sexta-feira, abril 27, 2007

Platonismos platônicos

Eu te amo porque não sei fazer outra coisa.
E não há nada que eu faça sem que pense em você, sem que considere que sua existência e a minha se encontram e reencontram em algum lugar no tempo e no espaço. Quando se desencontram no espaço, recorrem ao tempo, com o recurso da reminiscência, esse receptáculo das lembranças que nos levam a proferir quase sempre a palavra saudade.
Se me perguntassem agora sobre o que sinto por você, não sei se a resposta seria mais poética ou mais filosófica. Mas eu acho que não teria que pensar muito.
Eu diria que eu tenho necessidade de ser uma pessoa melhor, com você. Está certo! A frase nem é tão original assim, Jack Nicholson disse a Helen Hunt em “Melhor é Impossível”. Mas a frase é bastante apropriada, porque é a melhor maneira de tentar descrever um sentimento que se poderia reputar indescritível.

Não falemos, aqui, de relacionamentos perfeitos, os quais não existem. Relacionamentos perfeitos seriam algo que só poderia ocorrer entre duas ou mais pessoas perfeitas, que também não existem. Que ótimo! Sem ironia, isso é mesmo ótimo. É perfeito poder concluir que as pessoas não são perfeitas. E que, imperfeitos, somos pessoas.
Nada de pessimismo nisso tudo. Só a constatação de que somos, no fundo, todos platônicos. Nossas buscas, ainda hoje, nos levam ao mundo ideal de Platão. Rejeitamos nossas sensações, pelos mais variados motivos, e buscamos o ideal. A idéia de perfeição é platônica. Assim como a idéia de justiça, bem, amor, felicidade, deus. E a idéia de rejeitar nossas sensações, e o deleite de poder ter essas sensações, é por demais cristã, o que é pior.
Quando alguém diz “felicidade não existe”, ao contrário de ir contra a concepção platônica acima referida, só faz corroborar essa concepção. Afirmar a inexistência da felicidade é, antes, afirmar a impossibilidade de atingí-la. Porque uma afirmação dessa esconde em seus meandros várias outras pequenas definições, tais como “felicidade não existe, o que existe são momentos felizes”, “o amor não existe”, o mesmo que se poderia dizer da justiça, do bem, a virtude, da perfeição, e por aí vai. Nega-se aquilo que não se tem certeza de atingir.
Afirmar, e acreditar nisso, que a felicidade não existe, é colocá-la como meta, e como uma meta difícil ou mesmo impossível de se atingir. E esse nem é um “bom platonismo”, é o platonismo para o povo, presente que ganhamos do cristianismo, na formação de nossa consciência. Cristianismo que diz para aceitarmos aqui nossas precariedades para ganhar nosso prêmio no além. E o além é o maior dos motivos de nossas insatisfações.
O resultado disso tudo são pessoas insatisfeitas, porque não sabem nem se relacionar com o mundo sensível e nem com o inteligível. Pairam suspensos nesse limbo, entre o céu e o inferno, agradecidos pela invenção do meio-ermo chamado purgatório.
Porque somos todos pecadores. Tudo o que somos, desejamos e pensamos é pecado. Ou seja, nós nunca atingiremos a perfeição. E nos nunca seremos felizes.
Então eu digo, esqueça a felicidade e viva. Ame, e ame intensamente, sem pensar no amor. Goze, sem pensar que perde o paraíso, que se afasta de deus, mas goze sobretudo sabendo que se aproxima de si mesmo.

Quer fazer alguma coisa, vá lá e faça. Não quer fazer, não faça. E arque com todas as conseqüências.

Eu amo você porque não sei fazer outra coisa. Porque é o que eu quero fazer, sem a preocupação de precisar, para tanto, encontrar desculpas ou justificativas para isso. Eu amo você porque você é a melhor pessoa que me cruzou o caminho, com suas qualidades e defeitos, com suas limitações, com suas indas e vindas, com suas quedas e seus vôos, com sua vida. Eu amo você exatamente do jeito que você é.
O romantismo é um platonismo? Pode ser. Mas é parmenídico e heraclitiano achar que as coisas ou são ou não são e que estão em eterno devir. Foi Platão que errou no parricídio de Parmênides? Ou em tirar a média aritmética dessas duas concepções aparentemente antagônicas, para construir sua própria concepção do mundo. Nada disso. O devir de Heráclito descortina o caráter irrefutável do mundo sensível. E o uno e imutável de Parmênides nos dão a idéia da essência das coisas. Platão colou dos dois e o cristianismo o interpretou a seu modo.
Mas não preciso de tanto “filosofismo” para dizer uma coisa como “eu amo você porque não sei fazer outra coisa”, basta que eu saiba que esse é a melhor forma de sentir uma coisa como essa, e que não pode haver outra. Basta dizer que não quero de outra forma, que é assim mesmo que as coisas se apresentam, sem ser uma forma de impasse para o pensamento ou para o sentimento.
Se uma linguagem filosófica me coloca distante da consciência disso, pelo menos uma linguagem poética me colocaria menos distante, que é a mesma coisa de dizer mais próximo, como queiram.
O amor e a filosofia, e a felicidade deles advindas, não são, portanto, valores absolutos que atingimos com uma séria e custosa ascese. Não são tão absolutos a ponto de pairar no absurdo de uma altitude inatingível por nossa razão ou nosso ser. Mesmo porque são tudo aquilo que se nos apresenta no dia a dia, de maneira tão mais simples do que imaginamos, sobretudo esse tal de amor e essa tal felicidade. Talvez a filosofia demande um pouco mais de dedicação e trabalho. Mas também não é um arcabouço de verdades inatingíveis.
Então, eu te amo porque é exatamente essa a coisa que quero fazer. Porque você é a melhor pessoa que apareceu exatamente nesse momento. Uma pessoa que minha pessoa soube estar bem ao seu lado e cogita ainda querer ser uma pessoa melhor do que se possa, do que se é.
Isso acontece, às vezes, de a gente estar distraidamente muito atento às aparentemente pequenas coisas que podem tornar essa vida melhor.
Eu te amo porque você tornou minha vida melhor.

