segunda-feira, abril 09, 2007

O ócio produtivo

Dizem que o ócio produtivo dá origem a grandes obras, mas para mim ócio é ócio e só produz mesmo o que ele é e não deixa de ser: ócio e mais ócio. Essa vontade de fazer mais que o nada que já se faz, de não existir, que não ter que existir, com tudo o que o fato de existir exige: cumprir as obrigações que a existência exige. Arre!
A prancheta de desenho reclama um carinho, os papéis jazem intocados e brancos (ou creme), ansiosos por uma roçada qualquer que lhes dê cores e formas, ou outros papéis que anseiam por uma palavra ou uma frase, um mote de mais um poema.
Sem falar nos livros com suas capas como se fossem caras fechadas, que sorriem quando os abro, e folheio meio à toa, para fecha-los de novo, sua capa e sua cara, para ficarem resmungando na estante ou sobre a mesa ou no banco ao lado da poltrona, amaldiçoando minha falta de ânimo, minha apatia que de vez em quando me assola.
Mas até que eu leio, escrevo e desenho, mais do que poderia e mesmo até mais do que deveria. E o espírito criativo não se esgota, não acredito que se esgote, ele se renova com o uso, como aquelas baterias recarregáveis. Ele se renova com a própria renovação.
Mas então qual é o problema? O problema é um momento depois do outro, um dia após o outro, que não são tão iguais quanto queríamos. É essa inconstância do real, sempre pronta a não satisfazer nossas necessidades. É sempre tudo dando tão “certo” não ao nosso modo, mas ao modo da realidade, que é tudo dando certo como deve ser. O problema é que a realidade, assim como a vida, não é boa nem ruim, a realidade, assim como a vida, apenas é.

O ano passado eu, como muitos, estava saturado por ter de ir todo dia à universidade, de pegar uma aula boa entre duas ruins, quando não o contrário, o que era pior, ou de ter que ler o que não queria tanto, fazer provas, preocupar-me com as notas semestrais e a média, ouvir aulas, tomar notas, ter a minha própria insatisfação que lidar com a insatisfação alheia, às vezes por motivos não tão maiores que os meus, menores até, mas uma unha encravada em meu dedo do pé é um mal menor do que um câncer no cérebro de outro, só que a unha encravada está em meu pé. Tudo isso passou, graduei-me, graduamo-nos todos, somos bacharéis. Alguns seguiram estudando, já engatando um mestrado, outros foram dar aula, viraram professores. Eu voltei para casa, para o meu plano “A”, descansar da maratona de três anos de estudo, para fazer o que quiser, até mesmo ler filosofia. Resolvi que um bom projeto de mestrado podia ser feito em dois anos, pelo menos. Conseguido isso, mais uns três anos para um doutorado, no mínimo, daria mais uns cinco anos de estudo, pelo menos de estudo na “servidão acadêmica”. Achei que ia ser fácil. Participaria de alguns grupos de estudos. Mas não, os horários dos grupos de estudos não contemplam um sujeito que teve que alienar sua mão-de-obra para seu próprio sustento, posto que meu progenitor não mais vive e, se vivesse, por mais que quisesse e fizesse gosto disso, não teria condições de sustentar esse meu luxo. E minha mãe, viúva dele, não é uma viúva alegre que tenha casado com um fazendeiro rico, que poderia querer e fazer gosto de me sustentar esse luxo, acrescentado de outros, para os quais eu convenceria com minha retórica que são necessários muitos recursos. Assim, para se ganhar dinheiro precisa gastar dinheiro de antemão. Assim é que corroboro minha humilde tese de que a realidade apenas é.
Pensei que poderia até freqüentar umas aulas na universidade, nas salas dos meus colegas que ainda ficaram por lá. Mas andando pela universidade, senti-me um fantasma, ouvindo ecos pelas paredes que diziam que um ciclo se fechou, que a fila anda, que a seta do tempo anda só para frente. Não vi ninguém e quem me viu não me notou. Já foi o seu tempo, diriam, se pudessem. Haverão sempre de perguntar o que farei agora, como se fosse a coisa mais impossível fazer alguma coisa depois da graduação. Haverão de perguntar se estou lendo, para ficarem espantados com uma lista de quatro ou cinco livros que já li, ou mais, de filosofia, literatura ou poesia, como se fosse mentira, conversa de pescador, como se fosse um absurdo sem tamanho eu ser um leitor voraz.
Tempos bicudos! Depois da graduação vem a legião estrangeira, a “aridez de dez desertos”, essa quebra de ritmo, essa indefinição, esse estar por sua própria conta, esse abandono no silêncio de todas as suas dúvidas. A não ser que você se entregue de imediato ao jogo entojado das iniciações científicas, colóquios e simpózios, uma luta inglória por bolsas, porque, enfim, meu progenitor não vive e a viúva dele não casou com aquele fazendeiro rico. Nada contra a academia. Mas também nada a favor. A academia, como a realidade, não é boa nem ruim, a academia é, e é o que é, não outra coisa. Se quer criticá-la ou mesmo zombar dela, faça primeiro o jogo dela, para depois fazer o seu.
Eu vou ser filósofo, mas resolvi que antes disso quero mesmo ser escritor. Seu campo de estudo é mais atraente e convidativo, a rua, a cidade, a noite, as madrugadas, os sentimentos. Seus objetos são as pessoas, seu escritório e fonte de inspiração, mais do que uma sala de aula, é o bar. Aliás, falando em bar, tenho mantido uma certa proximidade com a universidade. Mais propriamente com o bar nas suas proximidades. Só não é o mesmo bar porque mudou de ponto. Mas são os mesmos donos, os mesmos fregueses, agora com mais espaço. Lá não tem como me sentir um fantasma. Sou bem recebido e reconhecido, mesmo agora que sou bacharel. É indescritível a sensação de estar nesse ambiente, o tilintar dos copos, o corpo suado das garrafas, o burburinho das gentes, o abafado de tanta fumaça de cigarro, gente chegando, gente saindo, gente procurando gente, querendo passar o tempo, fazer amizades, conhecer pessoas, conseguir um pouco de sexo, matar o tempo que nos mata, fingir que essa é a melhor maneira de se gozar o verdadeiro ócio. E é mesmo.
Quem é sábio e não tem nada que fazer, vai fazer esse nada no bar.

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