quarta-feira, dezembro 14, 2005

Uma lição sobre palavras

As palavras são bálsamo, alento, conforto e compreensão. As palavras curam os males que somente são por ela bem definidos. As palavras são bençãos, são materialização de exprimir o que é mesmo inexprimível. São a razão de nos percebermos conscientemente. As palavras são respostas para nossa inquietação diante do absolutamente desconhecido.
As palavras são adagas, setas envenenadas. Matam, destroem, desviam, corrompem, causam transtornos e inquietações, nos carregam o sono e a vontade de viver. As palavras são perguntas de nossa inquietação diante do absolutamente desconhecido.
Começam no pensamento, que é toda palavra não proferida, ainda. Mas que uma vez pensada já existe para ser lançada, contida, ou escondida. Calada para sempre.
A palavra é a negação do silêncio, que é o signo sob o qual se criou todo o universo. A energia é silenciosa. Silenciosa é a escuridão. E o vazio é repleto de silêncio.
As palavras são essa minha maior maldição. Tudo o que eu digo não é diferente de tudo o que não fui capaz de dizer. Tudo o que calo é matéria formadora de outros pensamentos. Acontece que o que calo vira esquecimento. E quando vira de novo pensamento, não me lembro de ter esquecido.
Eu hoje queria apenas ter esquecimento. Só isso e coisa nenhuma mais. Esquecimento de que as palavras me trazem a presciência do vir a ser, esse porvir que me trará sempre um novo dia, um outro amanhecer. E terei rastejado pela madrugada, buscando todas as palavras não proferidas, as esquecidas, palavras que se perderam para sempre no tempo.
Uma lição sobre palavras requer ouvir o silêncio. Que é de onde todas elas nascem, invariavelmente, inevitavelmente.
Eu conheço todas as minhas palavras. Agora busco exatamente aquelas que nunca proferi e as que esqueci. Todas elas são capazes de dar uma tênue noção do que trago dentro de mim e que não pode mais ser contido.
Esse grito na escuridão e no vazio de mais uma madrugada. Onde a mente é o útero de toda e qualquer palavra. E o pensamento é somente o primeiro grito que somente eu ouço e decido se passo adiante, para você ouvir também.
E eu diria tudo, se pudesse. Eu derramaria tudo, se quisesse. E saberia tudo, se fosse possível.
Mas você não ouviria provavelmente. Teria que aprender a lição sobre o silêncio.
E depois sobre a palavra, que é o que esconde minha verdade.
Porque uma lição sobre palavras requer muita audição. Ouvir sobretudo a si mesmo, que é quando mais somos capazes de mentir. Ouvir seus próprios medos e hesitações. Ouvir o que nunca seria capaz de dizer. Eis aí a maior lição sobre palavras.
Saber o que se diz, sempre. E conhecer o que não é capaz de dizer. Mais do que sempre.

terça-feira, dezembro 06, 2005

Uma lição sobre silêncio

Três amigos, duas pizzas, duas horas da madrugada. Um bom papo, música boa, uma amizade inestimável. Momentos que não se jogam fora. Seis poemas a quatro mãos, arrancados da criatividade repentina, não forçada, espontânea, como se fosse nada falar sobre tudo e escrever sobre os sentimentos.
Uma lição sobre o silêncio requer uma janela e uma madrugada começando. Ouvir o mar que não há. Ouvir o próprio ouvido ouvindo a completa falta de qualquer som que aniquila o pensamento, qualquer pensamento, e que é o suficiente para colocar em estado de torpor, de observação suprema e intensa, observação da própria existência quando e como está existindo nesse instante: silêncio. Ou precisa de cores. Silêncio como cores, os olhos no branco do papel roçado pela ponta do lápis ou acariciado pela suavidade do pincel. A cor tem silêncio porque fala por si própria. Ela é a desnecessidade do uso de palavras.
Por que não somos quem queremos ser? Estamos sempre em busca de si mesmo como se estivéssemos distantes de tudo o que é próximo. Nossas próprias respostas sobre perguntas que sempre nos fazemos sobre algo em nós.
Eu confesso que não sei mais me apaixonar no exato instante em que me confesso apaixonado por tudo e por todos. Apaixonado por uma idéia estranha, uma possibilidade remota, uma pessoa que não posso ter, ou uma pessoa que não sei se me quer. Não há a mínima possibilidade de entender o próximo passo, aonde nos leva e de onde nos tira. O medo finca-nos no chão e dá a ilusão de que criar raízes é o melhor a ser feito.
As paredes brancas e vazias do apartamento servem para refletir o branco e vazio de meus pensamentos. Não há como pendurar quadros escolhidos em nossos desejos, uma paisagem, um sorriso, um céu azul e um mar, um beijo, um olhar iluminado.
Estou apegado terrivelmente à lembrança recente de carinhos não declarados, mas apenas extravasados de maneira tão espontânea e plácida, serena como se fosse natural, naturalmente me enchendo a cabeça de perguntas que eu nunca mais queria fazer.
Uma lição sobre silêncio requer não fazer perguntas quando os olhares forem capazes de dizer tudo e quando for possível saber mais sobre o que não se disse do que sobre o que se disse. Incrivelmente saber mais sobre o que não se disse.
Então estou condenado a me apaixonar pela distância entreposta entre mim e tudo o que eu queira. Pela distância entre mim e seu belo sorriso, seu olhar atento, seu semblante interessado em cada palavra que falo. Ou sobre a displicência com que nos abandonamos, quase que sem perceber, ligados um no outro, pelas mãos, pelos braços ou pelos olhos. Às vezes pela palavra, pela saudade inconfessa, pela ansiedade de mais um dia chegar e fazer tudo de novo, espontaneamente. Naturalmente. Sem medo e sem perguntas, sem compromissos mas sem distâncias, com a proximidade de uma doce intimidade, escondida na discrição de uma bela e profunda amizade.
Estou só e as folhas da árvore de minha janela caíram. Devem voltar na próxima estação. Não sei mais o que deve voltar na próxima estação. As folhas seguramente voltarão. O que mais não sei. Recostado em minha poltrona vi o vento provocar um balé nas folhas das árvores em frente. Hipnotizado adormeci e sonhei com o vento. Sonhei com o que vi, estranho! Era como se o sonho quisesse saber o que vejo quando estou acordado, ou o que penso quando não estou sonhando. Há alguém que me sonha os sonhos ou serei eu mesmo. Metafísicas que não resolvem a inquietação de estar vivo indiferentemente, estando dormindo ou acordado.
E vou amontoando coisas que se referem a mim, nas estantes e nos armários, vou guardando tudo o que não sou eu mas que é parte de mim, um pedaço ínfimo que se junta a milhões de outros ínfimos pedaços e não me faz por inteiro. Vai sempre faltar alguma coisa que eu não sei onde coloquei. E que nem sei ao menos procurar. Não sei mais procurar o que falta.
Uma lição sobre silêncio requer uma tal disposição de espírito muito difícil de se explicar. É como um sair do corpo, é como estar morto vivendo o que não se vê, nem se ouve e nem se percebe. É sentir tudo num outro estado. Uma estrada ilusória a passar por nós, os passos que ficam para trás, aquilo que passou e não volta mais, o que se desfez e não se refaz, o que acontece e nunca mais deixa de existir, mas que se perde como pegadas na areia apagadas pelas ondas do mar.
Passei incólume pelo aniversário de meu desespero. Tudo graças a duas amigas na madrugada. Poemas a quatro mãos, companhia, empatia, emoção indescritível, momentos insubstituíveis. E poder me ver refletido em olhos amigos. E fazer parte de histórias que nos contém sem que nos darmos conta de que a escrevemos a cada momento, com a vida mesma, com a emoção, com a dor de estar vivo, com a incerteza de estar buscando uma felicidade na qual se acredita.
E uma lição sobre silêncio requer recolhimento. Suficiente para olhar para dentro de si mesmo, todos os seus próprios espelhos. E desconhecer tudo o que vê. Tirar então todas as máscaras, pouco a pouco e, no vislumbre do próprio rosto, ver que somos exatamente isso que sempre vimos no vir-a-ser.
E manter o silêncio como uma virtude. Como uma devoção.
Ter no silêncio a única forma de oração.
Ser em silêncio sua própria superação.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Alone in the dark


