quarta-feira, outubro 25, 2006

Para ver se há vida lá fora

De novo a partir de uma conversa com essa amiga (já vira uma comparsa), citada no post anterior, vou descobrir que me pego dizendo muitas coisas que antes não dizia nem por decreto. Que estou apaixonado quando estou apaixonado, que estou sofrendo quando sofro e por aí vai. Medo terrível de estar entregue a um indesejável racionalismo.
Mas esse sentimento a que chamamos, por falta de outro nome, de amor, nada tem de racional. Nem preciso pedir a ajuda de Camões para corroborar minha afirmação, sinto na pele as conseqüências dessa irracionalidade do amor.
Mas voltemos à conversa. Na qual, relato minha última peripécia. Ter em casa a mulher que eu amo, deprimida, chorando, com dor de cabeça. Fico feliz por ter procurado refúgio em minha reles morada, junto a minha tão mais reles pessoa.
As providências são simples. Desço à farmácia para comprar um remédio para a dor de cabeça. Ligo para a pizzaria para uma meia calabresa meia mussarela. Tudo pronto, sentamos, comemos. Recorro ao meu repertório para conversar desconversando. Conto histórias, as minhas de infância e adolescência. Arranco um primeiro esboço de sorriso. Falo de minha vida, sempre da maneira mais jocosa, o que é típico de minha família. Mais um sorriso, acrescido da participação dela na conversa.
Seu rosto começa a iluminar-se. Estava antes com cara de quem havia morrido. Mas ilumina-se. Eu me lembro que a tinha abraçado para consolar, beijado a testa, as mãos. Agora ela está sentada na cadeira em frente a poltrona em que estou sentado. Tem umas músicas para um fundo musical, apropriado para minhas reminiscências. Falo da vida um pouco mais, dos filhos, de cachorro, de gato, de minha primeira namorada, meu primeiro chute na bunda, um ano para esquecer, até que minha imagem no espelho mandou-me deixar de frescura e ir viver a vida. Essa imagem nunca mais falou comigo. Podia falar agora.
“Sinto que a amo mais do que possa imaginar.” Amo um amor em meio a tantas dificuldades, tantos obstáculos e impossibilidades. Amo alguém que ainda não tem condições de ver, sentir, pesar e medir, cheirar, vislumbrar esse amor. Então ela gosta de mim e não consegue entender porque fica em paz ao meu lado e esquece do mundo, da mesma forma com que eu simplesmente destruo tudo em volta para existir só ela e eu naquele momento que queria fosse eterno. Mas é só enquanto dura. Ela gosta de mim. Não me ama.
Um dia ela vai embora. Eu fico aqui esperando aquela imagem do espelho dizer-me para deixar de frescura e ir viver a vida.
Eu vou ter que olhar pela janela muito tempo, para ver se há vida lá fora.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Solidão Renitente

Solidão, esse tema renitente.
Trinity, em seu “Catástrofe Psicológica”, põe tudo de pernas pro ar, fazendo-me prestar mais atenção do que de costume a esse sentimento, de uma forma que não sei se quero e que não fiz até agora simplesmente por não querer. Ainda bem que derramou em poesia, uma língua que eu entendo, quer dizer, acho que entendo.
Eu falei em tantos poemas manuscritos, ainda não digitados, guardados para curtirem no tempo e assumirem uma forma mais eloqüente de um desespero que se quer sob controle ou de um descontrole que se quer na maior tranqüilidade.
Meus termos são “palavras cansadas”, “folhas mortas”, “um trem que vai e outro que vem... e não me leva pra nunca mais”, “silêncio”, e ainda ontem um poema em plena sala de aula vai me sair assim:

Vai, leva seu corpo
E me deixa morto
Nesse meu lugar que é o chão
E nessa vida que é solidão


Única coisa que lucro disso é um título para um próximo livro, “Folhas Mortas”, alusão a algumas andanças no meu conhecido Central Park, em que pensar na solidão sempre foi a praxe de perder-se entre troncos e pensamentos. A pisar as folhas mortas. Às quais ninguém contempla ou pelas quais ninguém vela.
Mas agora o que me intriga é saber que solidão é essa que minha querida amiga fala em seu post, que eu ainda não conhecia nela e, muito provavelmente, nem em mim. Abriu a Caixa de Pandora. Essa nossa amiga solidão saiu com uma outra cara, vestida de outra forma. Eu não tinha pensado nisso. Justamente nós que sabíamos lidar com o que queríamos da solidão e lutar contra o que não queríamos. Minha amiga pega essas duas coisas e joga num mesmo caldeirão e cozinha em fogo alto até a fervura. Agora resta-me digerir esse caldo.
A caça diária, a busca, a procura incessante por um pouco de algo em alguém que nos quebre essa sensação de que a solidão vai ser para sempre, inevitavelmente. E também essa sensação de não ser percebido pelos outros, não ser levado em conta, não considerado em seus sentimentos. "Esse aí está bem sem ninguém, porque ele não tem ninguém". Um paralogismo mais do que absurdo.
Olhar em volta e todo mundo ser assim tão normal. Normal em seus namoros, em seus beijos, em mãos juntas, abraçadinhos e você por seu turno dando-se conta de que ninguém lhe percebe o mínimo. Gostam de mim. Que desgostem então, esse sentimento é muito mais verdadeiro e coerente. Que me olhem e não me vejam, que eu fale e não me escutem, que eu escreva poemas e ninguém leia, que eu ame tanto e ninguém saiba, por não ter mais que saber.
Um dia, deveria ter contado antes para minha solitária amiga, uma visita à casa de um amigo com nossos amigos que ela tanto conhece e sabe quem é. A esposa desse amigo perguntava a todos se tinham arrumado namorada. Engraçado que não perguntava para mim. Namorada não combina mais comigo. Amar não faz mais parte do meu rol de sentimentos. Estar apaixonado deve ser uma coisa estranhável. Deve ser isso que a esposa de meu amigo via então em mim. Ou sabia a resposta. Seria como perguntar a um doente crônico se ele está bem.
A solidão será essa doença crônica e incurável.
Tem também um telefone em cima da mesa que nunca toca, nem por engano. E um silêncio enorme na sacada, diante do olhar indiferente das estrelas. E uma recusa em falar sozinho, nem que seja pra me distrair. E tem umas horas em que você é um ponto estático no espaço e o tempo não é linear a suceder-se em passado, presente e futuro, mas é alguma coisa toda em torno de você. Quando tudo acontece de uma só vez e tudo só pode ser sentido de um único modo.
Isso é a solidão. Só não sei se estou cansado dela. Por não saber se posso me cansar da única coisa que tenho. Não sei se posso nem me cansar...
Isso também é solidão.

