, cerveja gelada no copo. Mas foi o dia de decidir levar o gato. Lá fomos nós dar uma nova moradia para esse gato. Agora com nome: Logan. Pois é, por algum tempo, Trinity carrega nas costas uma marca de suas garras, quando tentou fugir. Fugir talvez não, tentou voltar para a rua. E ele foi para casa na caixa de transporte, no metrô, e nem sabíamos se isso era permitido ou não.
Sexta-feira, dia de trabalho e final do concurso de poesia. Eu preocupado com o Logan sozinho em casa. Pronto! Agora eu tenho um gato. Sempre me dá um nervoso não sei porque nessas horas de resultados. Se envolvesse sorte, tudo bem, porque sei que não tenho sorte, então qualquer um ganharia. Tivemos que ler os poemas e eu subi ao palco para ler logo os dois. Tive que caprichar dessa vez na entonação e na emoção da leitura, afinal, pela primeira vez nesses concursos, minha filha estava lá prestigiando. Terminadas as leituras, aqueles trinta ou quarenta minutos de coral, musica para alegrar o ambiente. Eles retornam logo depois com o resultado. Deram-me o segundo lugar. Quer dizer, premiaram-me pela terceira vez consecutiva. Ainda tenho que ouvir aqui dos amigos do trabalho que eu não ganhei nada, perdi o primeiro lugar. Primeiro lugar? Que tolice imensa, penso eu, sem dizer nada, com minha costumeira modéstia. A questão é que começo a ficar preocupado, porque sei o que me leva a escrever poesias, e sei também em que estado de espírito as escrevo. Sempre coloquei nesse concurso as três a que tenho direito. Em 2005 deram-me o terceiro lugar, o primeiro lugar em 2006 e agora o segundo. Ano passado classifiquei duas em dez e este ano duas em treze, dizem que essas treze selecionadas de duzentas. Isso me preocupa bastante. Se as pessoas gostam do que escrevo, tenho que continuar a escrever. Nada de pretensões literárias e monetárias, ao menos por ora, que sou perito em não ganhar dinheiro. Mas é incrível ver alguma coisa dar certo nesse universo de coisas tortas e desengonçadas, mal ajambradas que tem sido a vida.
Logan estava vivo na sexta-feira, depois de ficar o dia inteiro sozinho. Deve ter ficado dormindo. Comportou-se bem na festinha que fizemos para ele, comendo somente sua ração e não querendo nosso macarrão com arroz e fritada de ovos. Experimentou o colo de todo mundo, brincou e fez gracinhas. Gato atrevido e exibido, loiro de olhos claros, pensa que é o Brad Pitt.
No sábado, tendo eu dormido até quase meio-dia, tive que ter com ele uma conversa séria sobre como as coisas funcionam em casa. A caneta se mexendo sobre o papel não é brinquedo, mesa não é cama quando tem comida em cima, eu não como a comida dele e ele não come a minha. Eu recolho as fezes dele e ele não vai precisar recolher a minha. Tudo bem que dividamos a poltrona, ela é suficientemente grande para nós dois, mas não serve para afiar as garras, assim como não serve também as costas de minhas amigas.
Domingo teve mais visita para o gato. Três dias em casa e ele já recebe para ele mais visitas do que eu. Tenho que insistir sempre naquela história de posição na cadeia alimentar, mas ele não parece gostar dessa história.
Ontem tive que acabar de arrumar toda a minha papelada depois da estante nova na sala e uma redistribuição dos livros. Ele parece não perceber o que é trabalho e o que é brincadeira. E ontem estava simplesmente impossível, correndo pela casa toda.
Pois é, eu até que estava bem quieto no meu canto.
Mas tinha que me aparecer um gato no meio do caminho.

PS.: com o prêmio do concurso de poesia, mais cinco livros em minha estante, três do Umberto Eco, um Michel Onfray e um Drumond de Andrade. E vontade nascida no final de semana de começar um projeto de tese. E não vai ser sobre epistemologia.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Logan e um soneto