Meu espírito se acalma só na calada da noite, reino das trevas, império do silêncio. E se deleita à beira do abismo na iminência do vôo impossível, mas inevitável. Todas as pessoas dormindo estão como mortas e todas as pessoas mortas como que despertando vêm me contar suas estranhas histórias. Lembranças e desesperos, angústias e reminiscências ao som de violinos na noite. Às vezes saxofones. E pianos.
Às vezes escuridão e pensamentos vazios, soltos no ar como fumaça sempre a esvanecer como os segundos imponderáveis da vida passando, aos poucos e bem devagar, que não pára e nem volta, simplesmente avança em direção ao nada do abismo profundo. O abismo. Sempre o abismo. Materialização da imagem do desconhecido, do oculto e do não revelado da realidade do universo, ou por nós gerada ou que a todos nós gera a cada instante.
Às vezes alguma lembrança me traz uma música que me traz a lembrança de algum momento fixo no tempo. E não sei se me transporto, nessas horas noturnas perdido em silêncio nunca sei mesmo onde estou, que dia é, quem sou.
Há somente distâncias entre as imagens perceptíveis desse mundo lá fora, distâncias impenetráveis e vazias, e estou gritando por você, há muito tempo estou gritando por você. Mas não sei quem você é. E você então não vem. Estou gritando e você não ouve.
Meu ser se torna adensado das histórias que inventa sobre si mesmo, e emaranhado de palavras, enredado de pensamentos, numa prisão suspensa no ar, que pode-se chamar imaginação.
Eu conheço essa tristeza desde os tempos imemoriais em que ela era escondida pela ilusão dos sorrisos e pela falsa impressão de uma felicidade existindo tão tênue e fútil, a não servir para nada, a não ser para enganar os sentidos, para iludir o espírito em sua busca pelo mesmo e inevitável abismo.
Você às vezes é a mulher mais linda do mundo. Às vezes é só uma mulher que me ama. De qualquer modo você é uma fantasia. Existe somente quando fecho os olhos para olhar para dentro. Você sou eu de um modo que desconheço totalmente. Você ainda não nasceu. Eu só vejo você morrendo. Todo dia morrendo diante do espelho para o qual fito meu olhar atônito em busca de uma essência no brilho do olho, um fogo a me consumir a carne, uma dor para atestar a impressão de que estou vivo de fato, vivo e morrendo no ato de olhar no espelho me desintegrando, voando como voa esse pensamento, por sobre o abismo com asas de pássaro coladas com cera. Ícaro tão perto do Sol. Mergulhando na profundeza do abismo. Em direção ao desconhecido, voltando ao ventre da terra que me pariu.
Estou dentro da noite escura, dedilhados de cordas arrastam-se em minha mente. Lágrimas são sons molhados roçando a música do rosto. Meus olhos vêm na noite mais escura. Porque para ver não é preciso luz. Para ver é preciso silêncio. Aquietar a alma no ir e vir do tempo, aplacar qualquer angústia de viver. Aceitar a solidão e domar o medo. Asas sobre o abismo. Último vôo e esquecimento.
Eu sei de repente o que tem do outro lado da aurora que não vem. O que tem por trás do silêncio que não se quebra, eu sei o rosto da morte, eu ouvi o primeiro e último grito da vida. Solitário e perdido na escuridão da noite. Um grito que arranca das entranhas uma estranha vontade de viver.
Eu retornei para casa morto da guerra e todos que comigo lutaram ficaram vivos sepultos no campo de batalha. E carrego agora a maldição de não poder viver e nem ser sepultado na terra manchada de sangue.
Estou construindo um inferno para fugir da salvação. Meu livre arbítrio tirou-me todas as opções. Eu tenho nas mãos o fogo roubado, o fruto proibido e o sangue derramado de meu irmão. Vago em fuga com um sinal divino na testa. Eu não encontrarei paz. Não posso voltar atrás. Nada pode voltar. Nada pode. Nada.
Voltar é abandonar o risco de viver. E a possibilidade quase única de poder morrer.
Eu me lembro muito bem de que vir à vida significou romper a escuridão. Essa mesma escuridão a que me entrego para mergulhar no tempo eterno. Escuridão de silêncio e solidão.
Cantigas de ninar em rituais fúnebres, um berço a sete palmos da terra, bolsa, suco de líquido amniótico, asfixia, um ventre que me comprime. Eu não quero sair. Eu não quero sair da escuridão e ver a luz. A luz que cega. A luz que não deixa ver. Eu não quero olhar direto para o sol. Eu não quero abrir os olhos janelas para um mundo em decomposição. Quero ser luz. Quero entender a escuridão. Quero não ser matéria.
E agora eu quero calar esse grito que nunca ninguém ouviu.
Agora quero ocultar na escuridão essa figura que ninguém viu.
Agora quero esquecer o ar entrando nos pulmões. Me obrigando a respirar.
E pairar com asas de pássaro entre o sol e o abismo.
Almejar o vôo rumo à escuridão.
De silêncio e solidão.
Silêncio.