terça-feira, julho 18, 2006

Maya

Sinto falta de toda uma vida. Estou preso no passado. Todos os seres humanos sonham com o futuro negando-o. Porque o futuro é contingente. Só o passado nos parece real, completo e acabado, resumido em nossas fotografias, ou em nossas parcas reminiscências. O presente é dúvida, ilusão talvez, ahimsa, a tríplice ilusão: a ilusão física, a ilusão psíquica e a ilusão psicológica. O futuro é esperança pura, somente. E nossa fé no futuro é tão pouco fundamentada, tanto quanto nossa certeza sobre existirmos.
Sinto falta dos quintais para lavar, da minha cachorra que acompanhava todo esse trabalho, das malcriações diárias de meus filhos, e de todas as suas coisas, sua vida, sua cara, sua presença, a sensação de que parte de mim está neles e neles parte de mim também está. Pode ser que seja um outro tipo de fé sem fundamento, mas não falo de certezas, mas sim falo de sentimentos. Sinto falta de acompanhado não ter companhia.
Sinto falta até de meus cds, que parte da vida foi necessária para juntar e um momento apenas para me apartar deles. Sinto falta de um mundo em que me iludi que era feliz. Sinto falta dessa e de todas as ilusões. E a realidade me ensina aos poucos e tão dolorosamente. E não há ninguém para quem eu possa contar que sofro por tão pouco. Não há ninguém que me ouça o que não sou mais capaz de calar.
Ganhei de presente da realidade algo que se pode chamar de liberdade. Mas o preço foi a solidão, como aqui nessas linhas, em que não sei quem me lê, quem diria o que, quem sentiria a mesma coisa, exatamente do mesmo jeito. Com a liberdade a solidão e com a solidão a tristeza, mas não como um sofrimento inútil e digno de pena, uma tristeza de existir olhando para as coisas certas do modo como elas devem ser olhadas.
Em minhas noites mal dormidas, o passado, o presente e o futuro se alternam, em sonhos, pessoas ainda sem rostos, como deve ser todo mundo sem todas as suas máscaras. Enigmáticos, esses sonhos não resolvem nada, complicam o que deveria ser simples, enchem de angústia cada nova pergunta sobre o tudo e o nada, sobre o vazio e o silêncio, sobre essa solidão mais existencial do que real.
O mais perto que chegamos da ilusão é a alienação, que cultivamos até pelo menos o fim da adolescência, quem não tiver a sorte de cultivar só até aí. Começamos a ser adultos quando despertamos para o real? Acho que não, porque ninguém desperta para o real tão facilmente. Mas começamos a ser adultos quando paramos de nos iludir, quando a alienação não faz mais nenhum sentido. Então começamos a saber e, o que é pior, a querer saber. O conhecimento traz o sofrimento, o conhecimento traz a relação indubitável e inevitável com a nossa subjetividade. O conhecimento só não traz respostas, paradoxalmente, traz perguntas e com elas as dúvidas.
E eu sou quem aqui? Um náufrago numa ilha perdida, distante, que atira mensagens em garrafas, para um futuro incerto. Tenho comigo somente o presente inútil e o passado, eterno e renitente. Uma realidade que se resume em si mesma, como uma esperança infundada, alguém achar umas das garrafas e saber que estou vivo. Mas resgatado, o que me aguarda não é o futuro, mas um novo presente, sempre o presente, essa ilusão de tudo ser real.
Sempre o tempo que nos intriga, ou o estar à mercê do tempo que nos devora aos poucos.
Falta-me ponto de apoio na consciência, ou o discernimento de uma mudança de estado de consciência. O tempo não existe e a ilusão deve ser superada na busca do Si-Próprio.
Resta a nós, pobres mortais, a ilusão do ser, de ser, a ulusão da realidade, do amor e da felicidade.
A ilusão de que o que digo é uma verdade.
E a ilusão de alguém crer em mim.

terça-feira, maio 23, 2006

O riso mais triste que já vi...

Passado o grande alvoroço das movimentações e agitações que assolaram esta que é a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo, resta esperar baixar a poeira que ainda esvoaça, o sangue escorrer com a chuva para os bueiros, há que se perguntar o que resta. Resta esse ranço de medo, essa prontidão perene diante do que, afinal de contas, nos parece inevitável.
Agora nos monitoram os posts nos blogs? As mensagens na internet? Os telefonemas aos amigos? Os passos na noite escura?
O Grande Irmão espreita com seus olhos eternamente abertos e ouvidos atentos. Somos todos suspeitos? Somos confrades daqueles que estão encerrados em suas celas e, no entanto, tão mais livres do que nós? Somos presa de nosso medo e escravos de nossa apatia? Que fizemos? Que sindicato pensou em fazer uma manifestação em repúdio à violência e à falta de segurança, diante de algo que aconteceu, mas que não podia e nem devia acontecer? Que grupo de estudantes foi às ruas pacificamente gritar que a população precisa pensar sua história no decorrer das mazelas políticas, da incompetência e do descaso? Não para criar mais confusão, mas para criar em si mesmo e nos outros esclarecimentos. Que sociedade é essa que somos que abdicou de pensar?
Nos trancaremos em casa, colocaremos grades nas portas e janelas, blindagem nos carros, muitos irão querer andar armados, não sairemos mais à noite, tão bela hora do dia, porque estamos presos em nossa própria apatia e alienação.
Nós só queremos paz e tranqüilidade, nossa cervejinha toda sexta-feira e nosso futebol no domingo, nossa novela na TV e algum noticiário sobre coisas trágicas que acontecem, felizmente, distante de nós. Nós só queremos pegar o metrô cheio para o trabalho e não reclamar, aboletarmo-nos nos ônibus também cheios e reclamar menos ainda, eleger nossos representantes políticos sempre mais ricos do que nós que por nós muito poucos dentre tantos trabalham e trabalham honestamente.
Fazemos piadas. Sobre a desgraça e a tragédia, sobre a incerteza de ser uma nação rica, sobre as fraquezas e falta de caráter de nossos políticos, sobre a morte em cada esquina, sobre o falível e sofrível sistema de ensino. E vamos aos bares reclamar nossa falta de sorte. Bem que podíamos ser os Estados Unidos ou a Inglaterra. Por que não somos a Alemanha ou a França? Ou bem que podíamos ter sido colonizados pela Holanda. Nós somos nossa maior piada.
Mas agora tudo vai passar no grande recesso julino, vamos ser hexacampeões do mundo e ostentar mais este título tão inútil como essas minhas pobres e meras palavras. Pão e circo com pinga e cerveja. E futebol. Sugiro dois carnavais, um sempre em fevereiro e outro em novembro, precisamos de mais circo, muito mais do que pão.
Sei que agora mães atônitas de pessoas que ostentavam fardas, ou não, velam, inconsoláveis, covas de cemitérios. Um pedaço tão pequeno de chumbo ou sei lá o que é mais do que suficiente para por fim ao trabalho esmerado e demorado da natureza. E a vida não vale nada quando entre lágrimas essas mães perguntam-se: por quê? E filhos perguntarão por seus pais e suas mães que desapareceram numa segunda-feira qualquer de um mês qualquer, numa hora qualquer, e estarão órfãos não só dele, mas órfãos de dias vindouros, órfãos de porvir. E odiarão mais os que estão encarcerados, tão mais livres do que nós, e esse ódio alimentará o ódio contrário e nada haverá que pare de alimentar o ódio que alimenta o ódio. E tudo tendo paradoxalmente iniciado por um pretenso e alegado amor, a visita filial no indulto do dia das mães, essas que quando pariram seus filhos e quando os geraram teria havido ainda amor?
Mas há a copa do mundo... seremos hexacampeões. E sempre tem carnaval, ninguém atrapalha o carnaval. E nem a novela para algum horário extraordinário para informar que a realidade está se tornando a nossa pior novela.
E depois de tudo tem o horário eleitoral gratuito, quando grudaremos nossos olhos na tela para rirmos das piadas sobre o que deveria ser sério e para alimentar nossas próximas piadas.
E rimos tanto que não percebemos que rimos de nós mesmos.
E é triste, o riso mais triste que já vi.