Um soneto ronda-me desde ontem. Poesia, esses pequenos triunfos e significativos fracassos. Esses traços de palavras, esboços e rascunhos da imaginação. Falar que a distância de quem se ama torna o próprio amor distante, essa aventura errante que vai desvanecendo, muito aos poucos, um tanto de nada a cada instante. Até que se esqueça dele os nomes e as cores, os sabores e os toques, os retoques e os recalques, os tiques, as mais boas lembranças que vêm e vão na mente como cenas de um filme muito antigo que se precisa ver de novo, do qual já se esqueceu o enredo. Lembrança tola de que esse filme era bom. Só isso e mais nada.
Como explicar que o que sobra é apenas vazio? Algo que falta em algum lugar, algo que ali estava e não está mais. E dizer que há que se cansar de sentir aqueles velhos desesperos de outrora. Essa tolice de andar na rua como se me faltasse um braço ou uma perna, um olho no meio da cara, como se eu não tivesse bem no meio dela o nariz. Sim, eu tenho tudo, então é andar na rua como se tivesse escrito em minha testa que estou sozinho.
Se pudéssemos escolher por quem nos apaixonarmos... eu escolheria me apaixonar por você. Mas a idéia não é minha, é sua. Que fique com os frutos do encanto, caso haja fada madrinha ou qualquer coisa que o valha.
É assim que sempre escolho contemplar os mistérios desses instantes todos, desse enredo sem propósito. Escolhi de tudo o que podia o pior: a paciência e a contemplação, o compasso de espera, talvez a resignação (para meu desespero), escolhi a aceitação de estar sempre à sombra da luz, atrás das cortinas, nos bastidores do espetáculo da vida, espetáculo tão cheio de rostos sorridentes e bocas que se beijam, de mãos dadas em passeios que não darei, cheio do conforto do abraço sempre na hora certa, um colo onde reclinar a cabeça, a companhia de alguém que lhe quebre o silêncio e que se aquiete com devoção para compartilhar até com o seu silêncio. Esse espetáculo eu posso imaginar e até escrever, posso assistir de um lugar privilegiado. Só não posso participar dele.
Eu vou olhar a caixa de correspondência ainda por muito tempo. E cada vez que não tiver uma carta vou poder me dar por feliz, por ter a certeza de que alguém lá tão distante vai estar feliz, sem o peso e a abrangência insuportável de meu amor tão complicado. Vai significar que o que eu queria sem muito querer aconteceu, ela estar definitivamente livre de mim e esse meu jeito tão implacável de amar. Como eu fico? Quem disse que há tempo e arcabouço para constituir nisso tudo algo que beire à preocupação? Aliviado? Tranqüilo? Sereno? Contemplativo mais uma vez diante do inevitável! E isso é só. Não sei como fico, eu só sei ficar.
Sinto que me abandonam os velhos sonhos. E não sei o que sonhar a partir de agora. Não creio em tédio e nem em ócio produtivo. Eu sou quem assombra o demônio do meio dia, minha acedia é um silêncio profundo tão bem cultivado. E quero mais silêncio, muito mais silêncio do que posso fazer. Por dentro e por fora.
Não vamos dar nomes a essas coisas. Os nomes são nomes e as coisas são as coisas, que se encontram por acaso, um mero acaso, n’algum pensamento. Solidão, tristeza, melancolia, medo, amor e suas necessidades. São coisas que precisam de outros nomes ou nomes que precisam referir-se a outras coisas. Nada mais que isso.O nome dele é Logan. Achado na rua já me vem com duas protetoras hospitaleiras e uma madrinha, por ele arranhada nas costas, numa tentativa de fugir de seu destino. Minha casa, onde não me fará companhia e nem eu a ele. Haveremos de compartilhar nossa solidão e nosso silêncio. E vamos sempre nos encontrar como no primeiro encontro, quase que por acaso. Logan, o negócio é o seguinte: todo o espaço desse apartamento é meu enquanto seu. Assim está tudo muito bem dividido. Bem vindo. Que sejamos companheiros de batalha como numa fábula maravilhosa. Só uma fábula.
Depois termino de escrever o soneto. E falo mais do Logan, quando ele tiver vindo para casa.