segunda-feira, abril 23, 2007

O blog e a agorafobia

Engraçada essa vida de brincar de blog, de postar em blogs. Somos todos escritores (ou filósofos) e nenhum de nós é uma coisa ou outra. Imagino, agora, quanta coisa se coloca na rede, esse imaginário imaginado de pessoas conhecidas e anônimas, essa necessidade de sair do anonimato, permanecendo nele, com segurança e convicção. Quem sou, o que eu penso, o que desejo. Isso tudo de todo mundo está por aí, tão bem espalhado e declarado. E continuamos anônimos, ilhados.
Gosto da imagem do náufrago e já falei muito dessa imagem. Estamos cada qual a seu modo, ilhados diante dessa “janela” brilhante para o mundo, vendo e falando de tudo com todos, mas solitários. Náufragos.
Uma agorafobia muito bem fundamentada. Vejam só!
Eu não tenho medo do mundo, eu o enfrento com minhas palavras, eu tenho um blog e digo o que eu quero, sem censura, sem medo. Porra nenhuma! Eu me escondo atrás de uma janela de luz, mágica, como um náufrago numa ilha onde só cabe um: eu mesmo.
Mas estou falando mesmo de mim, ou o que eu acho que é falar de mim, construindo uma representação para outro, e muito longe de ser capaz de tirar minha “última máscara”. E se eu não me encaro, eu me mascaro. Por mais que eu conheça todas as minhas máscaras, isso nunca significa que eu não esteja envergando uma, sempre!
Tenho lido alguns blogs por aí. E, neles, as pessoas falam de um mundo, de um mundo grande e abrangente, mas pequeno suficiente para caber umas duas ou três vezes na rede virtual. Quer dizer, a rede é maior que o mundo. Mesmo assim, tantos mundos não cabem na rede.
Pois a rede, com seus blogueiros e afins, os usuários de internet (e afins), também cria um mundo. Aliás, muitos mundos, talvez uns dois ou três para cada pessoa.
Percebo que há um mundo de que não faço parte. Lendo muitos desses blogs, mapeando os mais variados interesses, vejo que todos eles parecem ter assunto, quando falam dos eventos desse mundo próximo do real em que tentamos viver. Os escritores virtuais sempre estão a fazer referências aos eventos desse mundo. Eu prefiro o mergulho interior, mesmo quando falo desse mundo, ou do que acho que seja esse mundo.
E, nesses meus mergulhos, o que escrevo quase não tem nomes, a não ser de pessoas que conheço e das que queria conhecer, dos assuntos que sao mais meus do que dos que vao ler. Quase não tem eventos sobre os quais muita gente tem conhecimento. Estou há três anos sem TV, o que me dá a inconveniência de não ter visto os últimos filmes, única coisa que me faz falta. Mas, por outro lado, isso me proporciona a devida desinformação a respeito de quase tudo. Não leio jornal e nem revistas noticiosas. O mito da informação não faz mais efeito sobre a minha reles pessoa. Uma promotora de telemarketing, a serviço de um grande jornal, quis, um dia me vender uma assinatura. E ficou estupefata com esse meu estilo de vida: “Como você vive sem nenhuma informação?” E eu, devolvendo: “E você, como vive com tanta informação?” Não há fome maior e pior do que não poder se nutrir de tudo que se quer.
É necessário que nunca se confunda “informação” com “sabedoria”, ainda que seja aceitável que não se pode encontrar ninguém que seja sábio sem qualquer tipo de informação. Dependendo dos interesses, muitas das informações não passam por um suposto exigível filtro. Então eu sei que, na atualidade, a informação tem lá seu peso, sua importância. Mas também devo saber que algumas informações não têm importância nenhuma. Na verdade, conheço muita gente bem informada que não é culta. Colecionam informação sem nenhum senso crítico e, desse modo, passam adiante como que para estarem conectados no mundo.
Conectado”. A palavra da atualidade é essa. Temos milhões de pessoas conectadas com o mundo e desconectadas de si mesmo, do outro. Senão vejamos, bastava dar uma olhada nos orkuts, alguns blogs, msn, e-mails, para perceber como as pessoas enchem a caixa de mensagem de tantos outros, deixando encher a sua, e mesmo assim esvaziam-se. Isso mesmo, somos uma geração vazia. Não tem nada mais irritante do que aqueles e-mails repassados, geralmente com aqueles pps entendiantes, verdadeiros “livros de auto-ajuda” on line. Ou senão aqueles sobre ajuda a pessoas doentes, geralmente crianças. Faz-se caridade do lado de cá da tela. Emocionam-se, acham um absurdo atrocidades. Mas ninguém vai à praça pública.
Somos a geração da agorafobia. O espaço público, aberto, de convivência cara a cara, há muito, perdeu o prestígio. Somos a geração do interesse à distância. Melhor modo de dizer isso, é que somos a geração da distância. Inventamos e aperfeiçoamos todos os intrumentos para aproximação com o outro, mas seu uso causou estranhamente o efeito contrário de o uso desses instrumentos estabelecer e favorecer a distância, esse afastamento entre as pessoas.
Eu passo oito horas por dia trancado dentro de um escritório, o que não é minha cara. E pensando e fazendo coisas que não faria em outro lugar e das quais nem gosto tanto. Se ninguém medir o grau de prazer nas atividades profissionais, podia-se exigir que se colocasse um item na CLT sobre insalubridade. Uma indenização por parte das empresas aos funcionários aos quais ela causa insatisfação, estresse e infelicidade.
No entanto, sei que há um mundo lá fora. As pessoas saem, bebem, conversam, se divertem, dançam, cantam, fazem academia, vão ao cinema ou ao teatro ou ainda a um concerto, visitam amigos, parentes ou aquelas que simplesmente ainda gostam de andar a pé por algumas avenidas e parques, essa coisa rara que é gostar de passear.
E tem gente que vai para casa, conversa com seu cônjuge, com seus filhos, cuida de seu cão ou gato, passarinho ou peixe ou das plantas. E encontra prazer e satisfação em suas ilhas, onde naufragamos, de uma forma ou outra. Pessoas que tocam a vida, vivem e se relacionam com a vida da melhor maneira que puderem.
Como grande parte do dia é tomada pelas atividades profissionais insalubres, salvo aqueles poucos que fazem o que gostam, resta às pessoas a noite, que é quando é possível encontrar aqueles que não se escondem por trás dessa tela brilhante. À noite as pessoas são tudo aquilo que é mais próximo de uma busca do que de uma fuga.
Dá um trabalho conviver com as pessoas à noite, nos bares e festas, salões dançantes, salas de cinema e de teatro ou simplesmente passeando pela cidade. Mas é um trabalho para o qual dedicaria muito mais horas do meu dia, se fosse possível, e dispensaria o adicional de insalubridade.