sexta-feira, abril 28, 2006

Mercedes Sosa

Central Park, 25/04/2006 – 22:20

Não à Universidade! Para casa trazendo relíquias do passado... acompanhavam-me Mercedes Sosa, Martinho da Vila e Gadamer. Mercedes foi a primeira a falar-cantar e eu tinha a certeza de nada mais fazer de útil, estudar para uma prova me por a prova e nada em mim, nada prova que seguirei adiante sem essa carga, sem esse peso na alma que me trouxe até aqui. Chacarera de las Piedras, Cantor de Oficio, Duerme Negrito, Antíguos Dueños de las Flechas, Los Hermanos – La Carta, a carta que ora o nada arranca do nada de mim, e Mercedes cantará quarenta músicas e me perderei a recordar três discos que tive e que recuperei hoje quase por acaso. Por acaso tudo o que me ocorre por ora é por mero acaso... terão sentido minha falta por ventura? Pouco importa, se já me é o bastante a falta que faço a mim mesmo. Ky Chororo, Gracias a la Vida Volver a los 17 numa Cancion con Todos e com ninguno, com ninguno...
Em casa me aguardavam todas as mulheres desenhadas que nasceram de mim, a mirar-me com seus olhos azuis, verdes e castanhos, a mirar-me mesmo sem os olhos. E eu desenhando mais ilusões entre paredes tão brancas, uma lágrima que cai na caneca de alumínio cheia de coca-cola, a me dar a noção do fundo de todas as canecas onde afundo aos poucos o pouco de vida que fica para ser vivida, que me resta dia a dia. Onde eu possa afundar a insignificância de ser o que nunca deveria ter sido.
Violeta Parra, bailarina de águas transparentes... e nós tristes como a areia do deserto... Gracias a la Vida, me dio dos luceros, que cuando los abro perfecto distingo lo negro del blanco e en alto cielo su fondo estrellado... su fondo estrellado, a me invadir as sacadas da alma, a iluminar-me as entranhas tão ressequidas pela falta de um tão pouco de amor... Gracias a la Vida por tão pouco de quase nada, quase nada! Hans-Georg Gadamer calado e fechado sobre a mesa, eu hoje não sei que jogo joga o jogo em que perdi tudo e mais um pouco, Destino, Moiras, Erínias em minha noite sem Musas, e demônios trazendo mensagem dos deuses: não há mais esperança!
Resta agora somente ecos do passado distante, morto e insepulto, que me assombra todas as noites, me rouba o sono, me traz pesadelos e sonhos enigmáticos, que me tira a paz de estar só e em silêncio, e arranca um grito imenso saído de todas as minhas profundezas.
Volver a los 17 después de vivir un siclo, é como decifrar signos sin ser sabido competente, volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo como un niño frente a Dios... como un niño, como un niño, como un niño! Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber... hasta el feroz animal susurra su dulce trino!
Mercedes de meus dias mais queridos, aonde foste te esconder de mim? Bendita a alma que não quis mais teus discos para eu os querer de volta para mim! E me trouxeste um misto de alegrias e tristezas, tudo a um só tempo, num mesmo frágil segundo, uma precariedade tão humana de uma fragilidade imensa diante da inexorabilidade do destino, o fado a que estamos fadados. Um tempo que passa por nós e através de nós, que passa a despeito de nós todos, apesar de cada um de nós.
A esta hora exactamente hay un niño el la calle... minha rua de outrora tão universo, meus idos dias tão distantes, tudo nunca será como antes... os sons que ecoavam no estúdio onde eu desenhava um futuro que nunca iria mesmo acontecer. E agora estou bem aqui nesse futuro que não aconteceu, esperando por um outro futuro que também não irá acontecer. Ah! O tempo, essa invenção nossa sobre a eternidade.
Tudo é inútil. Tudo o que fizemos, fazemos, tudo o que faremos. Tudo o que dissemos, dizemos ou diremos. Tudo o que pensamos e pensaremos é tão inútil sobre um dia amanhecer sempre o mesmo e eu nunca outro. Nunca outro... eu mesmo!
Gracias a la Vida que me ha dado tanto, me ha dado la marcha de mis pies cansados con ellos anduve ciudades y charcos, playas y desiertos montañas y llanos y la casa tuya tu calle y tu patio... o quintal de todas as indiferenças, tão vazio de todos os brinquedos e fantasias, tão sepulto no tempo, tão vazio de um vazio a ser percorrido com olhos molhados e cansados, de olhares atormentados por outras estranhas escuridões e nunca percorridas imensidões.
Não há volta e nem eterno retorno. Nada volta quando a criança morta em mim visita todos os lugares da infância, todos os sorrisos e palavras tolas, todas as vãs esperanças de amanhãs e manhãs de um sol sempre vermelho nos desenhos, todos os pensamentos sobre a vida ser uma doce e eterna brincadeira de um brinquedo que se quebra, afinal das contas, se quebra e se desgasta, perde a cor ou uma de suas peças, amassa, enruga, e a brincadeira dentro de si perde todo o fôlego só porque este se acaba, de o amor ser uma chama que nunca se apaga. Uma chama que nunca se acaba!
Eis que palavras nunca antes proferidas querem hoje me visitar e não tenho um tapete à porta e no forno nenhuma torta. Água ardente nas entranhas, essas palavras são tão estranhas, vindas de onde é que eu não sei?
Violin de Becho... Jo tengo tantos hermanos... e um silêncio profundo em mim há tanto tempo vazio de música.palavras me visitam e tenho medo do que me revelam, medo do nome do medo, de me cair esta última máscara, que me desnudará o rosto, marcado pelo desespero de nenhuma expressão que seja vida e verdade e vontade e força e um passo adiante. Só um passo adiante de cada vez, um a cada dia, um dia de cada vez, eu queria viver um dia de cada vez, não todos que se acumulam na memória do meu coração.
Uma pausa para respirar... esse ar pestilento que vem de dentro, emoções ofegantes, paredes brancas, árvore na janela, uma samambaia que toca o chão, um olhar que toca o céu, um saber tanto de solidão, um olhar atônito para tudo o que não sou eu, não sou eu... uma pausa para uma ressurreição, uma pausa!
Quem me ouvirá agora na calada da noite um último grito? Quem me verá deitado no chão de minha impaciência com tudo? Quem me criará a angústia quando ficar órfã de mim? Quem cuidará de meus tão pobres sonhos? A quem importará tantos papéis nos quais escrevi meu nome com letras de sangue? E quem saberá de mim, que ocupo tanto meu tempo com todo esse não ser? Quem será capaz de ler em tantas páginas sangradas tudo o que tenho de mais morto em mim? Quem saberá que faltou um gesto a mais de carinho? Um gesto tão pequeno... tão pequeno! Quem se importará com a paixão que se perde sem razão justamente no fim da razão de tanta paixão?
Não posso achar do passado nada além de meus velhos discos, meus livros tão lidos, tão velhos quanto meus dias, tão presentes comigo e silenciosos, com tanto para dizer. Nada mais posso encontrar além de paisagens transmutadas, agora estranhas, tão estranhas, onde outrora corria um menino tão livre dessas realidades impossíveis.
Aonde foram todas aquelas pessoas de antigas festas em minha casa? E agora o que falta em mim é festa? Daremos uma festa para ninguém vir... para ninguém sorrir, para ninguém se divertir. E chamaremos essa festa Vida. Minha casa vazia de portas abertas e em mim todas as janelas fechadas, por estarem todos a dormir, a sorrir, a conversar e a cantar... e tudo é assim tão falso e superficial, tão postiço na máscara de cada um. E eu vejo tudo isso por estarem todos a andarem de mãos dadas e aos beijos, abraçados e enamorados e serem tão infelizes, tão infelizes! E vejo todos estarem enamorados, mas não de mim, não de mim, não tanto assim. Então era para eu ser feliz. E o que eu vejo é todos estarem tão ocupados em fugir de sua solidão tão menor do que a minha.
Disfarcemos toda essa festa interior, que todo dia é dia de tristeza. Todo dia há de nascer uma dor nova que apagará um velho sorriso e cansará essa já tão exausta vontade de viver.
Não parou o tempo para esse lamento e serei posto a prova, mesmo com toda a trova, com toda coisa não nova, mesmo com tudo que esqueço e não esqueço, o tempo passa e não espera a dor passar, mas passa por ela e a deixa doer.
Mercedes! Trinta e seis canções e faltam seis... e que será de mim quando se calar de vez toda a música que há em mim?
E eu não sou menos inútil do que essa noite a esmo, do que todos os dias até agora. Não sou menos inútil do que eu penso, do que consigo ser, do que sei que consigo ser. Um mundo inútil a nossa volta é o que temos, que não nos completa e não satisfaz.
E eu sei agora porque rasguei todos os desenhos, só não sei porque os faço. Criar é tão falso como viver, uma vida que você não sabe real, o que cria nela não sabe de onde sai. E nada sei dos poemas e nem eles nada sabem de mim. Nos encontramos ante o espaço vazio existente entre o pensamento e o papel e passamos dias nos estranhando, até sermos capazes de ler um ao outro. E o que em mim os poemas lêem é o que neles não consigo escrever. E tudo o que escrevo é exatamente tudo o que não fui capaz de ler neles.
Uma pausa para pensamentos distantes que demoram a vir... há que se andar pela sala de um lado para outro, há que se buscar na janela e na sacada no silêncio um resquício do que nunca se disse e nem vai dizer, porque é pura intuição e vivência, que quando se diz, vira somente experiência. Empobrece-se em palavras. Essas palavras que vieram de tão longe, quando dei por mim, estavam aqui a fazer choça de mim e vieram para ficar, mas não se revelam assim tão facilmente. Elas se escondem nos labirinto de todas as minhas dúvidas e inquietações. E eu não sei o que vim dizer aqui, não sei o que há para dizer, nem sei se é para se dizer. Sou assim a morada lúgubre e pobre de tantos desses pensamentos misteriosos, que se revelam aos poucos e tão intensamente sob o efeito de uma dor fulminante. Os pensamentos me doem... traze-los só se doer.
Si se calla el cantor calla la vida, porque la vida misma es todo un canto... se eu pudesse calar o canto, calaria a vida, mas um canto de vida há sempre de transbordar mesmo que eu não queira ou não saiba, mesmo que eu não sinta.
Os pensamentos chegam a doer quando chegam! E quando chegam os pensamentos, a luz acaba coincidentemente. E à luz de velas minha energia é a vapor. E o torpor é um outro modo de sentir a mesma dor.
E o sono me garante que se apaga a luz desses pensamentos. Já não sei onde comecei e como cheguei até aqui. Minhas estradas não têem meio, apenas começo e fim.
E meus caminhos não têem direção, somente passos na escuridão...
... às vezes há a luz de uma vela.