quinta-feira, setembro 20, 2007

Eu queria falar do Johnny Deep

A sensação que eu tenho não é lá muito simples, mas talvez uma imagem ajude, uma imagem que se tenta descrever por meio de palavras, é claro. É como se o mundo todo, como se tudo em volta tivesse ficado numa espécie de estado de suspensão, ou como aquelas cenas dos filmes em que o personagem perde os sentidos, corta-se o som, o ritmo cai para câmera lenta. Isso! A vida ficou em câmera lenta, sem som. Como nos meus sonhos, que não têm cor, rostos ou som.
Eu vou dormir numa noite e tenho tudo. Acordo no dia seguinte e não tenho nada. Algo como andar numa cidade deserta. Essa sensação de sempre ser um fantasma. Impressão de que não me vêem.
A minha tristeza tem dessas cenas. Eu fico pensando as coisas ditas, as não ditas, as coisas ainda por se dizer. Construo enredos que soam como uma ficção do que a vida poderia ter sido. Futuro do pretérito, odeio esse tempo verbal. A rotina parece ser melhor descrita no gerúndio: indo e vindo, fazendo, tentando, trabalhando, querendo, fugindo, pensando. As mesmas coisas. E nossos desejos parecem vir naquele maldito futuro do pretérito: iria, viria, faria, tentaria, trabalharia, quereria, fugiria, pensaria, seria, teria. Assim por diante.
Não conhecer o caminho e andar em círculos. Perder-se desconhecendo o endereço de onde se quer ir. O que mais parece a vida? Isso cansa. Mais que isso, esgota. Isso tira o tudo do nada que conseguimos ser.
Isso seria uma descrição do vazio? Não! A noção de vazio seria ainda pouco para descrever. Talvez seja a descrição dos limites (ou da limitação) para descrever isso. Ou seja, dá para ir até aqui, além desse ponto é um “deus nos acuda”. Vazio existencial ou existência vazia, não sei. Filosofia demais para quem na verdade se pretende um poeta ou, no mínimo, um bom contador de histórias.
Eu confesso. Não posso estar mesmo bem com tudo isso. Mas essa resignação tem como fim manter-me vivo, mais ou menos inteiro. Seria muito bom, como você mesma disse (isso mesmo, escrevo para você, amiga), que a gente pudesse escolher por quem se apaixonar. Ou talvez escolher não se apaixonar nunca. Não sei. Enquanto não inventam esse fabuloso passe de mágica, vou vivendo minha vidinha de animal em extinção: romântico e idealista. Um reles sonhador, algo tão fora de moda quanto anágua, espartilho, sei lá mais o que.
Nós só temos esta vida (não é verdade?), como diria o Kundera, e não podemos alterar nossas escolhas, os rumos traçados, evitar as conseqüências do que já foi feito. Alguma coisa à frente tem conserto sim, outras nem tanto, e outras ainda, são irrecuperáveis. Tivéssemos mais de uma vida, poderíamos escolher à vontade, sem pensar muito, pois haveria a possibilidade de mudar de opinião.
Eu teria feito... pronto! Eis aqui de volta aquele terrível tempo verbal.
Então o que vou dizer agora para você, amiga de todas as horas? Certo é que precisamos de namorados/namoradas, exercer essa nossa capacidade de ser românticos, e precisamos também de uma causa que justifique nosso idealismo. Mas você consegue imaginar o rosto do seu namorado vindouro? Eu me pego pensando nisso, como vai ser o rosto da próxima mulher que eu vou amar. Isso é uma droga, atestado de incompetência. Acho que deve haver um jeito de olhar que não estamos usando muito, um jeito de olhar todas as coisas, talvez um pouco diferente desse que usamos agora. E parece que todas as outras pessoas sabem usar.
Estou triste sim. Esse vazio que sinto aqui dentro é o pior de todos que já senti. Às vezes dá até um certo medo de tudo ser assim mesmo, e eu em minha teimosia não querer aceitar. Então o mundo está todo ajustado como bem deve ser, e o desajustado sou eu. Preciso encontrar um lugar em que possa manter meu desajuste, preciso conquistar meu lugar no hospício que me cabe e que ainda nem foi construído. Deveriam criar um museu da humanidade, e lá estaria eu, com meus companheiros, o australopiteco, o pitecantropus, o neandhertal, e outros mais.
Estou triste e essa tristeza é a mais estranha que já senti. Triste sem saber exatamente por que, sem encontrar dessa tristeza a origem e a verdadeira razão. Mas em vez de me encolher num momento de desespero, derramar algumas boas lágrimas, lamentar tudo isso com a boa e velha poesia, o que eu fiz parece que foi endurecer o coração. E isso agora me dá medo. Eu não me conheço e nem posso ser reconhecido com essa possibilidade de ter endurecido o coração.
Só me falta agora, para minha ruína, eu me tornar extremamente um pouco mais racional. Isso seria o fim.
Agora é viver no reino do absurdo, essa fábula que parece acontecer somente dentro de minha mente. Meus sentimentos, meus tão desperdiçados sentimentos. Eu penso nela evitando pensar nela. E evito pensar nela, o tempo todo evito, e estou pensando. Sério. Queria não mais pensar. Eu fico lembrando as coisas que quero esquecer e acabo esquecendo é de esquecer. O que me resta é fingir que não foram assim tão importantes. É uma lástima. Se tem uma coisa que nunca fui capaz de conseguir (e nem sei se vou ser ainda) é de mentir a mim mesmo.
Sinto falta dela e vou sentir ainda muito. Mas é uma dor com a qual afinal de contas você se acostuma, até deixar de ser dor e ser uma outra coisa, sei lá o que.
Estou cansado.
E queria falar tanto do Johnny Deep, mas não falei.
(E depois lendo seu post, percebo o quanto chato também tenho sido. Queria falar muito também de outras coisas, todas elas. Talvez de alguns sonhos não meus, de poetas e escritores, cineastas e atores, muito melhores do qualquer coisa que eu tenha sonhado. Talvez até do que qualquer um tenha.)

sexta-feira, setembro 14, 2007

Solilóquios...