segunda-feira, abril 16, 2007

Para não dizer que não falei das rampas...

Para não dizer que não falei das rampas... FELIZ ANIVERSÁRIO!
No vigésimo sexto aniversário de Trinity, o que dizer? Bem, eu me arranjo bem com isso. Ou não, mas amigo é para essas coisas...
Blogueira velha, nada como homenagear você com um post, tomara que seja lindo e te arranque aqueles gritinhos, ou pelo menos um sorriso de satisfação. Tenho aqui até uma fonte nova, a Verdana, corpo 13, fazendo-me mudar da minha preferida Trebuchet MS, corpo 14.
Poderia dizer que ela sempre foi assim, fazendo-me mudar, mesmo que eu não queira, como aquele dia em que eu descia da rampa com a maior cara de sono, com a vontade maior ainda de ir para casa. Fez-me voltar para a sala de aula, uma aula do professor alemão, incompreensível e inaudível, e para a leitura de uma “carta-manifesto” ao coordenador do curso. Esta última nem sei se adiantou alguma coisa, mas a primeira adiantou a melhor e maior amizade de todos os tempos. E é assim que me lembro dela, essa amizade, a maior e a melhor de todos os tempos.
Estava com ela na última sexta-feira, dia 13, na Gruta. Eu tomava cerveja e ela fanta, encheu a cara de fanta, só para me dar trabalho. Antes, comemos no Bar do Estadão, eu um sanduíche de pernil e ela alguma coisa que não tenha bicho morto. Depois ela foi para o noitão de cinema e eu para casa.
Nossa conversa nem foi longa, nem ficamos muito tempo juntos, nem abrangeu todos os assuntos, somente os atuais, ou os mais atuais. Mas não precisa! Um diante do outro, não precisa nem conversar, carregamos todas as histórias e todas elas ali estavam. Basta uma palavra e podemos sacar qualquer uma dessas histórias, porque as carregamos durante esse tempo todo, assumimos a missão de mantê-las vivas, por mais que elas morram, manter viva a lembrança delas, a certeza de que se viveu, e intensamente, cada uma delas.
Nos até já nos trocamos o “insulto” de nos declarar melhor amigo um do outro. Eu continuo não arredando pé dessa posição de destaque, que venham os usurpadores e tentem ser melhores, que me arranquem o título, por uns tempos. Só um melhor amigo poderia mesmo até perder o título de melhor amigo. E continuar sendo. E nunca deixar de ser.
Das rampas para as mesas da praça de alimentação da UniJudas, tomando aquelas deliciosas sopas de copo. Até o dia em que vi que era necessário compartilhar uma sopa de verdade, sopa de panela, para estrear meu fogão, meu jogo de panelas, a panela de pressão, sopa de legumes, não lembro se havia alguma carne. Uma noite e cinco litros de sopa. Sobrou um pouco na panela, um pouco menos de um litro. A desavisada, na padaria, queria comprar mortadela, enquanto eu comprava pão para comer com a sopa, e eu quase a deixei comprar. Primeira pessoa que dormiu em minha casa e foi expulsa da cama com os pés. A primeira pessoa que nunca me deixou sozinho, a despeito de seus personagens e sempre novos filmes e aventuras, nunca me deixou sozinho.
Eu relia no final de semana passada a vasta correspondência on-line, e-mail, que trocamos ao longo desses anos. Ali estava toda uma história. E paramos, não por não ter mais o que dizer ou por termos dito tudo, mas porque encontramos outro modo de dizer. Carregar nossa história e marcamos encontro delas onde quer que for. Como sexta na Gruta. Cara a cara, já somos toda a história. Mesmo com os ciclos e os círculos que se fecham e os que se abrem, somos toda a história.
E parece que somos os “donos” dessa história. E somos mesmo. Cinco saraus de poesia, que seria de mim sem os saraus e a poesia? E, quando nós dois éramos mais jovens, três ou dois anos mais jovem, as madrugadas que passamos acordados. Criando não a história de nosso mundo, mas um nosso mundo para contar a sua história.
Ela tomava coca-cola no primeiro ano. Duas garrafinhas que enchiam o mesmo copo. Que vergonha! Não demorou para ser apresentada à vodka, e foi a única pessoa a ter em casa uma garrafa cativa de vodka, que ninguém bebia, a não ser com sua expressa autorização.
Portadora de meu epitáfio e encarregada da gargalhada de despedida em meu funeral. Companheira de batalhas travadas no silêncio e na solidão, que me guardou os meus mais valorosos segredos, sem o saber, porque não sabia que eram segredos, que soube dizer qualquer coisa quando fosse preciso e calar quando fosse necessário. E que em troca me fez Tântalo, e fez ainda gostar muito dessa “maldição”. Quer dizer, gostar às vezes sim, às vezes não.
É sempre alegre sofrer com ela todo o sofrimento que vale a pena. E sempre é uma tristeza caso não consiga se alegrar com ela as mais excitantes alegrias, por tudo e por nada, por muito e por pouco.
A cara dela é já um sorriso. Sempre. Muito raro ver suas lágrimas, ainda que elas existam, privilégio para poucos. Cara feia nunca fez, falar mal de ninguém nunca falou, mesmo quando podia ou tinha que falar, nunca falou.
Consegue, numa mesa de bar, conversar com você e com outras trinta e oito pessoas, ao mesmo tempo. e falar mais alto que todos, ser ouvida.
Levou o avô na colação de grau, acredita que sua Brasília vai andar um dia e até queria que eu viajasse com ela, vejam se pode uma coisa dessa.
Quer ser médica e filósofa, vai morar no Centro dentro em breve (oba!), trabalha na polícia (podem crer nisso!).
Vinte e seis anos de vida, virando a mesa com sutileza e paciência.
Escreve bem para caramba, essa mulher!
E ela deve, pelos deuses, ter algum defeito. Se descobrirem me contem. Me contem à toa que não vou acreditar mesmo.
E eu sou prolixo, tanta coisa para dizer, digo pouco.
Mas carrego com ela, nossa história.
Um grande beijo, Trinity.
Um grande beijo, Mulher!