domingo, novembro 06, 2005

Começo e fim


Vomitei o que não comi, mas saiu o que bebi. Tudo sempre assim acontecendo a despeito de eu existir. Eu nunca estou na cena em que apareço. Sou um figurante de minha vida inteira. Eu não sou personagem. Meu destino desenrola-se a alheio ao fato de eu querer existir ou não.
Vomitei o que não digeri. E mais uma vez perdi o senso sobre as coisas acontecerem ao lado, bem no momento em que não há a menor atenção. Bem no momento em que estou vivendo em standy by, bateria reserva, ávido por migalhas, feliz por estar bem no local em que vai cair o grande raio. Bem no momento em que tenho um relance de alienação, bem no momento em que deveria estar mais prestando atenção.
Eu simplesmente não posso encontrar as respostas das perguntas que não fiz. Eu não posso pensar sobre aquilo que não existe, amor, tão simplesmente impossível, tão facilmente digerível, que saiu no meu vômito no meio da noite. Eu posso conceber a perenidade de tais sentimentos, porque para mim as coisas deviam ser firmes como as rochas e quase eternas como as árvores milenares. Árvores e montanhas, queria que minha solidão pudesse se passar entre árvores e montanhas. Então eu morreria em silêncio e em paz, seria sepultado na relva, naturalmente, e seria eterno como as rochas. Ou quase eterno.
Mas tudo é perene e estou cansado de sentir saudade da próxima vez. Cansado...
Por que eu sou tão infeliz numa noite de felicidade? Por que ao achar o meu lugar eu mais me perco? Por que ao me perder eu tenho dúvida de ter ou não um lugar? Por que a humanidade é pouco? Por que a realidade é tão inútil? Eu tenho sonhos de que não me lembro e fujo por caminhos que não conheço. E não volto ao começo, estou sempre no mesmo lugar sem ser o mesmo. Eu me desfaço no disfarce. Eu me decomponho no que penso e não me reconstruo. Eu me escondo no que falo. Eu simplesmente desapareço no silêncio insuportável.
Um beijo numa noite que acaba me faz pensar na noite que nunca começa, talvez a última tão desejada, em que o amanhecer não venha mais me presentear com a angústia de estar vivo. E o péssimo da vida é não saber a próxima vez. Todo mundo tem saudade do passado, eu também. Mas a saudade que mais me mata é a saudade do futuro, da próxima vez, tão improvável de ser, tão sem chances de acontecer. Eu daria a vida inteira para eternizar um momento, e daria duas encarnações para eternizar uma noite. Mas não tenho a vida nem os seus momentos, eu não tenho tempo, eu não tenho nada que possa dar. E nada posso pedir.
E eu entrei no labirinto dessa linguagem cifrada para esconder de mim mesmo a verdade que eu sei que quer se proclamar. Meu dilema posto toda hora de cada dia que passa sem que nada se apresente de novo ou renovador. O dilema de saber a verdade que tenho que calar.
Cada vez mais a vida é algo muito mais estranho e desconhecido. E é o intervalo que me cabe do tempo posto pela eternidade, que me torna desconhecido de mim mesmo e estranho, um estranho diante do espelho. Não sei quem sou diante de todos os espelhos.
Eu estou a procura das coisas simples no meio de toda complicação que as escondem. As coisas simples não existem. As coisas simples são a gênese das coisas complicadas.
A vida. A morte. O amor. A solidão. A felicidade existir ou não.
A angústia de viver, o medo de sonhar, a dúvida ameaçadora, a possibilidade de a vida acabar e não haver outra. A possibilidade de haver outra e a dúvida não se solucionar.
Eu sei que estou só no grande deserto. Mas tenho que procurar por água. Eu sei que a terrível tempestade a todos afeta, embora me afete de modo particular. Eu sei que estou perdido dentro da noite mais escura, vagando madrugadas adentro, sempre indo embora dos lugares e das situações em que quero estar, por um terrível sentimento de não pertencer a esses lugares e não atuar nessas situações. Eu sei de um certo modo que há um algo em mim de não pertencer a esse mundo que é pouco para mim, ou talvez eu seja pouco para ele. Então o que é pouco pode-se jogar fora. E eu me joguei fora desse mundo várias vezes.
Assustado. Estou assustado com meus pensamentos sempre digressivos, estou atordoado por causa dessa visão estonteante da realidade, exata, ela mesma, sem tirar nem por, com tudo o que tem de necessário, nada além disso. Nada além.
E eu gosto de todos os momentos da vida exatamente quando eles acabam, os bons e os ruins. Sim. Também os bons. Quando eles acabam não preciso sentir a angústia que sempre é não poder vivê-los nunca mais.
Eu já fui profeta da esperança. Hoje sou testemunha de meu próprio desespero.
Eu faço planos de não sentir e sinto tanto não sentí-los que acabo sentindo o que não queria sentir.
Eu não quero amar. Eu não quero sonhar. Eu não quero a ilusão que a realidade impõe para esconder seu rosto maldito. Eu quero aprender todo o silêncio que tanto cultuo. Eu quero experimentar toda a solidão que me é possível, e trancar todas as portas e cerrar todas as janelas e existir como existe o cume da montanha mais inexplorada e o meio da floresta impenetrável.
Quero ver através dos rostos, ouvir além das palavras, compreender além dos pensamentos. Quero sentir a dor de viver única e intransferível. Quero empunhar a espada cansada na batalha derradeira e olhar ao lado e não ver você, porque quero você viva.
Ser sepultado na relva, naturalmente, entre "árvores e esquecimentos e ausências de amanhãs", quero que apaguem meu nome de todas as lembranças e que quando quiserem reverenciar alguma memória que seja minha, respirem o ar da montanha, do alto o vôo infinito que me levou ao nada trará palavras ao vento, histórias de antanho, palavras trazidas pelo vento que nunca foram ditas, mas que o silêncio por elas gerado disse tudo talvez mais do que se diria, sobre uma alma que não é desse mundo e nem desse tempo, que perdeu suas asas nas batalhas da vida e teve que morrer para voar outra vez.
Quem quiser reverenciar minha memória que me esqueça e não mais pronuncie meu nome. Para eu não sentir a tentação de voltar para esse mundo a que não pertenço, muito antes do tempo em que deveria ter vindo. De novo.
Eu me faço ávore. Eu vivo na montanha. Estou no ventre da terra. Nas asas do tempo.
Vôo ainda mais uma vez.
E despareço.
É o começo.
Ou outro fim.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Pleno de vazio