Mais uma vez aqui para a solidão dessas páginas. Perguntar-se por que realmente fazer tudo isso, quer dizer, falar, falar e falar, pensar, pensar e tanto pensar. e agora, hoje em dia, essa tola necessidade de registrar tudo aqui. A pequena história insignificante de uma vida insignificante. Exercícios não do pensamento, mas de qualquer pensamento. Do pensamento não de uma pessoa, digamos, mas de qualquer pessoa, ou de uma pessoa qualquer. E quaisquer pensamentos parecem essa coisa infinitamente importante.
É isso mesmo. Não me importa se você tenha um câncer no cérebro do tamanho de um limão. Estou aqui para falar da minha unha encravada.
Solilóquios de uma alma perturbável, sensível a tanto dessas coisas insignificantes. O engraçado é que este é exatamente o espaço em que temos acesso a milhares de pessoas e elas a cada um de nós, mas esse é o espaço da mais absoluta e inegável solidão.
Brain storm não faz meu gênero, mas vivo permanentemente com essa garoa de pensamentos a me povoar o cérebro. Sempre uma dia a mais as mesmas coisas, eu sempre voltando a todos os pontos por que já passei e os mesmos olhares mesmo para as coisas diferentes. Tudo tão repetitivo seria bom se tudo estivesse bem e fosse bom. Mas não, amargar a sensação de que tudo demora em ser tão ruim.
Algumas palavras atrás por aqui mesmo, peguei-me dizendo que “melhor do que precisar de pouco é precisar de nada.” Soa como uma verdade irrefutável, mas como conseguir precisar de nada? Seria piegas dizer que preciso de sol ou de chuva, de água e de ar, um chão para meus pés não afundarem na terra quando andar, preciso de um pouco de verdura e legumes a cada dia, cereais, frutas e proteínas. Bom, este seria o estado de natureza. Mas fico agora pensando como que este estado de natureza acabou.
Eu penso que podemos ter tudo que precisamos sem ter a posse disso. São os exemplos dados acima. Mas alguém tinha que inventar-nos outras necessidades, estas supondo sua posse. Seria a posse, a propriedade, o grande problema da humanidade? Não sei, filosófico demais para meu gosto. Não quero mais falar disso, falem vocês. Talvez eu ainda fale das necessidades, ou melhor dizendo, do que poderia ser necessário realmente para se viver bem.
Mas na verdade não sei bem o que estou fazendo aqui. Esse é exatamente o tipo de papo que menos gosto. Fica aqui o registro dessa coisa por mim tão “desgostada”.

D qualquer modo, gosto muito ainda das pessoas. Não vejo minha vida a não ser rodeado de pessoas, conhece-las e ser por elas conhecido. Não sou anti-social, não tenho a mínima vocação para a misantropia. As pessoas me são caras ainda e sei que serão ainda por muito tempo. Gosto de histórias de vida, histórias de infância, experiências alheias e diferentes dessa mesma coisa que é assim para todos nós, a vida. Gosto da visão outra e diferente da minha que possam ter sobre qualquer coisa.
Fórmula básica: gosto de pessoas porque sou também uma pessoa.
E gosto de bichos, porque sou também uma espécie de bicho.
Mas chega por ora com essas divagações.