segunda-feira, abril 09, 2007

O ócio produtivo

Dizem que o ócio produtivo dá origem a grandes obras, mas para mim ócio é ócio e só produz mesmo o que ele é e não deixa de ser: ócio e mais ócio. Essa vontade de fazer mais que o nada que já se faz, de não existir, que não ter que existir, com tudo o que o fato de existir exige: cumprir as obrigações que a existência exige. Arre!
A prancheta de desenho reclama um carinho, os papéis jazem intocados e brancos (ou creme), ansiosos por uma roçada qualquer que lhes dê cores e formas, ou outros papéis que anseiam por uma palavra ou uma frase, um mote de mais um poema.
Sem falar nos livros com suas capas como se fossem caras fechadas, que sorriem quando os abro, e folheio meio à toa, para fecha-los de novo, sua capa e sua cara, para ficarem resmungando na estante ou sobre a mesa ou no banco ao lado da poltrona, amaldiçoando minha falta de ânimo, minha apatia que de vez em quando me assola.
Mas até que eu leio, escrevo e desenho, mais do que poderia e mesmo até mais do que deveria. E o espírito criativo não se esgota, não acredito que se esgote, ele se renova com o uso, como aquelas baterias recarregáveis. Ele se renova com a própria renovação.
Mas então qual é o problema? O problema é um momento depois do outro, um dia após o outro, que não são tão iguais quanto queríamos. É essa inconstância do real, sempre pronta a não satisfazer nossas necessidades. É sempre tudo dando tão “certo” não ao nosso modo, mas ao modo da realidade, que é tudo dando certo como deve ser. O problema é que a realidade, assim como a vida, não é boa nem ruim, a realidade, assim como a vida, apenas é.