Agora estou pleno de todo o vazio do mundo. Tudo o que me falta é o sofrimento que me acalentava os dias e enganava-me os pensamentos. E era tudo verdade, sofrer era a única verdade possível. Agora me vejo privado dessa doce ilusão de existir como uma grande desculpa de mim mesmo. Agora estou só sem mascara diante do espelho. Meus olhos querem me enganar sobre o que vejo, minha razão quer se fazer de demência. Mas há coerência nessa lucidez. Há o grande problema insolúvel da vida: estar vivo.
Falta-me conteúdo para uma plausível tristeza. Faltam-me motivos para justificar essa solidão: é o querer ou o poder. É o pegar ou o largar.
Faltam-me escrúpulos exigíveis para os próximos passos. Falta-me necessário esquecimento do passado, falta-me a liberdade de sentir-se livre. Falta-me a consciência clara de não depender de ninguém.
Agora só tenho tudo o que me falta. Agora é só com isso que posso viver e tocar em frente, mesmo diante de caminhos desconhecidos, áridos e perigosos, eu tenho apenas o próximo passo.
Eu sou não o caminho, mas o caminhar que faz o caminho.
Eu sou não a verdade, mas cada pergunta que a busca.
Eu sou não a vida, mas a insuportável espera pela morte.
Eu sou a incógnita, o não-saber. Eu não tenho resposta.
A palavra engasgada na garganta. Isso é a pergunta e a resposta. Ao mesmo tempo.
Agora tudo o que tenho é tudo o que não posso carregar.
E agora tudo o que carrego é exatamente aquilo que não é meu.
Tenho a dor e o medo, tenho o desespero do tempo passando rápido, a angústia inauguradora desse novo amanhecer. No qual não vejo nada de tão novo assim.
Tenho a imposssibilidade dos dias vindouros. A incerteza de cada amanhã. Tenho o agora improvável. O impossível hoje. Todo o nada que sou. Que me restou. E que me gerou.
Tenho que romper a bolsa e nascer, senão morro de novo engasgado.
Tenho que recomeçar. Tenho que respirar. Tenho que acordar. Num mesmo velho dia.
Na mesma insuportável manhã. E ir rumo ao nada. Ser tudo.
Mesmo que ao acordar eu não saiba quem sou. Nem onde estou.
Mesmo que ao acordar eu me sinta terrivelmente vivo.
Para ser nada.

terça-feira, novembro 01, 2005

Está feito


Está feito tudo que se desfez e que não se pôde mais refazer. Está perfeito o imperfeito de todas as coisas cujas perfeições muito pouco importam. Está terminado o que não se começou e se desistiu de fazer. O que agora é, é o que sempre seria. Ou outra coisa se insinuaria com um gesto ou um passo diferente? Ou outra realidade se faria simplesmente por se querer? Está dito tudo o que não se ouviu e esquecido tudo o que nem se ousou pronunciar. Está sepultado tudo o que ainda nem se deu ao luxo de ao menos morrer. E o que não nasceu partiu para sempre, para dentro da imensidão vazia do universo. Distante, muito distante.
Sou devoto do tempo, único deus que reconheço. Sou filho do silêncio e da solidão e sempre soube disso. Mãe que me afasta do resto da humanidade e pai que nega-me o poder das palavras.
Está certa mais essa incerteza de se ter feito o certo, ou errado muito sem querer. É verdade toda essa ilusão que agora dá lugar ao torpor de quem olha de frente para a luz do sol, cegueira e desorientação, é tudo tão real como todos os sonhos ruins de tantas noites.
Está dado mais um passo que me levará a lugar nenhum, quando me trouxer de onde nem me levou. E está posto mais um caminho que me apresenta todas as possíveis distâncias. E eu as conheço todas, eu já fui ao ponto final de todas as fugas possíveis e imagináveis.
Está tudo triste de um jeito diferente. Tudo mais vazio de coisas das quais nem mesmo precisava. Resta-me ser acalentado então pela solidão e pelo silêncio. Pai e mãe.
Estão perdidas todas as lembranças com exatamente aquele sabor, ou aquele cheiro, ou talvez ainda com aquela sensação de querer viver de novo os momentos por elas trazidos. Tudo paira estranhamente num jardim suspenso no passado, como flores sem água a fenecer numa questão de tempo.
Sou amigo de todas as minhas dores e fiel a todas as minhas lágrimas. Sou consciente de meus mais terríveis temores, talvez não de um único, o maior deles, que sei que existe mas não sei qual é. Sou cúmplice de todas as minhas palavras. E escravo de meu silêncio.
Eu acordo ao me ver dormindo na cama. Eu não sei se vivo ao me ver morto andando à esmo por estranhas estradas. Eu estou pertido aqui tão perto de onde vivo, pois não sei se vivo.
Está perdido tudo aquilo que nem se viu, que não apareceu ou não existiu. Há uma vaga noção de desperdício esse acordar mais uma outra vez em um outro amanhecer. Esse dia, mais um dia, a arrastar-se modorrento a entranhar-se nas profundezas do tempo. Tempo que é tudo o que não volta, que não se refaz, que não se toma, que não se tem, que nos devora avidamente.
Está pensado o pensamento que não se manifestou, está dito o que não virou palavra. Está no olhar que nada vê. Está no grito que não escapa, na lágrima que não é vertida, está na felicidade que não vem, na alegria que não se tem, no abraço que não me contém.
Está tirado tudo o que não se deu.
Resta andar a refazer caminhos que guardam lembranças, na esperança de encontrar restos de tudo aquilo que não fomos, não tivemos e não fizemos. Resta essa angústia por um momento no porvir, que engula tudo o que passou e me faça olhar para frente, para não saber enfim o que estou vendo.
Resta voar ao sabor do vento.
Não há refúgio mais para meus subterfúrgios, não há como esconder tudo o que vivi mostrando tanto para ninguém ver de verdade. Não há mais a esperança de algo que traga juventude ou vontade de viver. Vou cumprir meu tempo na terra como quem nem quisera mesmo ter vindo.
Há ruínas imensas espalhadas em volta de tudo aquilo que não construí. Há um resto devastado de mim mesmo que não vai ser mais cultivado, uma terra árida banhada em sangue. Antigas batalhas não travadas, guerras inteiras em que se dormia ao lado da morte. O vazio de olhar em volta e não saber para onde ir.
A solidão é um deserto. Sou filho do deserto.
E meu grito já escapou na imensidão:
Eu saio de dentro do imenso vazio que contém o mundo
E trago dentro de mim toda a consciência do nada
Meu murmúrio é nada mais que um ranger de dentes
É sair de uma vagina. É entrar numa latrina
É rastejar por dentro do esgoto fugindo
Buscar o grito último para quebrar o silêncio
Lançar-se no abismo infinito de um outro espelho
Sentir a luz dos olhos gotejar sangue
Eu saio liquefeito em meu próprio vômito
Eu me desfaço em cada absurdo passo
Eu não volto, eu só vou
Eu vôo
E sumo

