quinta-feira, março 09, 2006

De frente para o mar, de costas para o mundo


Duas semanas indo direto para a praia fizeram-me cunhar a frase título deste post: de frente para o mar, de costas para o mundo. Eu imaginei então que essa frase poderia se tornar realidade. Uma casa de frente para o mar, com uma varanda imensa, de onde eu assistisse o pôr-do-sol, ou caminhasse na areia assistindo o nascer de um novo dia. Mas onde sobretudo pudesse estar sentado ao computador, concebendo poemas e romances, ou pintando quadros para mais uma exposição.
Isso ainda é possível. Mas a distância entre esse momento presente e esse futuro desejado nem é quantitativa apenas, é qualitativa. Há uma quantidade colossal de coisas a serem feitas para se chegar a isso e o essencial é exatamente o que falta. Milhares de mesas para serem viradas. Muitos baldes por chutar. Muitas bananas para se dar e muita jaca para se enfiar o pé. Simplesmente uma aventura. Alguns anos atrás e tudo isso era muito mais possível.
O que acha disso, Mr. Gilbert? Você que lê todos os meus posts e nada comenta, eu lhe provoco agora. Mr. Gilbert é cético e eu sem esperança, saudoso de uma fé que nem sei mais como e por que tive. Esse falar solitário para um mundo silencioso é como um andar entre as gentes, multidão sem rosto. Se a loucura tivesse um começo plausível, começaria aqui, na tela desse mundo virtual. De que lado você está? Como é que vêem as minhas palavras lá do outro lado? Como situar-se em sucessões de discursos digressivos? Como parar a mente atônita e lancinante? Essa tortura diária de pensamentos não resolvidos, amontoando-se mais e mais em dúvidas e impossibilidades.
O ser humano é um animal que pergunta.
Mr. Gilbert, conforta-me saber-me lido, mas uns comentários vêm a calhar, porque a mente atormentada precisa de discussão.
O ser humano é um animal que discute.
Trabalho é um castigo tanto na mitologia ou na religião. O homem peca e tem como castigo obter o pão com o suor do seu rosto, cultivar a terra. Isso para dizer que meu trabalho não me dignifica, alguém mentiu durante toda a história. Preciso urgentemente de uma mecenas, de preferência meia idade, sexo feminino, linda e de muito bom gosto. Preciso parir dois romances, três livros de poesias, quatro dezenas de quadros, uma peça de teatro. Não cabem mais na minha cabeça.
O homem é um animal que amontoa lembranças na cabeça.
O amor parece aquela coisa saída mesmo da mitologia. As pessoas apaixonam-se sem controle, muitas vezes, por quem não querem se apaixonar, ou até por quem não podem. Então a figura de Eros, uma criança com asas e seu arco e flecha, envenenando os casais, é o mito que mais condiz com a realidade. Há quem queira ter sobre o amor o maior e mais absoluto controle. Sobre a paixão também. Vontade vã, o amor nos escolhe, quando vemos, uma seta fincada às costas, e a cabeça nas nuvens, um sorriso num rosto eternamente embriagado.
O ser humano é um animal que se apaixona.
Exista deus! Então estamos todos no inferno. Quem aqui merece o paraíso? Quem aqui tem bondade no coração suficiente para mudar o mundo e construir uma vida melhor para todos e cada um? Mas se deus não existir, então para onde iremos? Você pega a aposta de Pascal, Mr. Gilbert? Preferir ser virtuoso, porque se deus existir, tudo estará certo. Mas se não existir, tudo estará certo também, pelo menos levou uma vida virtuosa. Pelo sim, pelo não, seja bom.
O homem é um animal que crê.
Recentemente, discutia-se o fato ocorrido no Irã, de um menino ter o braço amputado por um carro que passava a roda por cima do dito braço, por ter roubado um pão. Prós e contras sucederam-se, como era de se esperar, houve quem já quisesse instaurar aqui essa lei do olho por olho, dente por dente, para as coisas melhorarem. Estado teocrático, cultura milenar que há milênios não evolui. Depois foi uma história em nosso lindo Rio de Janeiro. O espanto diante da reação comum das pessoas diante de um corpo que os bandidos do tráfico esquartejaram, tendo colocado a cabeça sobre o capô do carro em que estavam. Banalização da violência que nos torna indiferentes diante da forma mais radical de violência: a morte.
O homem é um animal.