O ano passado eu, como muitos, estava saturado por ter de ir todo dia à universidade, de pegar uma aula boa entre duas ruins, quando não o contrário, o que era pior, ou de ter que ler o que não queria tanto, fazer provas, preocupar-me com as notas semestrais e a média, ouvir aulas, tomar notas, ter a minha própria insatisfação que lidar com a insatisfação alheia, às vezes por motivos não tão maiores que os meus, menores até, mas uma unha encravada em meu dedo do pé é um mal menor do que um câncer no cérebro de outro, só que a unha encravada está em meu pé. Tudo isso passou, graduei-me, graduamo-nos todos, somos bacharéis. Alguns seguiram estudando, já engatando um mestrado, outros foram dar aula, viraram professores. Eu voltei para casa, para o meu plano “A”, descansar da maratona de três anos de estudo, para fazer o que quiser, até mesmo ler filosofia. Resolvi que um bom projeto de mestrado podia ser feito em dois anos, pelo menos. Conseguido isso, mais uns três anos para um doutorado, no mínimo, daria mais uns cinco anos de estudo, pelo menos de estudo na “servidão acadêmica”. Achei que ia ser fácil. Participaria de alguns grupos de estudos. Mas não, os horários dos grupos de estudos não contemplam um sujeito que teve que alienar sua mão-de-obra para seu próprio sustento, posto que meu progenitor não mais vive e, se vivesse, por mais que quisesse e fizesse gosto disso, não teria condições de sustentar esse meu luxo. E minha mãe, viúva dele, não é uma viúva alegre que tenha casado com um fazendeiro rico, que poderia querer e fazer gosto de me sustentar esse luxo, acrescentado de outros, para os quais eu convenceria com minha retórica que são necessários muitos recursos. Assim, para se ganhar dinheiro precisa gastar dinheiro de antemão. Assim é que corroboro minha humilde tese de que a realidade apenas é.
Pensei que poderia até freqüentar umas aulas na universidade, nas salas dos meus colegas que ainda ficaram por lá. Mas andando pela universidade, senti-me um fantasma, ouvindo ecos pelas paredes que diziam que um ciclo se fechou, que a fila anda, que a seta do tempo anda só para frente. Não vi ninguém e quem me viu não me notou. Já foi o seu tempo, diriam, se pudessem. Haverão sempre de perguntar o que farei agora, como se fosse a coisa mais impossível fazer alguma coisa depois da graduação. Haverão de perguntar se estou lendo, para ficarem espantados com uma lista de quatro ou cinco livros que já li, ou mais, de filosofia, literatura ou poesia, como se fosse mentira, conversa de pescador, como se fosse um absurdo sem tamanho eu ser um leitor voraz.
Tempos bicudos! Depois da graduação vem a legião estrangeira, a “aridez de dez desertos”, essa quebra de ritmo, essa indefinição, esse estar por sua própria conta, esse abandono no silêncio de todas as suas dúvidas. A não ser que você se entregue de imediato ao jogo entojado das iniciações científicas, colóquios e simpózios, uma luta inglória por bolsas, porque, enfim, meu progenitor não vive e a viúva dele não casou com aquele fazendeiro rico. Nada contra a academia. Mas também nada a favor. A academia, como a realidade, não é boa nem ruim, a academia é, e é o que é, não outra coisa. Se quer criticá-la ou mesmo zombar dela, faça primeiro o jogo dela, para depois fazer o seu.
Eu vou ser filósofo, mas resolvi que antes disso quero mesmo ser escritor. Seu campo de estudo é mais atraente e convidativo, a rua, a cidade, a noite, as madrugadas, os sentimentos. Seus objetos são as pessoas, seu escritório e fonte de inspiração, mais do que uma sala de aula, é o bar. Aliás, falando em bar, tenho mantido uma certa proximidade com a universidade. Mais propriamente com o bar nas suas proximidades. Só não é o mesmo bar porque mudou de ponto. Mas são os mesmos donos, os mesmos fregueses, agora com mais espaço. Lá não tem como me sentir um fantasma. Sou bem recebido e reconhecido, mesmo agora que sou bacharel. É indescritível a sensação de estar nesse ambiente, o tilintar dos copos, o corpo suado das garrafas, o burburinho das gentes, o abafado de tanta fumaça de cigarro, gente chegando, gente saindo, gente procurando gente, querendo passar o tempo, fazer amizades, conhecer pessoas, conseguir um pouco de sexo, matar o tempo que nos mata, fingir que essa é a melhor maneira de se gozar o verdadeiro ócio. E é mesmo.
Quem é sábio e não tem nada que fazer, vai fazer esse nada no bar.

quinta-feira, abril 05, 2007

Amor e Felicidade, Ilusão e Desilusão

A ilusão tem sempre o poder de tornar nossa vida mais suportável. Mas sempre será por meio de um gasto enorme de nossas energias vitais. Presente como uma promessa de prazer, felicidade ou durabilidade, quando se revela decepcionante, temos a desilusão. Parecem pares de opostos, mas são a mesma coisa, são sinônimos mais do que antônimos, porque fazem parte da vida, uma mesma vida, que nos traz os sonhos a que almejamos e a decepção diante da impossibilidade de realizá-los todos.
Nada há mais decepcionante do que ouvir de alguém que o amor não existe, que a felicidade não existe. Serão sempre estas expressões de quem teve uma decepção amorosa, ou talvez de quem tenha grandiosos sonhos de felicidade que não cabem dentro do âmbito da realidade, do realizável.
Seria o mesmo que eu dizer que o dinheiro não existe, porque não o tenho, ou o tenho não suficientemente. Ou porque não lido bem com ele. Em matéria de dinheiro, tenho um rol de decepções muito grande. O dinheiro, para mim, tem sido, há muito tempo, aquela relação entre débito e crédito, contemplada em meus extratos bancários. E sempre mais débito do que crédito. É fictício, irreal, a não ser por algumas vezes em que tenho nas mãos aqueles bonitos papéis coloridos e aqueles pedaços circulares de metal com belas gravações, coisas essas que desaparecem logo, sempre quando quero trocar por alguma coisa, de preferência alguma coisa que me dê satisfação.
“Eu não amo e não sou amado, logo o amor não existe”. Essa é a lógica dos desiludidos, que confundem o amor com alguma espécie de sentimento mais inferior, geralmente dirigido a uma pessoa ou a uma coisa, sentimento esse esgotável e corruptível, quase que descartável.
“Na vida não há felicidade, há somente momentos felizes”. Outra máxima daqueles que se entregam à derrota mesmo antes de iniciar o combate. Momentos felizes é um interessante recorte que se pode fazer de toda uma vida, mas a escolha desses momentos pode parecer um tanto arbitrária e descuidada. O momento do nascimento, é um momento feliz? Vai depender do parto. A festa do primeiro aniversário, quem se lembra? A não ser por relatos e fotos, quem tem dessa primeira festa uma boa lembrança. Começar a falar? Ora, a fala traz seus problemas, porque traz também, junto com o domínio desse dom, o fato de não ser compreendido, pedir e receber um não, perguntar e não ter resposta. Continua difícil o recorte. Entrar na escola. Os colegas, os livros, a professora, os cadernos, lápis e caneta, aprender coisas novas, expandir os horizontes. Mas têm as aulas e as lições, as provas e as notas.
O nascimento de um filho. Com certeza um grande momento feliz. Principalmente para quem curte bebês e brincar com crianças. Mas elas crescem e viram adolescentes e, para muitos, o fruto daquele momento tão feliz vira fonte de muitos aborrecimentos.
Mas não era sobre tudo isso que queria falar. Queria falar de amor e felicidade e a conseqüente ilusão e desilusão. Todas essas coisas tão parte da vida. Falta então, em vez de dizer amor e felicidade não existem, dizer se vivemos ou não, com direito a todas essas coisas que vêm no pacote.
Não seria um tédio se todos fossem plenamente satisfeitos? Que restaria buscar na vida? Como passar esse tempo que na verdade nos aproxima da morte? Convém não confundirmos satisfação com felicidade, embora podemos conceber que alguém esteja satisfeito mas não feliz, mas não o contrário.
Essa plenitude, quanto ao amor e a felicidade, é o sentimento mais platônico que se conhece. E, por mais que neguemos ou tentemos disfarçar, pode-se dizer não que somos platônicos, mas que Platão é que conseguiu definir bem como é que somos.
Pois é a vida que é a felicidade. Acordar vivo, mais um dia, e perseguir o sentido disso tudo. Amar a vida e sentir-se feliz por estar vivo não é alienação, comodismo ou resignação. É, antes de tudo, aceitar o fato de que a vida aí está para ser vivida, com todas as suas potencialidades.
No mais, um pouco de ilusão e um bocado de amor não mata ninguém. Pelo contrário, faz com que nos sintamos vivos.