segunda-feira, outubro 31, 2005

For you Lady


Eu só queria que não existisse hora de ir embora. Nós temos alguma coisa chamada eternidade, demais para a nossa vã compreensão da realidade, então por isso a dividimos em pedaços bem menores, começando por medir o tempo que o nosso planeta leva para dar uma volta em torno do próprio eixo, a duração das estações do ano, esse intervalo entre uma noite e um dia chamamos dia e 364 e uns quebradinhos chamamos ano, um número em dias que nosso planeta leva para dar uma volta completa em torno do sol, essa reles estrela de quinta grandeza, centro do nosso sistema. Mas medimos o tempo, tornando efêmera a eternidade que não cabe em nosso pensamento.
Um show que não rolou, um encontro inusitado bem a cara dos protagonistas do mesmo, pizza, vodka, cerveja, pinga, papo sendo posto em dia, talvez não tão atrasado assim, mas agora antecipando coisas futuras, moradia, graduação, ano que vem, próximas férias. E tudo o que senti intensamente foi a saudade da próxima vez. Há uma mulher no mundo, melhor amiga que tenho, que me faz sentir saudade da próxima vez. Há uma mulher que amei (que talvez também tenha me amado) que não consegui que fosse minha amiga, não sendo também seu amigo, os melhores, de preferência. Há uma mulher que já é para todo sempre minha melhor amiga e me pergunto agora o que haverá na outra ponta. Se eu estivesse melhor, juro que pensaria nisso. Mas vou tocar a vida no compasso do desespero, que é o que tenho. Alienando a crueza da realidade, essência com a qual nunca lidei direito, confesso. Não pensando no vir a ser, esse devir ameaçador que sempre me pega de surpresa.
É dessa mulher melhor amiga que falo neste post, como se nunca quisesse esgotar o que dela tenho a dizer. Sempre haverá algo mais por descobrir ou entender. Não me causa nunca estranheza o bem que me faz a presença dela, quando sinto poder esquecer da vida falando da vida mesma, essa cheia de coisas risíveis e dramáticas, esse caminho repleto de atalhos. Por falta de metáforas apropriadas, tomo a liberdade de dizer que amo você mesmo não sabendo o que há na outra ponta. Acho que temos tempo, mesmo com a hora de ir embora que chega mais rápido do que se deseja. O tempo absoluto às vezes se torna relativo. E não temos tempo, do mesmo modo pelo mesmo motivo. O Amanhã é incógnito.
Falar de coisas e de pessoas, não entender um nem outro. Falar do que se viveu e viveria de novo, aprender sempre as mesmas lições de um jeito diferente.
Tântalo. Quero dizer as verdades sem ter que explicá-las. Os deuses não ligam para os mortais, por vezes zombam deles. Os deuses não entendem os descaminhos, a solidão, a vontade de ficar no chão, de chorar ou gritar, a dor do fogo que arde sem se ver. Os deuses não entendem nada de tudo aquilo que criaram e manipulam a seu bel prazer. Venha para perto de seu sonho, um quarto de século de vida é quase nada, nunca abandone o sorriso e essa inocência plasmadora de coisas belas, mesmo naqueles momentos em que inocência nenhuma faz sentido. Para que servem os amores platônicos a não ser para serem platônicos? Eu demorei bastante tempo para entender o que você dizia, mas sempre acreditei em tudo o que ouvia.
Só que acho que os personagens da sua vida são figurantes de seu drama, esse sim digno de nota, de se pensar nele ou assistir. Drama não com o sentido pejorativo. Drama com sentido de dar à sua realidade o devido peso, cor e sabor.
Eu sabia o que ia dizer quando comecei a escrever isso, mas depois me perdi. Eu gosto de me perder para sentir o gosto da sensação de me encontrar.
Falamos da amizade que se pretende eterna ou das eternidades que se querem amigas.
E a solidão e tristeza que nos deixaram por uns momentos, talvez estivessem num certo parque trepando em árvores em jogos pueris ou mesmo entregues a meras lembranças da infância. Ou talvez entenderam que precisávamos estar sós, tendo apenas o tempo como substrato.
E agora que eu cheguei até aqui nisso que escrevo, percebi que queria dizer coisas tantas que vão ficar muito aquém de definir tudo, mesmo porque tudo isso não é para se definir e muito bem fazemos já de senti-las do jeito que são.
Por vezes me irrito profundamente com seus personagens que não empunham nenhuma espada ou que têm uma luta sem sentido em estranhas batalhas.
Não seu mais o que dizer, minha Lady. Agradecer ou declarar-me profundamente emocionado, por que você conhece o nome de meus medos e de minhas dores, e é íntima de minha tristeza e solidão. Porque você é a única que entende o que foi dito no que não se escreveu.. amiga de meu silêncio. Companheira de batalhas cruentas. Eu parei meu trabalho para escrever isso. Devia ter parado a vida para ouvir o que disse aqui.
Prestar atenção no silêncio, cúmplice das coisas que não precisam ser ditas.
Uma lua numa praia deserta, calma e quieta, os pensamentos como marca dos pés na areia.
Diante do mar imenso imerso na imensidão do céu.
Uma gaivota vai voar no infinito.
Plenamente livre.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Realidade


