sexta-feira, outubro 26, 2007

Uma hóspede


Faz uns três dias que ela chegou para ficar de vez. E me bater doído, jurando que de lá não sai tão cedo. Eu sabia que viria mais cedo ou mais tarde, ainda mais numa noite chuvosa de quarta-feira. Segunda e terça eu já pressentia sua presença, ou sua aproximação. E tal proximidade ameaçadora deu-me a certeza de que teria que amargar uma longa convivência. Meus pensamentos perambulando por aí, eu me dizia o tempo todo que “vai ser assim”, sim, vai. E não deixava de perguntar: vai ser mesmo assim? Sim, vai. O silêncio aterrador em volta respondia que sim, vai ser assim.
Não vou lá agora recebê-la com banda de música e tapete vermelho, vem sem ser convidada, não que não seja até bem-vinda, mas chegar de mala e cuia, com ar desafiador, instalando-se na minha vida sem me perguntar se posso, se quero, se suporto. Banda de música não, mas uma música ao menos achei na bagunça de meus pensamentos, de um velho disco de vinil que eu gostava tanto de ouvir, só não ouvi na chegada dela porque aí ia ser muito disparate da minha capacidade inabalável de rir da própria desgraça ou, quando não muito, colocar nela um adequado fundo musical. Lembrei Alceu Valença, uma letra de música que é um poema que eu gostaria de ter escrito, de tão simples que é chega a ser profundo, e diz tudo em tão poucas palavras. E serve para recebê-la, de modo a dizer que fique o quanto quiser, eu terei recursos para nos alimentar a ambos, pode dormir onde quiser, mudar o que quiser. Fique o tempo que precisar, que achar melhor para seu intuito. Eu não vou ser mais do tipo de me importar com muita coisa.
Com um sorriso nos lábios, na fronteira inteiramente tênue entre a loucura e a lucidez, eu a recebo, abro a porta para ela entrar com toda sua bagagem, hei de lhe passar um café quente, trocar os lençóis da cama, se for necessário, limpar com esmero o apartamento, talvez falte alguma coisa na geladeira que providenciarei com urgência. Se quiser dormir do lado da cama em que durmo, eu durmo do outro, se quiser descansar na minha poltrona preferida, pode ser, pode ir, pode ficar. Pode usar minha toalha, eu uso a outra, e os meus chinelos, ou se não eu compro um novo par.
Pode ir ficando, porque eu sabia que ela viria mesmo, que se instalaria de vez na minha vida, sem me dar conta ou satisfação de quando iria embora ou se iria, quem sabe, um dia, atormentar a rotina já atormentada de um outro que dela precise mais do que eu.
Não se importe muito comigo, com meus caprichos e minhas pequenas e mesmo as grandes manias, tudo é tão pouco e tão insignificante, dá para ficar sem levar muito tudo isso em conta. Eu durmo tarde porque não durmo cedo, e não durmo cedo porque quase não durmo. Acordo no meio da noite sempre com medo de descobrir que amo, eu amo, amo, eu amo, sempre com medo de descobrir. Depois volto a dormir e durmo logo, um sono sem sonhos, tudo muito simples. Não me siga pelos cantos, como agora, quando fujo para os cantos é porque gosto de chorar sozinho, sem ninguém me perguntando o que é, o que foi, o que será, por que e para que. Já me basta o próprio solilóquio com todas as suas indagações até agora sem resposta, sem a mínima chance de poder ser desvendado qualquer questionamento. Eu não sei. Pois não sei saber. Eu apenas sinto, pois isso eu sei, eu sei sentir.
É por isso que as lágrimas são líquidas, para não poderem ser represadas. A gente tapa um furo aqui, outro ali, reforça toda a estrutura. De repente tudo explode, e sai aos soluços. Depois dá um alívio danado, junto com um certo cansaço, uma fadiga, que eu poderia dizer, de existir, de ter de estar ali nesse momento, de estar vivo, de fazer coisas e ser coisas, de pensar coisas, de tentar entender as coisas. O que é melhor depois de uma crise de choro é um bom banho e algumas horas de sono. O banho inverte o sentido da água, em vez de água de dentro para fora, água de fora para dentro, ou só fora, lavando o cansaço. E o sono há de aquietar qualquer pensamento, esses cavalos selvagens a correr pelas pradarias da vida, mesmo eles, que não são domados de jeito nenhum, têm que descansar.
Então, não ligue muito para mim, nem me olhe, não se preocupe comigo muito que não vale a pena. Sinta-se em casa, só me diga por que nome devo chamá-la. Porque se não for assim, ainda tenho a música de que falei antes, a passear-me os pensamentos. E, nessa música, sei seu nome e seus maiores atributos, para melhor hospedá-la na minha humilde morada, ou na minha infame vida.
Pode ir ficando, que a música de Alceu Valença não roda na agulha do toca-discos, mas ninguém pode me impedir de cantarolar a música em minha mente:

A solidão é fera, a solidão devora.
É amiga das horas prima irmã do tempo,
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração.
A solidão dos astros;
A solidão da lua;
A solidão da noite;
A solidão da rua.

E só mais uma coisa: melhor ela não me dizer quando e se vai embora. Melhor deixar eu tentar adivinhar.

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