terça-feira, abril 03, 2007

E-mail a uma jovem poeta

Porque, no fundo, todos sabemos desenhar e escrever. Basta descobrirmos quando é que esquecemos.
(íntegra de um e-mail a uma amiga, que me pediu para dizer o que acha de uns poemas que escreveu)

Julie

Prepare-se para ler muito! Mas muito mesmo!!!
Já faz dois meses que completei 45 anos de idade, com aquela festinha na Gruta, que contou com sua honrosa presença. E devo dizer, também, que você foi a única que levou presente. Aliás, do que me desejou naquela “conchinha” surpresa, que eu não consegui abrir, posso dizer que já me aconteceu tudo nesses dois meses que se passaram, fora o que já vinha acontecendo antes.
E não reclame do tempo que levei para lhe escrever estas linhas, são só dois meses, ou sessenta dias, como queira, tempo suficientemente curto para um desocupado como eu, tanto livre das mazelas e vaidades acadêmicas. No começo do ano que vem, você vai entender o que estou dizendo, se bem que você tem TCC para fazer, o que dá a possibilidade de aproveitar o mesmo tema para um mestrado. De minha parte, estou apressadíssimo. Meu mestrado será daqui uns dois anos, 2009, portanto. E doutorado só depois de mais três anos, lá pelo ano de 2012, ou 2013 (um belo número, aliás!). Não vou esconder que tenho lido mais do que na graduação, mas vou lhe poupar da lista dos títulos, talvez não, li quatro livros de Cortázar, três de Voltaire, um do Michel Onfray, três de André Comte-Sponville (iniciei hoje a leitura do quarto), um de Camus, um de Umberto Eco, um de Carl Sagan e um de Van Gogh. Na mira para próximas leituras estão Graciliano Ramos, outro de Umberto Eco, um de José Saramago, além de Baudelaire, Walt Whithman e não sei mais o que. Nem vislumbre de tema para um projeto de tese para mestrado. Eu quero ler, tá? Só isso, ler, ler e reler tudo que não deu tempo de ler. Minha estante está em festa, nunca se sentiu tão prestigiada.
Mas não foi para lhe fazer inveja que eu lhe escrevi.
Vai ser difícil eu ir tanto aí na UniJudas, talvez eu vá na quinta, que é véspera de feriado. No grupo Nietzsche está impraticável eu ir, já que no meu trabalho vivemos tempos bicudos. Prefiro ser um pouco burro do que desempregado, sabe como é, na minha idade, só sendo poeta ou professor de filosofia, duas coisas para as quais eu não tenho o menor talento.
Escrevi para falar de poesia. Sim, que li seus poemas. Isso depois de reler alguns dos meus e escrever outros, que a poesia andava de mim meio descuidada. Tomou-me, entretanto, de assalto certa noite, e desandei a escrever, à caneta em folha de papel almaço, que ficam uns tempos curtindo numa pasta, até que eu os digite e ponha aos olhos do grande público. Ora bolas! Grande esse público! Já tenho dois para o próximo concurso de poesia da dita UniJudas, e devo caprichar, porque desconfio que este ano a concorrência vai ser feroz, feroz e grande.
Sim, escrevi para dizer que finalmente li as suas “quase todas tentativas de escrever poesia” E sim, para trocarmos mais idéias e termos mais assunto em nossas conversas.
Bom, agora devo evitar qualquer tom “professoral”, que seria de longe, como de fato é, detestável.
Depois disso que eu conseguir dizer, se é que vou conseguir, leia “Cartas a um Jovem Poeta” de Rainer Maria Rilke. Se eu tiver em arquivo, mando anexado neste. Não sei, porque estou em casa em meu micro sem internet, eu aqui sem televisão (ainda bem, porque senão eu não tinha lido tanto). Eu, quando me sinto sem inspiração ou uma porcaria de um reles escrevinhador, leio esse texto do Rilke. E outros poetas, é claro.
(Claro que não consegui anexar, então mandei a primeira carta na íntegra, em outro e-mail. Minha relação com computadores é satisfatória, do tipo dá para sentir falta da máquina de escrever - mentira!!!)
Será mesmo que o poeta só escreve quando está angustiado ou o poeta é um arauto da angústia? Quando está ansioso ou triste, apaixonado? Eu quando estou com meu amor no cômodo do lado, se me ponho a escrever, falo da saudade que dela me separa por dois cômodos e dois segundos que levo para ir ao seu encontro. O poeta é assim, quando lida com esses sentimentos, tristeza, angústia, paixões não realizadas, é para ressaltar seus opostos, dizer que sabe que eles existem e devem ser almejados.
No mais, o que me toca realmente em poesia são mesmo os maravilhosos jogos de palavras. Um poeta nunca diz nada que seja comum, reles, vulgar e superficial. Um poeta, mesmo falando de coisas comuns, tem o dom de dizê-las de maneira profunda, tocante e pungente. Nada de dizer “acordei feliz e está um lindo dia”. Um poeta diz “queria acordar feliz num dia que fosse o mais lindo da vida”. Não se contenta com pouco, um alvorecer ou um pôr-do-sol. Ele quer o mundo, toda a realidade, e também a fantasia, ou tudo o que lhe possibilitar a imaginação.
Dizia Fernando Pessoa que o poeta é um fingidor: “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E Manoel de Barros, mais matreiro, diz que “o que eu não invento é falso”.

