sexta-feira, outubro 28, 2005

Realidade


Acho que agora tudo o que eu precisava é escrever um e-mail para uma certa melhor amiga, conseguindo dizer tanta coisa em meio ao que não se disse, e tendo em sua leitura e em sua resposta, todas aquelas coisas sobre as quais nem se pensou. Ou talvez esvaziar uma certa garrafa de vodka, esvaziando as ampulhetas do tempo que temos em mais uma madrugada, cada vez mais necessária do que sempre foi, cada vez mais urgente.
Há madrugadas em que não se pode estar sozinho. E numa caminhada de uns quarenta minutos, ontem à noite, senti passar toda uma vida em revista, refazendo alguns caminhos do passado. E a gente sempre olha para o que não fez, o que não se conseguiu. E eu olho tanto tempo decorrido e não tenho a mínima noção do que consegui, do que fiz que tenha sido bom e gratificante. O passado passou em branco ou eu rasguei a lembrança dos momentos. E estou preso nele e sua chave perdeu-se.
E eu queria que você que agora me lê me mandasse calar a boca e parasse com esse teatro de autopiedade e fosse viver a vida, tocá-la do jeito como ela é, exatamente do jeito como é, não de outro modo. Pois que reclamar é meu jeito preferido de não precisar fazer nada. Reclamar é como me escondo melhor do fato de que eu simplesmente tenho medo de a vida ser uma coisa complicada, isso tudo no meio de toda a complicação que de fato a vida traz.
Aqui morre a poesia. Ou pelo menos aqui ela não faz nenhum sentido. Aqui morre a esperança, a vontade de tocar em frente. Aqui morre uma pessoa que nem nasceu.
Tenho um indefinível sentimento de estranheza diante da vida. Estar vivo, viver cada um desses muitos dias, o amanhã por vir, tudo isso me causa um indisfarçável sentimento de estranheza.
Não é que eu deseje a morte, mas a impressão de que ela virá e irá sobrar uma garrafa de champanhe que não se abriu, ou de vinho, uma palavra que não se disse, um gesto não manifestado, algo por fazer que não fiz por ficar emaranhado nas teias de meu próprio medo. A morte virá e não verei o Mediterrâneo nem o delta do Okavango. Não verei as pirâmides de Gizé. Não verei o que possa chamar felicidade, algo em que nunca de verdade cri muito mesmo. A morte virá e sobrará os livros desarrumados na estante, e não lidos, os romances não escritos, as poesias que não se derramaram. A terra toda em que não pus os olhos permanecerá como testemunha da mais absoluta mediocridade.
E parece que estou mesmo assim, padecendo dessa presciência, dessa certeza antecipada da impossibilidade do amanhã. É como se meus dias tivessem se dissipado no tempo e eu a vagar sem memória em terras estranhas custe a dar conta de que sou nada mais do que um fantasma.
Eu não consigo ser real, ter a perplexidade da descoberta da realidade prática. Para mim tudo o que não é sonho ou invenção ou é pouco ou não é interessante. A realidade não faz parte de mim na mesma medida em que eu nela não existo. Eu existo num mundo imaginário que fui criando aos poucos, e ele só tem forma no meu pensamento. Ninguém sabe desse mundo, ninguém nele entrou. E às vezes eu o chamo floresta, esse lugar imenso e tenebroso de onde ninguém nunca saiu. Assim, tudo o que sobra é confusão. É esse não saber quem somos na solidão. Porque sozinhos não conseguimos nos ver. Nos vemos nos outros sempre. Somos o que os outros querem ver que somos. Infalivelmente.

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