Acho que agora tudo o que eu precisava é escrever um e-mail para uma certa melhor amiga, conseguindo dizer tanta coisa em meio ao que não se disse, e tendo em sua leitura e em sua resposta, todas aquelas coisas sobre as quais nem se pensou. Ou talvez esvaziar uma certa garrafa de vodka, esvaziando as ampulhetas do tempo que temos em mais uma madrugada, cada vez mais necessária do que sempre foi, cada vez mais urgente.
Há madrugadas em que não se pode estar sozinho. E numa caminhada de uns quarenta minutos, ontem à noite, senti passar toda uma vida em revista, refazendo alguns caminhos do passado. E a gente sempre olha para o que não fez, o que não se conseguiu. E eu olho tanto tempo decorrido e não tenho a mínima noção do que consegui, do que fiz que tenha sido bom e gratificante. O passado passou em branco ou eu rasguei a lembrança dos momentos. E estou preso nele e sua chave perdeu-se.
E eu queria que você que agora me lê me mandasse calar a boca e parasse com esse teatro de autopiedade e fosse viver a vida, tocá-la do jeito como ela é, exatamente do jeito como é, não de outro modo. Pois que reclamar é meu jeito preferido de não precisar fazer nada. Reclamar é como me escondo melhor do fato de que eu simplesmente tenho medo de a vida ser uma coisa complicada, isso tudo no meio de toda a complicação que de fato a vida traz.
Aqui morre a poesia. Ou pelo menos aqui ela não faz nenhum sentido. Aqui morre a esperança, a vontade de tocar em frente. Aqui morre uma pessoa que nem nasceu.
Tenho um indefinível sentimento de estranheza diante da vida. Estar vivo, viver cada um desses muitos dias, o amanhã por vir, tudo isso me causa um indisfarçável sentimento de estranheza.
Não é que eu deseje a morte, mas a impressão de que ela virá e irá sobrar uma garrafa de champanhe que não se abriu, ou de vinho, uma palavra que não se disse, um gesto não manifestado, algo por fazer que não fiz por ficar emaranhado nas teias de meu próprio medo. A morte virá e não verei o Mediterrâneo nem o delta do Okavango. Não verei as pirâmides de Gizé. Não verei o que possa chamar felicidade, algo em que nunca de verdade cri muito mesmo. A morte virá e sobrará os livros desarrumados na estante, e não lidos, os romances não escritos, as poesias que não se derramaram. A terra toda em que não pus os olhos permanecerá como testemunha da mais absoluta mediocridade.
E parece que estou mesmo assim, padecendo dessa presciência, dessa certeza antecipada da impossibilidade do amanhã. É como se meus dias tivessem se dissipado no tempo e eu a vagar sem memória em terras estranhas custe a dar conta de que sou nada mais do que um fantasma.
Eu não consigo ser real, ter a perplexidade da descoberta da realidade prática. Para mim tudo o que não é sonho ou invenção ou é pouco ou não é interessante. A realidade não faz parte de mim na mesma medida em que eu nela não existo. Eu existo num mundo imaginário que fui criando aos poucos, e ele só tem forma no meu pensamento. Ninguém sabe desse mundo, ninguém nele entrou. E às vezes eu o chamo floresta, esse lugar imenso e tenebroso de onde ninguém nunca saiu. Assim, tudo o que sobra é confusão. É esse não saber quem somos na solidão. Porque sozinhos não conseguimos nos ver. Nos vemos nos outros sempre. Somos o que os outros querem ver que somos. Infalivelmente.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Empty and burning



Então eu vou fazer de conta que foi um sonho. Um sonho muito bom. E não vou cobrar nada de você. Absolutamente nada. Foi um sonho bom em meio à realidade adversa, um sonho bom dentre tantos pesadelos.
Porque você me deu muito. E qualquer coisa que tenha vindo de você já foi muito mais do que eu merecesse. Mas você foi generosa e me deu muito, mesmo que eu não merecesse.
Acho complicado mesmo. Eu me acho complicado. Agora tudo está tão mais confuso do que devia, e eu em silêncio espero o mundo acabar, espero o pesadelo acabar, o ano acabar, a dor acabar, tudo acabar como sempre acaba. E eu como sempre só espero.
Eu não faço nada para o meu próprio bem. Eu só espero e isso não me faz bem.
Eu espero a morte numa madrugada dessas qualquer, o descanso, enfim, na certeza de que não verei a última aurora. A grata satisfação de tombar no campo de batalha, que me dá a segurança de que nunca mais verei o medo no rosto do inimigo, e em seu rosto, meu próprio medo. Que, no último momento, irá por fim dissipar-se para sempre.
Agora vou voltar para aquela antiga companheira, a solidão. Quem sabe ela não esteja assim tão magoada e venha morar comigo, ajude a arrumar a bagunça no apartamento, a lavar e a passar. Quem sabe dê uns bons palpites sobre a minha vida, ou não, ache por bem me desancar de vez e dizer tudo o que nunca ninguém foi capaz de dizer. A mais absoluta verdade.
Estou cansado. Desanimado. Quem sorri do meu lado corre o risco de vida mais provável, se não arrumar uma razão bastante plausível para justificar por que está sorrindo. Aliás, nem sei mesmo o que é sorriso, algo preso no passado.
Eu que parti esse ano do zero para refazer minha vida, tinha o direito de voltar pelo menos ao mesmo zero, não abaixo dele. Estou desprovido de forças e ânimo. Acontece que estou deprimido. Nenhuma idéia do mundo é suficiente: amor, felicidade, prazer, alegria, amizade, família, satisfação, paz, tranqüilidade, segurança. Só as palavras da minha própria metafísica existência são o que agora importa. O nada querer, o nada fazer, o não pensar. Tenho saudade de um tempo em que era e podia ser alienado, saudade da infância, da juventude, saudade dessa maldição inteira chamada passado. Que é o que justamente não me deixa olhar para a frente, para as coisas novas de um porvir no qual não acredito. No qual afinal de contas não posso acreditar.
Eu não falo, simplesmente não falo o que tem que ser falado. Eu calo somente, e espero que as palavras resolvam por si mesmas os seus enredos e construam toda a história, a seu bel prazer. Eu espero que as palavras sozinhas consertem o mundo. Espero que as palavras me enganem como sempre.
Bebo demais, como de menos, sonho demais, vivo de menos, calo demais, e não vou reclamar do que me dão de graça, a dor dessa desgraça, de ter acordado hoje mais uma vez, vivo e inquietantemente ignorando meu próprio caminho, o próximo passo. E eu não sei tudo. Isso quer dizer exatamente isso, de tudo o que há para saber, eu nada sei, eu não sei.
Se eu morresse agora, quanto pouco tempo levariam para me esquecer? Talvez um amanhecer. Talvez menos.
E me cansa demasiado meu silêncio ser invadido e violado por meus próprios pensamentos. Não há vozes no meu cotidiano, nem conversas, nem histórias ou lembranças, há silêncio apenas, embalado pelo murmúrio seco e insistente dos meus próprios pensamentos.
Tudo o que eu tinha na vida acabou. Tudo o que era vida acabou. Tudo acabou. Tudo sempre acaba. Tudo só acaba. Tudo acaba. Essa perenidade de todas as coisas me angustia desesperadamente. Parece que só eu fico recolhendo os cacos da história, revisitando velhas fotos, acalentando as mesmas gastas lembranças. Eu ando pelas ruas do bairro onde morei, entro mentalmente nas casas em que vivi e, de repente, revivo tudo ilusoriamente, como se não tivesse passado, como se não tivesse acabado. Eu refaço os caminhos, mas eles não me refazem. Eu reconstruo os momentos que me destroem.
Somente eu levanto de madrugada e busco a reconstituição fiel e perfeita de certos momentos, como se fosse possível sentir tudo de novo. O sentir não se repete. A saudade que nasce não traz a satisfação daqueles momentos do modo como foram, mas somente a dor de eles não serem mais o que foram, e a angústia terrível de nunca mais poderem ser.
Não sei o que faz minha alma dentro desse corpo velho. Velho e cansado. Não sei mais do sorriso. Não sei mais da vontade de viver. Não sei mais de mim. Eu me esqueci no meio do meu próprio caminho. Esqueci os sonhos. Eu esqueci de me ver, de me querer, eu esqueci de viver. E eu não sei mais nada disso: os sonhos, eu mesmo, o querer e o viver. Eu não sei.
Eu calo a palavra mais imprescindível.
E calo no silêncio mais insuportável.
Eu olho então o vazio e a única coisa que ele contém sou eu próprio, intangível e imaterial, invisível, não nascido, intocado e inculto, plenamente desperdiçado.
E eu não vou reagir, por mais que essa dor seja insuportavelmente eterna, eu não vou reagir. Eu vou ficar esperando o silêncio e o vazio imperarem. Porque neles eu sei quem sou. Eu sei o que sou. Sou parte deles. Eu sou o silêncio e o vazio.
Eu vou me deixar imolar na hora derradeira e não vou reagir.
Porque eu também tenho que acabar no meio de tudo o que acaba.
Mas há ainda em mim vida, muita vida.
Mas há vida como numa floresta em chamas.
Quase certa de que não escapa ilesa.
Uma vida em fuga.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Put a candle in the window