Madrugada: 00:21

PS.: a luz voltou, mas não me trouxe nada de novo, a luz do amanhã também não me trará.

Si se calla el cantor calla la vida
porque la vida misma es todo un canto.
Si se calla el cantor muere de espanto
la esperanza, la luz y la alegría.
Si se calla el cantor se quedan solos
los humildes gorriones de los diarios.
Los obreros del puerto se persignan,
quien habrá de luchar por sus salarios.
Que ha de ser de la vida si el que canta,
no levanta su voz en las tribunas,
por el que sufre, por el que no hay ninguna razón
que lo condene a andar sin manta.

Si se calla el cantor muere la rosa,
de que sirve la rosa sin el canto.
Debe el canto ser luz sobre los campos,
iluminando siempre a los de abajo.
Que no calle el cantor porque el silencio,
cobarde apaña la maldad que oprime.
No saben los cantores de agachadas,
no callarán jamás de frente al crimen.

Que se levanten todas las banderas,
cuando el cantor se plante con su grito,
que mil guitarras desangren en la noche,
una inmortal canción al infinito.

Si se calla el cantor... calla la vida.

terça-feira, abril 25, 2006

Eu me calo...

Eu me calo e as palavras transbordam outras formas, de qualquer modo esvaem-se de mim, incontidas, incontroláveis. Eu me calo diante da inutilidade de meus dias e de minha parca e pobre história, tão mal contada, mal vivida, mal começada e mal acabada. Eu me calo e o que sobra é somente esse tão conhecido silêncio. E o que mais eu queria? Talvez mais silêncio.
Ah! Essa brincadeira de viver. Não dá mais para brincar, saio da brincadeira, carrancudo e aborrecido. Todo mundo se diverte, menos eu. Todo mundo tem brinquedo e eu tenho que inventar brinquedos e brincadeiras na fantasia. Meu único brinquedo é a imaginação. Meu único alento e esperança, minha fuga e minha ilusão. Minha mais garantida alienação. Eu tinha um milhão de outras coisas práticas para fazer exatamente agora, mas estou aqui à mercê da imaginação, criando um mundo que sei que nunca vai existir a não ser em minha mente, um mundo que vai se realizar apenas em mim.
E meus devaneios encontram sempre devaneios companheiros e eles bebem e se divertem, se iludem e se aniquilam, num extermínio necessário e inevitável. Minha tristeza está sempre a dançar com outra tristeza, ou a passear todas essas madrugadas solitárias, onde tudo o que tenho é apenas mais silêncio, absoluto como o tempo, inescapável como parece ser a realidade.
E eu não ouvia quem gritava ao meu lado, nunca. Por preferir sempre a letra fria, a escrita despojada e despejada de emoções. Estou acostumado a ouvir o silêncio e os sons não fazem muito sentido. Se falam comigo meus olhos procuram olhos numa forma de contato entre almas, sons e palavras interiores, pensamentos e sentimentos. Para mim, tudo o que está fora vale menos do que tudo o que está dentro.
Então eu me calo, meu amigo, porque estou cansado de minhas palavras e de meus pensamentos, desse retrato meu pendurado todo dia nesse espelho que não está fora, mas dentro de mim. Cansado desse eu que não anda, não corre, não busca, não quer, só aceita o que der e vier, o que me dão, o que me sobra, o que nem preciso.
Eu vejo o amor fazer das suas por todos os lados, minha companheira de batalha. E de que adiantam agora nossas espadas, se essa luta de morte não se faz com essas armas? E com que armas se farão? Eu risco cinco ou seis nomes da minha vida e de repente não tenho amor nenhum. Você não risca apenas um e não tem amor nenhum. De que somos feitos, de alguma espécie de maldição? Filhos da noite, netos do silêncio. Criaturas de um mundo que subsiste ao lado desse sem que se perceba. Quantos mundos criamos e destruímos sem que escapemos desses dois eventos cruciais da vida, o nascimento e a morte? O que vai te fazer desistir para que eu aprenda a desistir também e viver apenas com essa visão de corpos sem vida numa batalha insana por manter-se vivo? Por que continuamos, se o que nos aguarda é o nada de nada de nada?
Já se perguntou sobre o que falar, meu amigo? E sobre o que calar? Nunca ninguém perguntou o que cala em si mesmo. E agora nem sei, porque silêncio e esquecimento andam juntos e eu os sigo a esmo para o mais ermo de mim mesmo. E o mais ermo de mim mesmo fica aqui tão próximo e eu não sei onde é.
Só não se cala uma certa poesia em mim. Incipiente. E insipiente. E eu vou aprendendo com ela exatamente o que ela não ensina. Mas sim o que arranco dela, o que dela se perde para mim, o que dela escapa e não me escapa nessa acuidade ávida e necessária. Eu aprendo o que ela não me diz porque é o que ouço dela.
Mas eu me disfarço e tudo o que viram de mim até aqui sempre foi um arremedo de mim. Nunca quiseram e nem vão querer a verdade, sobre nada e sobre ninguém. Nunca vão querer nada além de mentiras confortáveis e sorrisos postiços em olhares castos. Ninguém cuida do monstro que cria, mas o expõe no monte ao bel prazer de deuses mitológicos, escatológicos, e demônios devoradores de almas.
Eu fui exposto e alimentado pelo orvalho da noite, nutrido pela luz das estrelas e embalado pelas canções das Musas. Fui protegido pelo seio da terra, criado no oco das árvores, escondido em densas florestas. E nunca vi meu próprio rosto. Mas somente essas máscaras que me escondem a realidade. Como essas palavras que me escondem a verdade.
Como essa verdade que me esconde a vida.