terça-feira, setembro 11, 2007

Um réquiem

Não dá para falar coisa com coisa, não numa missa fúnebre. Entendo agora o que é vomitar coelhinhos: é um problema que sai à força de dentro de você.
Geração e corrupção de todas as coisas. As folhas mortas no parque me fazem atinar com a idéia de que não sei o que é feito das folhas que morrem e caem de mim. Elas não são repostas. Nenhuma folha nova nasce, e a gente só perde e vai perdendo até o tempo de não perder mais.
Agora, de novo, tudo é só meu. Os meus dias que amanhecem como devem ser, as tardes que desabam soturnas e as noites que pesam sobre mim. E são só minhas as madrugadas adentro, em que pasmar na sacada joga meu olhar atônito para a luz de estrelas mortas. E apagadas. Porque distantes. E eu tenho a impressão de que nunca vou entender direito essas distâncias. É tanta luz apagada de folhas secas no chão céu do parque. Um réquiem para as folhas mortas e estrelas de luzes que se extinguiram tão distante de meus olhos.
Um réquiem para mim a esta hora: réquiem aeternam.
Minhas palavras soltas ao vento compõem os melhores poemas de minha tristeza, mas não foram escritos, vagam no infinito, vêm e vão, sempre estão partindo e de volta. Quero não mais sentir o enfado de cada inspiração. Estou cansado de minha visão de todas as coisas.
Tudo em volta são fragmentos. Sentado em minha sala, há num canto um fragmento de um poeta, noutro o de um desenhista. Há por toda parte fragmentos de um leitor contumaz, aqui e ali os de um filósofo. Em toda a parte espalham-se fragmentos de mim. Nada na vida se vive de maneira completa e dessa vida aos pedaços estou farto, dessa ânsia aos bocados, dessa vontade de ser alguma coisa aos goles, gota por gota. Não me agrada mais esse prazer homeopático, dessa felicidade ministrada em muito pequenas doses. Não quero mais as pequenas alegrias, prefiro até as grandes tristezas a manterem-me em estado de constante melancolia. Não quero mais nada pequeno, pequenas graças, eis que aceito as grandes desgraças. Aceito tentar sorrir sempre com tudo em volta tão sem graça.
Agora não preciso mais esperar. Por nada. Nem por um futuro incerto que agora sei que certamente não vem. Não vou precisar daquela agonia a olhar a caixa do correio, os dias de férias, nem vou precisar me atormentar com certas lembranças tão doces, tão plausíveis, tão possíveis e agora tão distantes. Muito melhor do que precisar de pouco é precisar de nada.
Decerto uma espécie de ilusão terá sido tudo isso, um sonho bom a se repetir mais uma vez na minha vida e quantas vezes mais? Vontade de dizer que eu não quero mais.
Que sentimento? Leveza. Estranhamente um sentimento de leveza, mesmo com todo o peso da solidão, mesmo com todo o peso das noites e madrugadas que ainda irão desabar sobre mim, eu sei. Mesmo com o peso do próprio corpo jogado no chão, mesmo com a incapacidade de ir buscar lágrimas onde elas nunca estarão. Nem chorar eu consigo.
Vazio. Mais umas das minhas palavras preferidas e suas mais inumeráveis traduções. Vazio, esvaziado, tirado de si qualquer e todo conteúdo, qualquer idéia de próximos sorrisos, qualquer ilusão de momentos se repetirem quando forem tão bons. Vazio como o vazio da imensidão desse céu escuro, entregue a essas insuportáveis madrugadas, essas noites de pensamentos em perambulação.
Quero me irritar contra tudo isso, revoltar-me de vez, mas não posso. Esse terrível e incômodo sentimento de aceitação.
Quero não sentir que há muito mais dentro de minha mente do que fora no mundo inteiro, em todo o universo. Para quem não consegue entender essa desproporção, basta não pensar estritamente em apensas três ou quatro dimensões. Tudo fora é tão pequeno, mas tão pequeno, que cabe mil vezes dentro de um pensamento. E cansa-me tanto pensar tudo mil vezes, cansa-me mil vezes olhar para as mesmas coisas que mudam tão devagar e demoram a passar. Quero luz e velocidade, quero a velocidade da luz para pensar. Minha imaginação traiçoeira, tinha tanto ainda por me ensinar. E ficou calada em mim, displicente, desprezando-me com uma desprezível exatidão.
E uma frase estranha ao diálogo inteiro: nós só temos medo da morte porque não pensamos nela.
Tudo acaba, tudo perece, tudo morre. Nem que seja para nascer de novo. Eu não sei mais quantas vidas tenho. Nem quantas tenho gastado nessa aventura desesperada de viver. E vou viver tudo o que é mais que vida. Vou sobreviver. Como sempre. Seja para meu bem ou para meu mal.

O dias amanhecem e a vida continua, outros eus, outros vocês, outros eles e elas, outras coisas dentro dos mesmos pensamentos, outras paisagens tantas dentro dos mesmos olhares. Os dias amanhecem e nós temos sempre que levantar.
Empunhar a velha espada.
A última batalha nem começou.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Eu te amo e pronto!

Eu te amo e pronto. Assim como quem termina uma obra. Dá os últimos retoques, olha-a e fica satisfeito com o que vê e diz: pronto! E depois tira o ultimo dia para descansar e chama esse dia de eternidade.
Dei os últimos retoques nessa minha obra, olhei para o que fiz e fiquei satisfeito. E tirei a eternidade do ultimo dia para descansar de tudo. Eu te amo! Pronto!
E nunca mais vou mexer nisso, mais nenhum retoque, nenhuma pincelada, nenhuma desbastada a mais nesse tão caro mármore de Carrara, nenhuma palavra a mais nesse poema, mais nenhum verso nessa poesia, mais nenhuma cena nessa peça, nenhuma tomada nesse filme sublime, mais nenhum capítulo nessa história, a mais bela que teria lido. Eu te amo! E pronto!

Há os que precisam de motivos para amar. E os que amam e desconhecem absolutamente qualquer motivo. E andam por aí satisfeitos, mais do que isso, felizes por serem capazes de um amor tão assim... sem motivo. Motivo quase que equivale à razão. A razão de eu te amar é... razão? Eu te amo e pronto! Tipo assim pirraça de criança, mania de velho, idéia fixa de um sonhador, certeza de um visionário, antecipação de um profeta. Se preciso for, eu te amo por pura teimosia. E por vocação. Eu te amo até por um certo talento. Não me envergonharia de te amar até por devoção.

Eu te amo porque te vi passar na minha vida. Por um brilho que vi em teus olhos, pelo calor e maciez das tuas mãos. Eu te amo por teu jeito de andar e falar, por teu jeito de escutar, teu jeito de desenhar um sorriso em teu rosto, pelo perfume de teus cabelos, pelas curvas de teu corpo, pela beleza incompreensível de tuas costas que são esculturas. Por tua boca que me engoliria como obra tua, por teus seios, por tuas pernas fortes e por tua pele que era para estar sempre à mostra, desde que andasses nua. Eu te amo porque encheste de vida as noites de minha rua. Eu te amo e pronto!