Interessante que tenho em minhas mãos poemas seus de 2004 a 2007. Dá para ter uma idéia de “evolução”, se é que se pode falar assim. Ou dá para ver como os mesmos temas são vistos de maneira diferente. E, acredite, é difícil não amadurecer escrevendo.
Voltei a escrever em janeiro de 2005 e este meu primeiro poema do retorno ninguém leu e nem vai ler, pelo menos por ora. Não gosto dele, acho-o pueril, pouco profundo, uma choradeira desgrenhada, péssimo. Mas fui eu quem o escreveu. Foi algo de mim que o fez nascer. E, diga-se de passagem, tem coisas que nunca jogo fora. E depois outros vêm na mesma esteira, e eu querendo escrever e descontente com o que escrevo, mas escrevendo, escrevendo, escrevendo. Até que, algo que saiu de mim toca em mim... Pronto! Aí a coisa foi e foi, e você sabe o resto da história.
Não vou julgar nem analisar seus poemas, vou falar deles como se quisesse neles falar de você, do que você passa, do que consigo sentir e perceber que você passa. Posso julgar os meus, porque agora entendo o que queria dizer antes e não conseguia e agora creio que consigo. Faça isso com você, com seus poemas, com sua vontade de escrever. Pergunte-se (aqui me aproveito da sacada genial do Rilke) se você vive sem isso. Se a resposta for sim, faça outra coisa. Se for não, faça isso mesmo: escreva!
Se eu quisesse ser poeta, estaria fadada ao anomimato...” Já estamos, minha cara, já estamos fadados ao anomimato. Quem lhe disse que esse eu que eu sou e que todos conhecem é o mesmo eu que escreve os poemas? Sempre sóbria? Pois embriague-se de si mesma, desça ao inferno, ande o caminho de dois desertos, suba ao céu, penetre uma profunda caverna. Saia de si e não esqueça quem você é. Aquiete-se, aquiete sua voz, sua alma, seu corpo, mergulhe no vazio e afunde-se no silêncio. As palavras todas estão lá, a espera. “O gosto das minhas palavras ditas e não ditas me torturam e sufocam...
Só que escrever não cura nada. Quem se cura é normal e quem é normal se escraviza, se limita, se anula. Forjamos nossas palavras na ansiedade de dizê-las.
Que tal “rasgar os lábios, arranhar a pele, arrancar os cabelos, só para chamar a sua atenção”? E depois de tudo, dizer: “Queridos bandidos, eu tenho chances de morrer sozinha, histérica e amargurada, mas morrerei vingada.”
Coração de plástico. Mantenha distância, ou... seja rápido!” “Você me viu demais, agora não vai me enxergar.” “Você sabe que hoje em dia vive-se mal, sorrir dói...”
Onde estavam essas palavras a não ser no mais profundo silêncio? E de onde acha que tiro as minhas senão do medo imenso de nunca mais ouví-las? (Ou talvez de um parque ao lado de casa, escondidas sob tantas folhas mortas, espreitando meus passos).
Você vai ver logo mais (nas aulas de Estética) que nós não inventamos a linguagem, porque ela nos perpassa, ela que nos inventou. Assim como se pode dizer que não criamos as palavras, mas elas que nos criam. Não somos capazes de dizer em palavras o que somos (ou desejamos ou sentimos), mas a palavra é que, insinuando-se por meio de nós, atreve-se a dizer o que somos, desejamos ou sentimos, isso sem muito êxito, já que o que somos, nenhuma palavra consegue descrever. O mais belo verso não passa de um arremedo do mais reles sentimento que temos de nós próprios, esse indescritível, intangível. Assim, toda a poesia é um arremedo.
Tenha esperança, ainda que ela seja “um lixo que gostamos de acumular”. Mas não se fie muito nela, e sim no seu oposto, o desespero, esse sim, capaz de nos fazer vislumbrar qualquer lampejo de esperança. Então seja desesperada. Fique desesperada sempre. Desesperada de amor, de beleza, de lirismo, de sonhos e de imaginação. Entregue-se ao desespero e sobreviva a ele. Entregue-se ao desespero de estar suspensa sempre entre duas imensidões absolutas: o céu e o mar, você e o outro, a vida e a morte.
Porque o poeta “troca a boca por um dedo, divide angústias e alegrias, com ninguém, a não ser com ele mesmo.” E mesmo assim, o outro que lê se sente tocado e se contamina com as angústias e alegrias divididas, porque expressadas, ligadas às suas próprias angústias e alegrias.
O eu do poeta não fala a ninguém, a não ser com o eu completamente distraído e absorto do outro, o que lê, e que se vê no que lê, como que se num mundo que foi recriado para o deleite de quem puder, de quem quiser.
Eu não tenho culpa por morrer de saudade, eu preciso matar essa tarde...” E todo poeta precisa matar para deixar nascer, o dia, a tarde, a noite, a vida, o amor, a morte, a angústia, a saudade.
Então sonha, como quem “não quer pensar sobre o que se trata e só quer ser deixada para se perder nisso tudo e se acabar em tal pessoa, para ser acordada quando for a hora de partir...” Sonha como se fosse permitido, melhor, como se fosse exigível. Mais fácil do que mudar o mundo é mudar sua visão sobre ele. Com mais acuidade, com mais interesse e curiosidade, perplexidade. Mais fácil do que mudar as pessoas em sua volta, é mudar sua relação com elas. E pronto! Tudo está mudado, para ser mudado outra vez e de novo se e quando for preciso. Solte-se como se fosse vela ao vento, isso sim é ser forte. Além do além do mar existe outro mar e o que é preciso é navegar.
Talvez vá com este a carta de Rilke ao jovem poeta. Ele diz:”(...) Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga que não é bastante poeta para extrair suas riquezas.