quinta-feira, março 09, 2006

De frente para o mar, de costas para o mundo


Duas semanas indo direto para a praia fizeram-me cunhar a frase título deste post: de frente para o mar, de costas para o mundo. Eu imaginei então que essa frase poderia se tornar realidade. Uma casa de frente para o mar, com uma varanda imensa, de onde eu assistisse o pôr-do-sol, ou caminhasse na areia assistindo o nascer de um novo dia. Mas onde sobretudo pudesse estar sentado ao computador, concebendo poemas e romances, ou pintando quadros para mais uma exposição.
Isso ainda é possível. Mas a distância entre esse momento presente e esse futuro desejado nem é quantitativa apenas, é qualitativa. Há uma quantidade colossal de coisas a serem feitas para se chegar a isso e o essencial é exatamente o que falta. Milhares de mesas para serem viradas. Muitos baldes por chutar. Muitas bananas para se dar e muita jaca para se enfiar o pé. Simplesmente uma aventura. Alguns anos atrás e tudo isso era muito mais possível.
O que acha disso, Mr. Gilbert? Você que lê todos os meus posts e nada comenta, eu lhe provoco agora. Mr. Gilbert é cético e eu sem esperança, saudoso de uma fé que nem sei mais como e por que tive. Esse falar solitário para um mundo silencioso é como um andar entre as gentes, multidão sem rosto. Se a loucura tivesse um começo plausível, começaria aqui, na tela desse mundo virtual. De que lado você está? Como é que vêem as minhas palavras lá do outro lado? Como situar-se em sucessões de discursos digressivos? Como parar a mente atônita e lancinante? Essa tortura diária de pensamentos não resolvidos, amontoando-se mais e mais em dúvidas e impossibilidades.
O ser humano é um animal que pergunta.
Mr. Gilbert, conforta-me saber-me lido, mas uns comentários vêm a calhar, porque a mente atormentada precisa de discussão.
O ser humano é um animal que discute.
Trabalho é um castigo tanto na mitologia ou na religião. O homem peca e tem como castigo obter o pão com o suor do seu rosto, cultivar a terra. Isso para dizer que meu trabalho não me dignifica, alguém mentiu durante toda a história. Preciso urgentemente de uma mecenas, de preferência meia idade, sexo feminino, linda e de muito bom gosto. Preciso parir dois romances, três livros de poesias, quatro dezenas de quadros, uma peça de teatro. Não cabem mais na minha cabeça.
O homem é um animal que amontoa lembranças na cabeça.
O amor parece aquela coisa saída mesmo da mitologia. As pessoas apaixonam-se sem controle, muitas vezes, por quem não querem se apaixonar, ou até por quem não podem. Então a figura de Eros, uma criança com asas e seu arco e flecha, envenenando os casais, é o mito que mais condiz com a realidade. Há quem queira ter sobre o amor o maior e mais absoluto controle. Sobre a paixão também. Vontade vã, o amor nos escolhe, quando vemos, uma seta fincada às costas, e a cabeça nas nuvens, um sorriso num rosto eternamente embriagado.
O ser humano é um animal que se apaixona.
Exista deus! Então estamos todos no inferno. Quem aqui merece o paraíso? Quem aqui tem bondade no coração suficiente para mudar o mundo e construir uma vida melhor para todos e cada um? Mas se deus não existir, então para onde iremos? Você pega a aposta de Pascal, Mr. Gilbert? Preferir ser virtuoso, porque se deus existir, tudo estará certo. Mas se não existir, tudo estará certo também, pelo menos levou uma vida virtuosa. Pelo sim, pelo não, seja bom.
O homem é um animal que crê.
Recentemente, discutia-se o fato ocorrido no Irã, de um menino ter o braço amputado por um carro que passava a roda por cima do dito braço, por ter roubado um pão. Prós e contras sucederam-se, como era de se esperar, houve quem já quisesse instaurar aqui essa lei do olho por olho, dente por dente, para as coisas melhorarem. Estado teocrático, cultura milenar que há milênios não evolui. Depois foi uma história em nosso lindo Rio de Janeiro. O espanto diante da reação comum das pessoas diante de um corpo que os bandidos do tráfico esquartejaram, tendo colocado a cabeça sobre o capô do carro em que estavam. Banalização da violência que nos torna indiferentes diante da forma mais radical de violência: a morte.
O homem é um animal.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Triste inverossimilitude