Eu te amo por cada pedaço de tua história, sempre emendados a outro e mais outro, a teu bel prazer, um pedaço em cada pedaço e uma história em cada uma de outras tantas histórias, a volta para casa da escola num dia de chuva, um tênis afundado no barro, um banho de mangueira, um gato macho com nome feminino, nem falo de tuas aulas de catequese. Eu te amo por tudo isso que lembro e por muito mais que não lembro. Eu te amo e pronto.

Eu te amo por cada lembrança que deixaste em minha vida, teu rosto entre meus livros na mesa, tuas alquimias no fogão, teus banhos narrados... ah! E as conversas pela janela do banheiro, por te ver tanto lendo deitada na cama, por te ver entrando e saindo daquele apartamento, por aquela luz acesa quando eu chegava à noite, por me pintares os olhos, por me abraçares dormindo, por passeares meus passeios, por enfeitares os meus dias e por iluminares minhas noites. Eu te amo e pronto!

Eu te amo por tudo o que disse. Por tudo que não disse ainda. Por tudo que ainda tenho a dizer. Por tudo que nem sou capaz de dizer.
Não sei. Não sei. Só sei que te amo!
E pronto!

Músicas

Medi os céus, agora meço as sombras,
A mente era dos céus, o corpo repousa na terra.
EPITÁFIO DE KEPLER (escrito por ele mesmo)

Adágio
Sobre palavras, palavras de meus dias mais insanos. Toda a insanidade de minhas horas mais tristes. Quem dera tudo isso coubesse em palavras.
Epitáfios. Escrevi tantos. Que escrevam agora o que quiserem. Não quero somente os verbos “repousa” e “descansa”. Não há descanso nem repouso. Há apenas, e haverá de haver, apenas o gradual esquecimento de quem desapareceu.

Presto
Desapareceu, enfim, na tranqüilidade do silêncio.
Aos que ficam: esquecimento.

Largo un poco maestoso
Tranqüilidade. A minha mais almejada e mais utilizada das palavras. Paz, sossego, quietação, serenidade. Repouso do corpo ou do espírito. Distância é uma palavra capaz de expressar mais do que qualquer outra a realidade que indica. É uma palavra que você sente. E que pesa sobre você. Torna-se quase que material, palpável. A mais visível das palavras.
Tranqüilidade é tudo o que posso ver de olhos fechados. Um tolo sonho, um desejo impossível. Há que se dar conta do turbilhão de pensamentos, enquanto pensar. Mas não creio em controles. Enquanto não encontrar um modo de não pensar. Aquietar as palavras dentro de mim. Ter próxima e possível uma certa paz. Deve ter havido um tempo da tranqüilidade. Mas definitivamente esse tempo não é hoje. Vivemos o tempo da intranqüilidade, tempo de grades nas janelas e trancas nas portas, sejam de nossas casas ou de nossos sentimentos. Grades e trancas. Tempo de esconder-se, de dissimular, de fingir que não há tudo o que nos toca e afeta. Tempo de não reconhecer todos os medos. Tempo apenas de entregar-se a todos os medos.

Andante
Se houvesse uma espécie de habilitação para se viajar nas palavras, minha carteira já deveria ter sido cassada. Perdi a noção de todas as palavras que estão em minha órbita. Meu universo de palavras, tão restrito, minha confusão cósmica de frases e períodos, a desconexão mais provável entre o que sente e o que fala. Tanto que chego à conclusão de que devia pensar mais e falar menos, ou nem falar e nem pensar. Evitar, enfim, certas reflexões tão problemáticas. Isso tudo quando não me é difícil de perceber que todos em volta estão a me estranhar as palavras, portanto é hora de calar. Porque tudo o que falo me põe distante de tudo e só faz tornar-me mais indefinido do que posso imaginar, abrindo e gerando desertos entre mim e o interlocutor. Este último, para mim, aquele que nunca ouve, só escuta um balbuciar de palavras. Tudo que me restou parece que foi esse jogo mal fadado de jogar ao vento minhas palavras, nem que para que não me ouçam, mas para que olhem para mim, que não me entendam, mas que vejam pelo menos quem fala, perdido em meio a tantas palavras que perderam todo o sentido. Aliás, esse que sou que precisa aprender a calar, morrer nesse grito de vida incontido. O resumo da ópera é que estou cada vez mais perdido, à mercê de tudo o que não fiz, e a realidade está a cobrar-me que algo seja feito. E minhas palavras não servem para construir um mundo, nem para mim, nem para ninguém. Desisto, então. Falar menos, pensar quase sempre pouco. Pelo menos pensar mais do que fala. Escrever, talvez o que me reste de verdade, será daqui para frente somente essa válvula de escape. Essa boca do vulcão.