Será que haveria uma receita para escrever? E para escrever bem? Seria uma outra receita com outros ingredientes? Foi escrito algum manual de instruções para jovens poetas, poetas iniciantes e interessados? Acho que não. Então eu escreveria um manual com umas poucas frases: dentro do seu crânio há um cérebro, use-o. Dentro do seu ser há sentimentos, sinta-os. Há algo além da dura realidade, sonhe. E sobre a verdade há um provérbio chinês que diz que há três verdades: a minha, a sua e a verdadeira. Procure!
Claro que você já domina satisfatoriamente essas regras, ainda que não tenha percebido.
Um aluno de jornalismo entrevistou-me após o último concurso da UniJudas e perguntou-me qual a dica que eu daria a ele, porque ele gostava também de escrever. Dica, eu?! Bem, disse-lhe, leia, leia muito, leia mais e mais, nunca pare de ler. Leia livros, leia o mundo, leia a realidade a sua volta, preste atenção nas pessoas, converse bastante, leia mais ainda do que já leu, interesse-se por vários assuntos e, sobretudo, não deixe de cultivar uma boa dose de sensibilidade. E mais ainda: nunca perca o dom de se emocionar, mesmo com as coisas mais singelas da vida. Uma dose também de bom humor é aconselhável. Ria bastante. Goste de gente, goste da noite, goste de árvores, de gatos e de cachorros, divirta-se com as crianças e como uma criança. E, o que é mais importante, não importando a idade que você tenha, nunca deixe de ter em casa algum brinquedo. E brinque com ele. Goste também de lápis de cor, mesmo que você ache que não saiba desenhar (porque todo mundo sabe, só desaprende quando cresce). Não tenha vergonha de ser carinhoso, tenha muitos amigos, abrace as pessoas, com vontade, e não perca a oportunidade de dar uns bons beijos, sejam eles de paixão ou de amizade. Nunca tenha vergonha de dizer eu te amo. Goste de silêncio e de caminhadas, de preferência nos parques, mas pode ser numa rua que você goste da cidade. Saiba ficar triste com a tristeza alheia, para se alegrar com a felicidade dos outros. Diga “parabéns” e muito obrigado. E não pense que isso tem que ser feito porque foi escrito em algum livro de auto-ajuda, faça como quem gosta e gostará de fazer em pouco tempo.
Aliás, não assista a programas ruins na televisão, não veja maus filmes, não deixe que lhe falem mal de ninguém, não se esconda, apareça, vá a festas, visite os amigos, telefone, mande e-mail ou carta até. Pense sempre em ser uma pessoa melhor do que é e as pessoas boas estarão do seu lado e, as não tão boas, irão se afastar naturalmente.
Goste de janelas ou de sacadas, se tiver uma, olhe a lua,as estrelas, não passe um ano sem ver o mar, um dia sem olhar o céu. Não deixe de contemplar um dia de chuva. Aprenda a reparar nas folhas que caíram no chão, observe, quando puder, o vôo dos pássaros. Goste de música, se puder, toque um instrumento, mesmo que não seja um “virtuose”, toque um instrumento só por gostar do som. E cante, mesmo desafinado, cante. Tire um cochilo numa tarde de folga, ou uma hora que seja da semana para fazer “nada”, absolutamente nada. Ande descalço onde e quando puder, pise a terra, toque terra. Quando for dormir, esvazie a mente. Ela é auto-carregável e estará cheia no dia seguinte. Não passe um mês sem ver quadros ou esculturas, sem ver um filme, sem ler um poema ou um romance. Por fim, goste de si mesmo como se você fosse seu próprio amante. E ame, que, tirando saudade e algumas desilusões, não há mais nenhuma contra-indicação.
Leia gibi, goste de ver mapas, fique embasbacado com distâncias astronômicas e perplexo diante da velocidade da luz.
E tenha em casa sempre papel e lápis e muitas garrafas. Somos todos náufragos nessa ilha deserta. Escreva sempre uma mensagem e jogue no mar. Numa outra ilha, alguém também náufrago, vai precisar.
Agora chega de escrever, que vou eu cá do meu lado tentar ser melhor do que tudo o que falo.
Guardo seus rascunhos junto com os meus, com o mesmo carinho e cuidado.
Falemos de nossos rascunhos, desses e dos próximos, sempre que quiser.

Em 02 de abril de 2007, exatamente dois meses depois de meu 45° aniversário.

Um beijo.