A tristeza é uma casa vazia, um silêncio profundo de uma noite mal dormida, ou passada entre tantos sonhos desencontrados e pensamentos confusos ao despertar. É ter que olhar para si mesmo e dar nome aos seus demônios, ou rezar para um anjo que não aparece e nem vela o teu sono. É encarar as mentiras das verdades da vida, da existência de um deus pai no qual todas as virtudes cumulam-se de modo absoluto, da vida como uma coisa simples e boa, da felicidade como meta tangível para qualquer reles ser humano que andeja sobre a terra e do amor que cura todos os males, aproxima as pessoas e nos torna aptos para a compreensão dos itens anteriores, deus, a vida e a felicidade.
A tristeza é um corpo inerte, uma mente ociosa e uma vontade obsoleta. Corpo inerte que vive como que morto, mente ociosa porque fixada numa única razão para tudo e vontade obsoleta porque não renova o querer, quer sempre a mesma coisa, como se mais nada existisse no mundo.
A tristeza é uma doença da alma, incurável por um tempo indeterminado, contagiosa e de difícil tratamento. Tem como sintomas falta de ânimo, desesperança, dificuldades severas de sorrir, sair de casa, ver gente.
A tristeza não é poética, ainda que nos arranque sempre um certo lirismo. Ainda que nasça quase sempre de um sentimento tão belo, o amor, a tristeza é a escuridão, o fenecimento, a morbidez, o consumo rápido e desnecessário de energias vitais. É filha do desespero, mãe da angústia e irmã da melancolia.
Deve ter sua razão de ser numa idéia de castigo. É punição divina, seja pelo roubo do fogo, perpetrado por Prometeu ou a queda do paraíso, quando Adão e Eva provaram do fruto proibido. Trazemos então essa propensão à tristeza, sentimento por tudo o que nos falta.
A tristeza denota a falta de algo. Falta de algo que queremos ser ou ter. Falta de algo que não conseguimos compreender. E vai ser sempre falta de algo que nos dê prazer. Em todos os sentidos. Se a felicidade de fato não existir, é plausível pelo menos ela ser confundida com o prazer.
Não sei que relação deve haver entre a tristeza e a solidão, porque não é necessária. Pessoas há solitárias, mas que não são tristes, do mesmo modo que pessoas há tristes, mas não solitárias. A tristeza é essa marca pessoal de um sentimento individual, cada um tem a sua, embora possa ser por um mesmo motivo.
Todo esse tratado acerca da tristeza é simplesmente para me declarar triste. É esse o sentimento por que ora sou assolado. Não é mais simplesmente coisa passageira, mas coisa que se instalou aos poucos e, quando dei por mim, estava ali sólida e incrustada no peito. Quando dei por mim, eu já era irremediavelmente triste. Por aquelas questões todas já nomeadas aqui. E por muito mais, triste por muito mais tempo do que eu possa imaginar, talvez triste desde sempre.
Haveria de me perguntar se é por causa das coisas que não fiz. Ou das coisas que fiz de um modo que nunca quis. Mas não é essa explicação mais acertada. Minha tristeza é por causa do não querer. Seria um belo jogo de palavras dizer que eu nunca quis o que fiz e nunca fiz o que quis. Mas não é assim tão simples. A questão é que eu nunca quis querer nada. E quando quis, nunca soube o que era.
Acontece que não adianta querer explicar a tristeza, como se dissecando-a ela pudesse ser combatida. Esse sentimento e seus similares não funcionam assim. Eu sei apenas que estou triste.
Estou triste um pouco por causa de tudo, dos aniversários que trazem seus acontecimentos de volta, da mulher da minha vida que demora a aparecer, por causa dos filhos que não vejo todo dia e da minha cachorra que levaram de mim, sendo que esta não pode pedir para me ver, por mais que queira, não pode! Então tristeza é só isso, não poder nem ver o cachorro? Acho que é isso e mais um pouco. Quando eu tinha cachorro, tinha muito mais coisas. As coisas todas que perdi sem saber por que e que não tenho certeza se terei de volta.
Estou triste porque a solidão passou a zombar da farra que eu fazia outrora de estar com as pessoas e viver com elas. E fica a me incitar a falar com as paredes, a cantar no banheiro, a filosofar com as árvores do parque e as plantas de casa, a ouvir as histórias dos insetos, a contemplar a dança da chuva nas folhas lá fora e o vento orquestrando outras danças de galhos. E me pergunta o que vou fazer desses desenhos tantos e de todos os poemas, aquelas palavras postas no papel sabe-se lá por que e para que, uma vez que era tão bom que permanecessem pensamentos apenas. Porque toda dor que tem nome cria corpo e dá nome a outras dores que criam corpo. E não tarda demônios entrarem nesses corpos, cada qual com seu nome e sua dor, seu castigo tão peculiar.
Estou triste porque se perdeu no tempo o último beijo, a última palavra de carinho, o último momento de intimidade de olhares trocados e juras compartilhadas; estou triste porque sem paixão, sem a dor que traz amar sem se dar conta disso. Estou triste porque até mesmo as lembranças dissiparam-se tão aos poucos nesse cansaço cotidiano de estar só e nessa ilusão de não existir a tristeza. Nada há que me traga o que se foi, que refaça o que se desfez, que conserte o que quebrou, que cure tudo aquilo que dói.
Estou triste porque há o tempo ávido por nos devorar a todos. E quanto mais tempo eu tenho, menos eu sou para ter tempo. Até o dia de ser nada.
Estou triste porque encho a casa de gente e essa gente tem sempre que ir e quando vejo estou de novo com as paredes e os insetos, as árvores e as plantas, e a solidão zombeteira a me perguntar porque fiquei ali e não fui com todos, largando os desenhos e os livros, os poemas e os sonhos, o silêncio religiosamente guardado, essa força tola e inútil de não desistir de coisa nenhuma, de lembrar as datas de todos os aniversários e os fatos que elas trazem, de reviver desesperadamente o que já morreu, de querer inutilmente o que não é mais meu.
Estou triste porque ninguém me pergunta se estou feliz, ninguém me vê chorar, nem me revirar na cama com mais um sonho estranho, no qual as pessoas ainda estão vivas e eu tenho cachorro. Ninguém lembra que eu não trouxe nenhuma foto para não doer mais ainda a vida que não tinha mais, para não estranhar não ser o que nunca na realidade fui mesmo. Tudo o que eu não era ficou. E tudo o que trouxe é exatamente o que não sou. E esses dois vivem a se olhar no espelho e se estranham. Não se conhecem e não supõe um ao outro.
Estou triste porque tudo isso já fez aniversário. E nunca vai mudar nem acabar. Tudo vai ser exatamente assim, do jeito que é. Estou triste porque não há nada a fazer a respeito de nada. A não ser deixar a vida seguir seu curso, justamente por não sermos narradores oniscientes de nosso próprio drama.
Somos parte dele, do drama, e não há como saber se o drama existe por nós ou se nós é que existimos por ele.
Eu não sei quem me inventou. Nem sei o que invento ou o que já vem pronto como realidade e verdade para serem digeridas. Não sei se escreveram ou desenharam o nosso destino. Sei apenas ler ou contemplar esse destino em suas cores e formas e em seus verbos e substantivos, dois pontos, pontos de exclamação ou interrogação. Reticências e parêntesis, vírgula, ponto e vírgula e ponto final.
Eu não creio que haja uma verdade que tenhamos inventado.
Acho que há uma verdade que nos inventou.
Por isso toda essa inverossimilitude.
Triste inverossimilitude.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Aniversários

Ainda se estende o período de comemorações do aniversário de meu desespero. Há um ano atrás só eu sei as agruras que eu passei em todas as esquinas da vida. E aniversários são aquelas datas que a gente marca no tempo marcado por nós, para serem repetitivos, as datas e o tempo, e nós com eles.
Deverei passar incólume pelo desespero que paira em meus momentos, até esquecer que tudo existiu no passado, e que aconteceu tudo o que fiz e não fiz, o que não fiz aconteceu de um modo que é não acontecer, é o que seria se não fosse o que foi. É, o tempo enrola a gente. Se eu voltasse atrás faria tudo igual, porque sou fiel à própria desgraça, fidelidade mais imbecil que essa não deve existir.
E todo dia deve ser aniversário de alguém ou de algo. Hoje é aniversário de alguém e eu daria de presente a necessidade de não ser perdoado. Quero, antes disso, ser capaz de perdoar a mim mesmo.
E eu passei um ano jogando mil lembranças fora por dia e ainda tem muita coisa guardada para jogar fora, e vai ficar entupindo minhas horas, atrapalhando meus passos dentro de casa que, afinal das contas, não me levam mesmo a lugar algum.
Eu diria somente: "Parabéns! Seja feliz apesar de tudo no mundo e apesar de tudo de mim." Mas eu só posso imaginar encontros fictícios e desculpas sem pé nem cabeça. Fui covarde, nunca mais fui ver você que chorou por mim, adoeceu, quis morrer e me esquecer. E parece que conseguiu um pouco disso tudo. Eu me entreguei a uma nova vida e nunca me perguntei se era amor o que deixava e o que eu tinha. Como agora não pergunto se é amor o que me mata aos poucos em cada letra sangrando dessa cantilena de leito de morte. Não me pergunto se é amor o que me consome devagar como uma doença entranhada na alma, sem cura nem vacina.
Ora bolas! Estou pagando por meu crime com silêncio e solidão, com o medo de a vida não ser nada além de quatro paredes vazias que me cercam. Com medo de ter como alento apenas as lembranças de tantas fotos que não trago mais comigo. Porque aquelas pessoas não existem mais, nem aquelas festas e sorrisos, nem os cachorros (de novo os cachorros!), nem aqueles sonhos e planos, aquela ilusão de que tudo estaria tão bem hoje, de tal modo que não seria preciso ter medo. Estou pagando com esse grito preso na garganta. Estou pagando com a falta de perdão.
E pago também com essa falta de paz. Agora não dá mais para ser feliz, o tempo não volta atrás e a gente não refaz o que se desfez e nem encontra o mesmo amor mais de uma vez.
Aniversários são passos dessa caminhada em direção da morte. Eu conto os mortos espalhados pelos campos onde antes havia flores. Onde estão as minhas fotos? E as flores? Onde estão as pessoas vivas com seus sorrisos entre balões coloridos? Por que me cresceram essas crianças? (de novo as crianças...). E por que afinal de contas me invadiram essas lembranças?
É que hoje é o aniversário de alguém que se foi, ou melhor dizendo, alguém que ficou no caminho, quando um acidente me tirou dos trilhos. Eu não quero seu perdão, quero que esteja bem. Não preciso de seu perdão, preciso que viva sua vida como se não tivesse topado com a minha, nunca!
Mas mesmo isso também é pedir muito. Então esquece o perdão e a súplica. Marque um encontro e não venha me ver, mas me deixe ver você de longe, que é onde sempre deixei você. Deixe-me olhar você sem que me veja. Deixe-me sofrer em paz e por mim mesmo todas as besteiras que fiz na vida. Não ceda à tentação de me salvar dessa desgraça, traçada e pintada, destinada exclusivamente para mim.
Só agora eu sei e é tarde. Não amei por causa de você. Não amei mais ninguém. Meu erro foi não perceber que perdia tudo quando me perdi de você. Eu calei em mim o que havia de mais sagrado. Agora é tarde para merecer seu perdão. Nada vai me libertar desse inferno onde estou condenado. Eu não tenho salvação.
Não sei porque voltei no tempo para pensar em você, se não tenho esse direito. Não sei porque achei que de alguma forma merecesse ser lembrado lembrando das coisas esquecidas. Acho que esqueci meus passos na fuga e nunca soube o caminho de volta.
E agora que o encontro é muito tarde.
Apenas isso: é tarde.
E o que cala tarda.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Dioniso não Apolo