Largo
Cai a noite, a me acender as estrelas. Cai uma lagrima a me apagar a chama do que me mantém vivo. Consomem-me lentamente essas horas do dia, com tudo o que há de mais indefinido. Passados assombrados, futuros improváveis e um presente sem sentido. A olhar tudo em volta tão mudado de tudo quanto me acostumei ver. Tudo tão desencontrado de mim.
Os telhados das casas. As paredes dos edifícios. A história já esquecida de quem ali pôs cada telha. Pedra sobre pedra a consumir para existir tanta força de tanta vida. Os tijolos mataram as arvores. As janelas acesas riem-se disso tudo. E as calçadas de cimento reservam um pequeno quadrado por onde as raízes deixam brotar seus troncos e galhos. As folhas me olham tristes do alto dos seus ramos eu a olhar o chão de tantas folhas mortas.
Ao meu lado 2260 páginas com o significado de 200 mil palavras. E eu não sei agora o que dizer. Eu não sei mais o que dizer... eu não sei! Por detrás de tudo isso um céu que eu não sei medir, enquanto vou medindo as sombras.
O artista é sempre um solitário que vê luz e desenha sombras. Todo esse barro ordenado em telhas e tijolos são escombros. Todas as folhas, sequiosas de ação e reação, olham para mim. Eu não. Elas preparam um colchão para eu me deitar no parque, dormir para sempre debaixo das estrelas. Tranqüilidade. Silêncio. Esquecimento.

Presto
Espelho. Sempre é, mais que o objeto que a palavra indica, o que esse objeto mostraria. É um olhar para si mesmo. Sempre que uso essa palavra, há esse olhar, esse tentar ver a si mesmo. Tentar ver-se como lhe veriam, ou ver como quem imaginando como é visto. Enfim, a palavra espelho é “introspecção”, esta mesma difícil e inaceitável, hoje em dia, muito pouco usada. Começou de um gesto material mesmo, um gesto real, olhar-se de verdade no espelho e ver-se, saber seus contornos, as características por que é reconhecido. Partindo daí para ver o que não são meros contornos. Colocar-se diante do espelho é sempre alienar seu modo de ver, suspenso por uns instantes, para refletir sobre como lhe veriam os que olham você.
Imensidão. Essa é fácil, é tudo o que é maior do que posso ser, e isso não é pouca coisa (não o que posso ser, mas o que é maior). Uma arvore imensa na janela convida a olhar um parque imenso, cuja visão não se restringe aos seus limites, mas vai além, para muito além de todos os parques, abarca todos os parques, e bosques e florestas que nunca vi, mas que trago vivos na imaginação. E tenta também definir, essa palavra, a vida como um caminho. Tente caminhar por mais de quarenta anos e veja aonde vai chegar. Tantas paisagens diante dos olhos, tanta gente, tanto céu, tantas ondas indo e vindo no mar (a imensidão mais poética e absoluta, depois do céu), tantas estrelas, e luas cheias, tanto querer saber, tanto indagar a respeito de tudo. A mente dos poetas, dos escritores, dos cientistas, dos bêbados do centro da cidade, dos mendigos nas praças ou nos bares em que tomamos nossa cerveja, tão pequenos a ponto de cabermos dentro de nosso próprio copo. O olhar aguçado das crianças, a força diante de tudo que têm os jovens, a plácida resignação e contemplação dos velhos diante da morte.

(Heavy Metal – um descuido do andamento – ma un poco scherzo)
Morri. Ora, não me venham dar um velório piegas. Eu posso merecer mais. Não digam nunca “ele foi tão bom”, porque eu não sou, bem, não era, não fui, sei lá. Pessoas muito melhores do que eu encontram-se por aí de cambulhada, facilmente. Não sei se quis ser assim tão bom, ou bonzinho. Terei saído da vida tendo passado vontade de ter dado uns bons socos e alguns pontapés ou de ter dito mais impropérios. Podem crer, há quem os mereça. Terei dito menos palavrões do que desejaria. Mas não gosto de violência.
Esqueçam os epitáfios! Escrevam-nos para a sua própria vida!
Não! Não! Não me venham com esta de relembrar os bons momentos! Tentem, então, digam meia dúzia deles, três, dois, um! Não irão lembrar nenhum. Não há bons momentos. Tirem-me da história e ela continuará a mesma. Minha companhia nunca lhes foi imprescindível e minha falta nunca foi sentida de verdade. Olhei nossos álbuns de fotografias, as fotos de nossas festas. Eu, que nunca tirei fotos, apareço em muito pouco delas. Há quem tenha aparecido mais do que eu nas fotos de meu próprio aniversário. Corram e confiram.
Quero ser enterrado junto com meus telefones, tão inúteis quanto a própria vida!
Eu gostaria de umas músicas para esse solene ultimo instante. Mas esqueçam tudo. Esqueçam os epitáfios, as músicas e os desejos. Apenas façam silêncio, uma vez em suas vidas. Homenageiem-me com o silêncio. Depois disso, podem voltar à costumeira tagarelice. Eu não vou poder ouvir mesmo.