Lan house, gripe, nenhum puto no bolso, Creedence no fone de ouvido, uma solidão renitente a rondar-me os passos e a imensa escuridão lá fora. Eu ia falar da vida, com a certeza de que amanhã acordarei e mais uma vez estarei vivo. É sempre assim. Acordo e estou vivo. Não sou vivo, estou vivo. Deve ser assim também com a felicidade. Posso dizer que muitas vezes estou feliz, mas posso por acaso dizer sou feliz?
Long as I can see the light!
Algo que não esquentou esfria e algo que nunca foi outra coisa senão o próprio frio nunca esquenta. Não tenho uma máscara nova para a tristeza que se avizinha, e bem que ela merecia uma roupa bem nova, roupa de gala, já que é visita constante.
E sobre a solidão já nem falo de tanto que ela fala comigo. Uma árvore na janela, paredes brancas de um apartamento de um quarto, uma prancheta com quarenta desenhos nascendo no ritmo imperceptível das flores e lembro do título de um poema meu: mais nada.
Tudo a ver com o momento. Olho em volta e mais nada. Olho para o passado e mais nada. Olho para o futuro e mais nada. Silêncios em tristes madrugadas, lembranças insuportáveis de todas as fotos que não trouxe, só para não esquecer o rosto de quem ficou. E as lembranças são insuportáveis porque quando me entrego a elas sou como um fantasma a rondar uma casa em ruínas, rememorando os tempos de glória. Então rondo a ruína dos momentos passados e sou nada além de um fantasma que não se libertou da ilusão de estar vivo.
Há agora um medo que não sei qual é e isso não é bom. Garganta seca de antes da batalha, cheiro de sangue, um tremor na espinha a manter-me alerta. E um torpor que adivinha a dor e a quer anular. Inutilmente, pois a dor já é a essência e é o que nos mantém de pé e com a espada empunhada, a espera da morte, a angústia de quem vive. Mas temo então o medo que não conheço, sobre o qual não posso pensar e nem falar.
Quixotesca saga de estar a procura do inverossímil de todos os sonhos perdidos na própria inverossimilhança da realidade. A certeza, a mesma certeza de que acordarei amanhã cedo e estarei vivo, mais nada.
E em volta o ecoar zombeteiro de todas as palavras que não disse, por pura e simples falta de crédito. Ou de tempo. E o que diria? Te amo! Tenho medo! Vou embora! Quero tudo de novo! O que diria? Quero ser feliz mesmo que a felicidade não exista. Significa que quero me enganar com algo que seja bom. E quero o amor, mesmo que ele não exista também. Significa jogar fora tudo o que tenho em troca do que não posso ter.
Talvez uma tola esperança de ter de volta as madrugadas, onde meus passos me trarão de volta de onde nunca me levaram. E meus pensamentos vagarão eternamente buscando perguntas novas para as mesmas velhas respostas. O inverso do que sou é o lado certo do lado que não é o errado quando estou no lado certo do que não sou. Parmênides morto por Platão: o não-ser nega um predicado ao sujeito: eu não sou feliz.
Quixotesca farsa que forjo a todo instante para esquecer que acordei e estou vivo. Para não me lembrar de que a felicidade não passa de um daqueles sonhos impossíveis de se realizar, porque a felicidade não pertence a esse plano da realidade, ela é como o tempo, não é substância nem substrato, muito menos essência ou estado. A felicidade é uma impressão. Enganadora impressão dos sentidos.
Tive a impressão de que fui feliz. Em algum momento dos muitos que já vivi, tive a impressão de que vivi e fui feliz. Tive a ilusão da vida, da felicidade, tudo temperado no caldeirão enferrujado do amor.
Mas chega de metáforas. Ou não! Talvez procuremos a maior das metáforas, a idéia de deus governando o universo. Não a encontraremos, mas nessa busca sempre descobriremos novos caminhos para novas buscas. Não precisamos de deus, precisamos de metáforas. Precisamos de ilusões renovadoras.
Amanhã vou acordar e estarei vivo. Vou carregar por aí essa ilusão, que é a parte que me cabe dessas migalhas que me são jogadas pela eternidade.
As palavras estão sempre por perto e minha relação com elas é de cumplicidade. Elas fingem revelar o que procuro com esmero esconder. E esse pacto não é violado. Nunca.
As palavras me dão o que eu quero.
Só isso e mais nada.