Baco, bacante, bacanal, bacana! A festa nos liberta de nossos fantasmas mas nos aprisiona em outras máscaras. Baco, deus do êxtase e do entusiasmo. Eu sou Tântalo, às vezes Pandora, Prometeu, Perséfone. Eu sou Orfeu que desce ao inferno para buscar a amada. O inferno me engole, eu olho para trás e ela vira uma estátua. Morre duas vezes para eu viver sozinho mil outras vidas, nenhuma delas querida ou escolhida, todas ao sabor do tempo passando e devorando minhas lembranças para sempre.
Eu sóbrio seguro o próprio corpo que voaria por uma janela, mas nela deixa voar apenas umas tantas lágrimas, numa sacada que ninguém vê, numa madrugada que não me contém. Eu voltei ao passado onde havia infância, um cachorro vivo, esperança ou ilusão, eu voltei para o sonho não realizado estando na não realização dele, meu presente futuro daquele momento tão desejado por uns momentos. Que não volta mais, nunca mais.
Eu me vi só diante da janela e todos entretidos com o esquecer que existimos e eu existindo penosamente, muito contra a vontade, querendo o silêncio de uma madrugada distante.
Outro dia e outro copo, outra mesa e outro corpo de mulher lambido pelos meus olhos. Estamos sós, mas distantes, eu te levaria em casa, te daria um banho de água e outro de língua. Preciso disso para saber mais que a amizade, no que você precisa precisaria eu de você tantas vezes quanto necessário para aplacar a fome e a sede, a vontade animal de não pensar nunca mais. Eu preciso na sua solidão acabar com a minha, o quanto antes, antes de o tempo acabar com a solidão e a vida mesma, com o que meus olhos podem ver e tocar minhas mãos.
Eu não sei dizer eu te amo! Não posso dizer eu te quero. Mas eu olho em volta e não sei ao certo se quero o que amo, ou não sei se amo, se quero, se sei que não sei.
Voltem para seus lugares! Essa janela é minha e nela projeto algo além do olhar no infinito. Vá um para o banheiro onde estava, outros dois voltem para o quarto, e vá embora quem já tinha que ir e nem venha quem não devia ter vindo. Essa festa não está dentro de mim, fora dela sou espectador de meu próprio desespero. Quantos homens me beijariam e no entanto nenhuma mulher que me toque a alma para que eu sinta a calma de me iludir outra vez. Minta para mim dizendo que me ama, não quero sua verdade que me exclui, nem sua vontade que não me supõe.
Eu sofro e você não vê que nenhuma festa vai mudar o sofrimento que carrego tão dedicadamente. Ninguém supõe que eu falaria o nome de meus trezentos milhões de demônios e mesmo assim eles permaneceriam ao meu lado. Mas nenhum anjo me guarda. Eu sucumbi na catedral em ruínas desde a última guerra santa.
Me dá um pouco do prazer que a si mesmo recusa, um pouco do que não tem para que eu não tenha um pouco do que atira fora. Venha sentar-se ao meu lado nessa noite terrível, o silêncio da madrugada teima em gritar meu nome e se eu não tiver alguém que me abrace serei levado para o início da saga do tempo, onde nem começamos ou terminamos, onde simplesmente acabamos.
Eu amo você. Sem êxtase e entusiasmo. Eu amo você no passar dessas horas nefastas e vazias, no desespero de meus dias. Eu amo você no silêncio da madrugada, nas lágrimas desperdiçadas na janela. Eu amo você com medo de amar. Sem saber mais amar. Eu amo você porque não sei mais o que fazer.
Eu amo você porque não aprendi a odiar.
E talvez nunca aprenda.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Eu tenho que passar!