Presto presto
Suicídio?! Coloquem diante de mim um bilhão de estúpidos que defendem (ainda que filosoficamente) essa idéia e eu mudo-lhes a “causa mortis”: homicídio qualificado.

Adágio
A propósito de tijolos e telhas, “The Wall” (Pink Floyd) em meu som parece soar tétrico. Eu vi o filme, eu sei a história. Uma criança perdeu o pai na guerra (preciso falar dessa palavra), cresceu, tornou-se roqueiro e se vinga com um álbum desse. Se não se vinga, pelo menos faz uma bela critica, ou uma necessária catarse. E isso abre precedentes vários para mais um bocado de palavras e para os seus mais variados significados.
Rancor. É ódio inveterado, oculto, profundo. Uma grande aversão não manifestada, antipatia. Ressentimento. Ira secreta, malquerer. Pelo que parece, nenhum desses sinônimos alivia o peso dessa palavra. E a qualidade de oculto e secreto faz pensar se isso pode aparecer naquele olhar no espelho.
Ressentimento. É ação ou efeito de ressentir (tornar a sentir, sentir muito – e eu diria continuar a sentir ou não evitar sentir). Mas também é melindre, suscetibilidade. E, o que é pior, recordação de uma afronta, acompanhada do desejo de vingança. É o sentimento reservado de qualquer ofensa ou lembrança “dolorosa” de uma palavra ou ato ofensivo.
Meu maior e pior pecado terá sido manter meus sentimentos reservados demais, ter deixado que algumas lembranças, mesmo por um certo tempo, fossem dolorosas. Meu pecado mais freqüente é minha tolerância à dor.
Mas não é um erro meu não falar. Eu falaria e seria bom. Há um sentimento de olhar em volta e sentir-se só. E o solitário é sempre silencioso. A questão é achar que nunca é ouvido, não querer das pessoas o que elas não podem ou não estão dispostas a me dar. Como as fotografias em festas de aniversário. Aliás, sobre a palavra “sorriso”, é aquilo que aparece somente nas fotografias. Uns muito belos e até sinceros. Mas ninguém imagina como pode ser tão muito mais belo um sorriso de verdade, ao vivo e em cores, quente.
Agora não quero mais ser ouvido, apenas aprender uma de duas coisas: calar e esquecer. Ou as duas.

Allegro ma non troppo
Vida real. Não sei o que é isso. Muito menos sei sobre os seus principais ingredientes: dinheiro, planejamento, profissão e outros mais. Alias, não sei nem o que é vida, muito menos o que é real. Essas duas palavras juntas formam, para mim, algo ainda tão impalpável e inimaginável. Materializar isso é vê-la, a vida real, como um hecantóquiro, aquele monstro mitológico de cem braços e cinqüenta cabeças, que quando você corta uma, nascem duas no lugar. Vida real, sei apenas de seus golpes e imprevistos, de suas surpresas, de sua tacanhice sem igual, de sua teimosia atroz em bater na mesma tecla, sempre.
Telefone. Retiro tudo o que disse, só nesse momento, tudo o que disse sobre ele. Toca, às vezes, a gente estando em pleno banho. Para atender tem que sair pelado, enxugando-se. Valeu a pena, era ela, para dizer que vai ligar à meia-noite. Passaram-se duas eternidades, uma para chegar à meia-noite, e outros quinze minutos depois desse horário em que ela ainda não ligou. Para passar o tempo, volto às palavras...
Espera. Palavra tão dura e palpável quanto distância. Não quero falar dela, da palavra, por ora. Ela tem sido muito polêmica ultimamente. Prefiro falar de muitas outras coisas e palavras, enquanto dura a espera. Droga! Já se passaram vinte minutos da meia-noite e ela ainda não ligou. Tenho de esperar mais um pouco e conseguir falar de outra coisa, aquilo que não é uma coisa, não é aquela coisa, não é a coisa. Intrigante a palavra “coisa”, tudo parece caber nela, nela tudo se encaixa, ou se desencaixa. Que coisa! Não estou falando coisa com coisa. Nexo causal. Nexo, nexo, nexo, complexo, amplexo, circunflexo, reflexo, convexo, mais alguma coisa terminada com essa silaba... é um telefone que não toca, a espera da espera da espera é esperar esperar ter o que esperar enquanto espera o que se espera esperando esperar o que se está esperando.
Não! Este post não é para você. Para você reservo outras palavras de nossa história, mas pode ser que aqui tenha uma ou outra, não sei, não se veja nele tanto assim, não sei o que deve ser isso de não gostar tanto de você. E nem quero saber. Duas moças lindas em casa, aliche, margherita e mussarela........
Tocou o telefone...
...acabou o post, ela acabou com o meu post. Sinto muito, o post acabou!

Em 02/09/2007 às 00:30 h.