quarta-feira, setembro 28, 2005

Velando armas


Há uma batalha que se avizinha e estou velando armas. Não sei se a vida é essa batalha. Não sei se viver é lutar. Sei apenas que não fui sagrado cavaleiro, embora uns embates aqui e ali não deixaram de ocorrer. E se eu morresse na batalha da vida, morreria então sem honra e sem glória.
A impressão que me resta é essa. Passamos rapidamente pela vida e não temos tempo de fazer nada. Quantas não foram as vezes que percebi que tudo o que quero é sempre outra coisa. Levantar toda manhã e matar um leão por dia, para sobreviver. Andar a gastar todo o tempo útil de cada dia a conseguir dinheiro, exatamente essa coisa que não temos.
E a cidade ergue-se à nossa revelia, ergue-se silenciosa, e muitas vezes nem fazendo o devido silêncio, e é cada vez mais o lugar onde a gente não quer estar. Todo mundo não quer ficar e vai ficando, por não fazer as escolhas ou, se as tiver feito, fez aquelas com as quais menos se identifica.
E tenho a nítida impressão de que viver é pouco, só isso é pouco. Deve haver algo muito mais importante que isso, mas nós não sabemos o que é. Inventamos o que é viver.
Quando saio a andar pelas ruas, quando entro e saio do metrô, as pessoas vêm e vão e seus rostos não têm expressão. Cada um tem sua história e fico imaginando qual seja. Cada um existe a despeito do outro ao seu lado, existe por mera teimosia e teima pela sobrevivência. Ninguém presta atenção ao fato de que existe.
Todos os valores que tenho não fui eu que escolhi, mas escolheram por mim e para mim, numa lavagem cerebral cuidadosa que passa sempre despercebida. Mídia. Instituições. Família. Tradição. Religião. Nossas muletas ideológicas. O que tenho que escolher? É como se perguntássemos sempre à mamãe realidade o que é bom de se comer e o que faz bem para a tosse. Então a realidade manda a gente não esquecer o casaco que está muito frio lá fora. E a realidade não é mãe, é só mais uma puta que nos pariu. Somos filhos da realidade. Todos nós.
E o que foi feito do amor que tive? Sempre foi insuficiente para manter-me vivos os sonhos. Que sonhos? Nem sei mais. Eu sonhei que era outra coisa a vida e que a realidade era uma vasta planície a ser explorada, calma e tranqüilamente. Mas esqueci de ser. E hoje eu preciso ser, mais do que ter, eu preciso ser. Além de ser só uma coisa faz falta: saber. Então eu preciso, além de tudo, saber que sou.
E para saber elegi buscar o pensamento dos cientistas, dos filósofos e dos poetas, nessa ordem, de preferência, ou a depender do tema numa outra ordem. Só o pensamento dessas três categorias de pessoas me interessa. Os cientistas procuram colocar suas perguntas sobre o que vêem no mundo, os filósofos sobre o que não vêem e os poetas sobre o que nem está no mundo. Desse modo, o ato de perguntar está plenamente satisfeito. E garantido o caráter racional, supra-racional e irracional do conhecimento, quer dizer, a razão, o além da razão e a não-razão. Então é aqui que ouso afirmar, de um outro modo, o que costumo afirmar tantas vezes, o amor não é racional. Nada tem a ver com a razão, a verdade ou a realidade. O amor não é para ser pensado, muito menos sentido. O amor é para ser entranhado na carne, para nos fazer pensar e sentir de modo muito peculiar.
Acontece que estou vivo. E a vida não tem limites assim tão determinados. Acontece também que sei que penso que estou vivo. E o entendimento também não funciona como uma fórmula matemática. E = mc².
Sei apenas que está frio lá fora e aqui dentro do peito há uma inconfundível tristeza feita de silêncio e perplexidade. E a cidade continua a erguer-se e as pessoas sem rosto não param de ir a lugar nenhum. Milhões de janelas que sempre soube me espreitarem e as janelas, mesmo abertas, têm muito a esconder. Esta aqui é uma janela que se abre para esconder muitas coisas. Ou para espreitar milhões de janelas que me espreitam, num jogo insano cujo resultado inesperado pode ser o encontro. O encontro de si mesmo. Ou o encontro do outro. Porque por ora o que vivemos a todo tempo é somente o desencontro. E ninguém me vê quando estou na multidão. Pelo contrário, alguém me vê quando estou sozinho à janela.
Não sei ao certo o que quero fazer aqui. Prometo, porém mostrar-me quando tiver necessidade de me esconder. E esconder-me, quando tiver necessidade de me mostrar. Ou se quiser, não prometo coisa alguma.
Não sei também o que quero dizer aqui. Talvez tudo, mas preferencialmente nada. Dizer somente.
Talvez seja só mais um grito imenso no escuro.
Talvez seja só o romper do enorme silêncio.
Talvez seja só a busca do vazio de si mesmo.
Que é quando somos plenos.
E quando nos sagramos cavaleiros.
Quando há dentro o vazio e fora a batalha.
E empunhar a espada seja não responder a nenhuma pergunta.
Porque todas as perguntas já deverão ter sido feitas.
E todas as respostas devidamente esquecidas.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Walking and Fighting


Viemos a essa vida para andar e lutar. E mesmo antes de vir lutamos para vir e gente que possibilitou a nossa vinda, lutou também, lutou antes de nós. A luta está presente na natureza e provê nossa sobrevivência. Andamos atrás de vida e das condições que a mantêm, andamos atrás da caça e da coleta do alimento que nos manteve vivos e evoluindo. Mantemos nossa espécie não sem essa capacidade de luta, muito embora essa luta hoje adquira significados não assim tão explícitos como eram outrora. Somos devoradores da natureza, comedores de carne e devastamos a cobertura vegetal, a fecundidade e fertilidade da Terra. Não é um discurso ecológico, antes disso, é um discurso sobre a nossa vocação para dominar a natureza, que uns acreditam dada por Deus, enquanto outros não acreditam em outra coisa a não ser nos acidentes da matéria ou na dança da precisão do acaso.
Tanto faz. Estamos aqui e temos fome, temos sede e frio, temos medo, queremos reproduzir a espécie, temos a inquietação quase que insolúveil que pariu toda a filosofia que pariu todas as ciências. E que pariu o homem que engravidou do mundo em que vive e o pariu tal como ele é e deseja que seja outra coisa que não isso que fez. Puta que o pariu! A Mãe Terra é a puta que nos pariu e nos abandonou ao Tempo que nos devora. Somos órfãos de pai e mãe na Eternidade, seres únicos capazes de entrar em confronto com a própria subjetividade, mas incapazes de explicar ou entender o absurdo de cada pergunta que aniquila sua própria resposta. Seres únicos capazes de articulação da palavra, essa mesma palavra que esconde a verdade.
E a verdade é que tenho fome, tenho sede e sono, tenho frio e tenho medo e quero reproduzir minha inquietação pela eternidade afora. A verdade é que tenho o desejo de descobrir se há na morte a plenitude da vida.
A verdade é que sou repleto de palavras que me escondem a verdade. Uso máscaras e esqueci o meu rosto refletido nas águas calmas e tranquilas do último lago em que fui matar a minha sede. E ainda tenho sede, ainda tenho fome, ainda tenho frio e medo e necessidade de me reproduzir.
Não sei se reproduzir a fortuna de não saber as respostas ou a desgraça de fazer as perguntas.
Reproduzir a subjetividade da palavra que esconde a verdade. E da verdade que seja capaz de me esconder a vida.
Agora o jogo começou: aqui estão as minhas palavras!