Eu estou aqui para derramar minhas palavras. Lamento, leitor, se elas esbarram em você. Sai da minha frente, então! Não vim ao mundo para agradar a ninguém. E por mais que eu tente, não consigo mesmo. Então não tenho a ousadia de agradar a gregos e troianos numa mesa hitleriana patrocinada por judeus e palestinos. A esquerda e a direita que se danem no banquete do centro. Eu sou o de fora. Há sempre, sim, esse jogo de contrários em tudo quanto existe nesse mundo. E eu abandonei há tempos aquela necessidade de agradar a todos. Nada mais me desagrada senão a desagradável mania de alguém querer sentir-se agradado. Agrade-se do que quiser, a mesa está posta, o jogo foi iniciado, a sorte está lançada, o destino traçado, de algum modo que não sabemos, pelas Erínias. Ou não, traçamos o destino a cada momento desprezível que gastamos do tempo efêmero que temos. Vai saber... viva sua vida como quiser e busque a morte se for seu desejo. Só quero que me deixem ser medíocre e tolo, sonhador e fútil, pequeno e insignificante. Pois pode ser nisso tudo que hei de encontrar uma certa grandeza, talvez a grandeza de ser nada. Todo mundo é alguma coisa, todo mundo quer, todo mundo faz, todo mundo tem. Busca, luta, tenta, cai e levanta, tenta outra vez, acredita, se desespera, enlouquece, corre, corre, corre e morre. Eu não! Minha vida não é um filme hollywoodiano de aventura. Muito menos um dramalhão mexicano ou uma novelinha global. Minha vida é a merda da realidade protocolar e inútil, pasmaceira de mesmices, enjoamento de mesmos rostos, expressões, histórias e palavras. Minha vida se faz no que se desfaz e ninguém pode saber se o começo é o fim ou se o fim é o começo.
Pouco importa o saber, por mais que o venere com inquebrantável fidelidade, pouco importa o saber, que não me tira o cansaço, não me renova inexistentes esperanças, não traz nenhum alento para a angústia latente de tantas madrugadas insones, pensativas e estarrecedoras. Deixo os outros saberem muito mais que eu sobre tudo o que nem se escreveu ou nem se pensou. Academia de sábios insatisfeitos é aquela que usa o saber para deleite da própria vaidade, enquanto a maior vaidade que tenho é poder defecar o que comi. Então eu me alimento de sonhos, de palavras e de conhecimentos alheios, de sonhos e visões dos iluminados, de lirismo dos desenganados. Eu me alimento das alucinações dos tresloucados. E das dúvidas dos profetas e dores dos poetas. Eu hei de sempre cagar poesia!
E limparei a bunda com tantas páginas escritas.
Pouco me importa saber se sou deus ou o demônio. E se não sou nenhum deles, pouco me importa saber de qual deles sou. Desconfio que deus criou a escuridão e o demônio a luz. Dá para saber quem plantou no paraíso a árvore do conhecimento do bem e do mal. Sei que somos todos órfãos. Estamos sós na madrugada do universo. Minha prece sempre foi o grito preso na garganta depois de mais um pesadelo. Eu não tenho medo do medo que tenho. Nem do medo que me oferecem gratuitamente de um milhão de modos diferentes nessa era decadente cujo avanço em matéria de comunicação possibilitou cada vez mais ninguém se comunicar com ninguém.
O que querem que eu seja? Meu gosto é muito duvidoso para escolha de uniformes. Não me caem bem os cintos de castidade (bem como a própria castidade), mas também roupinha de rebelde sem causa também não me assenta. A revolta que me atrai é aquela que me repele.
A causa que me fascina é a que me exclui. Eu não gosto de parecer com nada que anda por aí, por isso disfarço bem.
Desculpe, caro leitor, nunca sairá de mim algo começado com "era uma vez..." e terminado com "... e viveram felizes para sempre."
Porque a vida não é um filme de hollywood, nem um dramalhão mexicano ou uma novelinha global. A vida é essa maravilhosa merda... protocolar e inútil, aquelas coisas todas que já disse.
Para derramar minhas palavras. E para elas esbarrarem em você! Sai da frente. Eu tenho que passar tão rápido como passam as horas de meus dias.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Uma lição sobre o tempo

Ah! O tempo... que nos devora e além disso nos engana. Uma volta completa que a Terra dá em torno de seu próprio eixo, uma volta completa que ela dá em torno do Sol. Eis um ano passando, passado e outro a passar. E o tempo tão temido nada é além disso.
Feliz Ano Novo! Todo mundo diz para o velho que sou, que na madrugada do primeiro dia do ano que começa, carrega as mesmas velhas coisas, as mesmas velhas palavras sobre as coisas velhas e novas, conhecidas, desconhecidas e ainda por conhecer. E para as coisas mesmas que nenhum de nós nunca vai conhecer. O velho que sou olha a juventude nos olhos dos outros e se emociona, chora às vezes, pelo fato do tempo que nem existe nem ao menos voltar atrás, só um pouquinho que seja, para vermos o que se esquece, para sermos um pouco mais o que fomos, jovens e sonhadores, cheios de esperança numa coisa que por estar à frente aprendemos a chamar de futuro. Que é para onde sempre olhamos e não vemos nada. Nada!
Eu vou ser tudo de bom nesse novo ano, você também, todos vão ser. Até ele ficar velho. E ele fica velho logo depois do terceiro mês, às vezes antes.
O problema é que nós não nos renovamos em nossas promessas de renovação. Na emoção incompreensível de atravessar a última madrugada de um ano que se acaba e entrar na primeira de um ano que começa, nós confessamos todos os nossos pecados existenciais, para esquecê-los logo depois, no primeiro ou no segundo dia de nossa nova vida.
Dia Mundial da Paz! Primeiro dia do ano e nenhuma das guerras cruentas se entregou a uma trégua. E se tivessem mesmo se entregue a tal trégua, por que dela não gostaram, posto que retornaram à guerra como quem retorna ao trabalho? Dia Mundial de Tudo o que Não Temos. Nem nunca teremos.
Mas vão dizer que vale a esperança. E que não se pode ser assim tão pessimista. Vão dizer que é essa mesma a essência da vida, esse ar de levar os dias como quem cumpre um castigo. Um castigo divino. Não se nega aqui a esperança, cobra-se que ela valha para cada qual que a vai reivindicar. Tenha esperança! Essa frase expressa ao mesmo tempo um desejo, uma dúvida ou ainda um desafio: tenha esperança se for capaz!
Eu apenas me recosto na sacada de meu apartamento, nas primeiras horas da madrugada, que é quando reina o silêncio. Ali há somente o movimento da Terra em torno de seu próprio eixo, e o movimento em torno do Sol. Que trazem os dias que chamamos novos. E os anos. Mas só o silêncio é novo. Eu sei que vai amanhecer e nada de novo no rosto das pessoas, nada de novo em suas palavras e pensamentos, em seus gestos e desejos, em suas ações concretas. E meu silêncio de madrugada na sacada é pura ausência de reflexão. Porque eu não penso. Eu sinto tudo assim como é, como tem sido. Sem pensar. Eu preciso não pensar. Dizem que isso é meditar. Eu digo que é apenas sentir tudo o que pensei, tudo sobre o que refleti, o dia inteiro, o ano inteiro. Talvez a vida inteira. E a vida inteira de reflexão só me trouxe silêncio, um prazer de existir na sacada do apartamento, de madrugada. Só ali.
A imensidão me chama. A escuridão me chama. O vazio me chama. Me chama sempre o silêncio, anfitrião constante de minha solidão.
E eu não fujo das horas do dia. Arrasto-me nelas como que aprisionado, sem ter aonde ir, sem ter o que fazer a respeito de sua falta de graça e vontade de viver. Porque vi a vida no silêncio da madrugada. A vida como um castigo. Um castigo divino. Porque vi a vida quase do modo como deus a vê, inteira em sua essência, do começo ao fim sem ter começo e nem fim. Eu a vi pronta e acabada e sei onde vai dar. A vida se deixa devorar pelo tempo e aposto que o tempo vomita de volta toda a vida que engoliu.
Então olho sempre para o passado, onde estou encarcerado. Porque olhar para o futuro não me faz ver nada nem ninguém. Nada que importe e ninguém que eu seja. E o passado nunca acaba. O que acaba é sempre o futuro. Ele se faz presente e imediatamente vira passado: acaba.
Feliz Vida Velha então. A mesma vida em que nascemos, crescemos e vivemos até então. Nela rimos e choramos. Nela perdemos as esperanças todas para encontrar depois na bagunça das coisas em nossas almas, em nossas gavetas e armários, nos nossos baús e cofres. Feliz Mesma Vida de nossas repetidas palavras (eu te amo e não sei como dizer), de nossas vãs poesia e filosofia. De nossos medos mais profundos, que se escondem no olhar altivo e desafiador do tempo, como o olhar de quem se diz ser a obra-prima da criação.
Feliz Mesma Vida Velha! De todas as palavras que não sei mais dizer: amar, amor, saudade, felicidade (nunca mais vou ver?). Esperança. eu procuro a esperança no silêncio da madrugada, na sacada do apartamento. Na solidão eu procuro o mundo todo. Inútil busca. Eu sempre encontro num outro espelho uma máscara nova ainda desconhecida. Às vezes nela tem um sorriso, com o qual amanheço e ninguém sabe que chorei.
E retomo o caminho da vida como um castigo divino. Com um sorriso de máscara. Com as reflexões do silêncio da madrugada.
À mercê do tempo que me devora.
E me vomita num outro dia.
Num outro ano. Novo!
Feliz Ano Novo!
Feliz Outro Dia!