terça-feira, outubro 30, 2007

Seis mundos possíveis ideais

Eu me “desapaixonei” de você. É simples assim. A gente pega aquele monte de paixão e acua num canto qualquer do peito, põe de castigo, não deixa mais ir brincar na rua por um tempo indeterminado. Essa paixão acuada e de castigo, encerrada lá naquele canto não pode mais ser pensada. Não se pensa nela de jeito nenhum. Não é fácil. Porque tudo em volta vai fazer você lembrar, tudo em volta vai conspirar a favor da menor reminiscência. Então você tem que ser decidido em não mais pensar. Você tem que se tornar um especialista em esquecimento. E tem que fazer de conta que tudo de tão bom e belo que foi trazido por essa paixão não é assim tão importante. Tem que achar coisas mais importantes nas quais pensar, nas quais dedicar seu tempo. Por exemplo, aprender sânscrito. É difícil pra caramba, mas tentando, você vai esquecer qualquer paixão. Quer dizer, você vai se sentir tão incompetente, que vai achar que nem para se apaixonar você presta. Pode ser outra língua: russo, gaélico, hebraico, árabe, mandarim. Não vale inglês, francês ou espanhol, talvez nem italiano, alemão, porque vai que você aprende e aí vai ficar dizendo por aí “eu te amo” em qualquer uma dessas línguas. Se não der certo, tente decifrar hieróglifos, sem ajuda.
Mas tem essa coisa das coisas levando você às lembranças. Isso é complicado. O jeito é você tratar isso como uma história, um verdadeiro romance ou uma boa novela e excluir-se como personagem. A história é linda, é verdade, mas aquele que lá está fazendo e dizendo todas aquelas coisas, aquele que está sentindo todas essas coisas tão lindas e boas, aquele não é você. Definitivamente não é você. Não pode ser você. Não deve ser você. Você não. Pronto. Você fora da história já é bem um meio caminho andado.
Tem mais um problema. São as pessoas apaixonadas a sua volta. Vai ter que lidar com isso, e vai ter que lidar bem. Os casais que andam de mãos dadas, que vivem se bicando aos beijos, abraçadinhos em tantos momentos, com aqueles olhares e tudo o mais. Não preste atenção por mais de um minuto nos amassos alheios, que é uma possibilidade muito grande de recaída. Faça de conta que você é um tipo de representante superior da espécie humana e paira acima dessas vicissitudes, digamos, emocionais, sentimentais. Isso é um mero desperdício de energia e você poupa suas energias para coisas mais elevadas, mais prazerosas e gratificantes. Não seja um reles ser humano mortal e passional, não, você é mais.
Ocupe-se de algo mais proveitoso. Como por exemplo mudar todas as concepções de mundo que você tem e mesmo as que andam por aí aos borbotões. Porque visões de mundo há por aí de cambulhada. Use toda sua imaginação em coisas muito mais úteis e questões mais edificantes, do que essa coisa de gosto dela e ela não gosta de mim, ela gosta de mim mas eu não gosto dela, eu queria encontrar alguém, não ouse sentir medo de ficar sozinho. Ficar sozinho é bom, é muito bom. Não passe suas valiosas horas de vida achando que você precisa encontrar alguém. Sabe quem você precisa encontrar? Aquele que lhe aparece no espelho do banheiro. Então, ocupe seu tempo em imaginar mundos possíveis ideais, mundos que certamente são melhores do que este. Muito melhores.
Nunca se atreva a se sentir sozinho, pense no silêncio e no sossego, poder espremer a pasta de dente no meio, deixar cuecas jogadas pelo quarto, toalha de banho no espaldar da cadeira, louça suja em cima da pia, levantar e não arrumar a cama, levantar num fim de semana e ir dormir de novo. Ouvir a música que você quer e cantar junto sem ninguém dizer que você desafina ou que errou a letra. E poder pensar sobre o que vai fazer depois de fazer nada, mais nada e depois disso, descansar de ter tanto o que fazer, porque até fazer nada às vezes cansa. E, afinal de contas, quem pode provar que dormir ou tirar um cochilo na poltrona não é fazer alguma coisa? Ninguém vai lhe perguntar aonde vai, onde foi e com quem, o que fez ou deixou de fazer. Pode ir a padaria com a roupa que usou para dormir, ninguém lá fora sabe que dormiu com ela.
Não desista de tentar imaginar aqueles mundos possíveis ideais. Mas, antes disso, é preciso livrar-se de algumas palavras fictícias, que são todas aquelas que só servem para nos enfeitar as fantasias ou alienar-nos da torturante realidade. Esta que nós temos tanto medo de encarar. A realidade crua e cruenta. Diria até que é cruel, para continuar no trocadilho proposicional. Vamos tentar uma pequena lista: amor, paixão, compaixão, resignação, esperança, fé, caridade, bondade, fraternidade. E por aí vai. Esse é só o começo da minha lista, façam a sua. As palavras, afinal, servem apenas para nos afastar da verdade. Aliás, verdade, uma outra palavra fictícia. Diria então que as palavras só servem para nos afastar da realidade, do que é real. O que é real? Que nascemos, vivemos e morremos. E sofremos tanto por tudo isso. Tenho dúvidas de que a palavra sofrimento seja fictícia. Acho até que é uma palavra curinga, que pode ser real e fictícia. Não vou fazer aqui uma lista das palavras curingas. Façam vocês a sua própria lista, memorizem e nunca esqueçam dela. É bom acrescentar coisas novas.
Não saber porque nasceu, viver e procurar em vão um sentido para isso, e não conseguir negar que vai morrer, embora não se pense muito nisso, e nem se fale, é tudo o que nos afasta do real e nos faz criar essas ficções para atenuar o nosso medo da morte, a “angústia de quem vive”. Angústia, aliás, uma outra grande palavra curinga. Assim como solidão e tristeza. Mas eu tinha jurado que não faria uma lista.
Mundo possível ideal número um: deus existe e criou tudo quanto existe para nosso bem e conforto, o dia em que percebermos isso seremos muito mais felizes. Soframos cá na terra, há um céu que nos aguarda, no qual seremos recompensados por tudo que aqui passamos. Recompensados eternamente. Por isso é que temos o Bem introjetado em nossos corações. Nos desviamos, mas há a possibilidade de sermos perdoados, bastando para isso o sincero arrependimento de todas as nossas faltas. E bastando que saibamos também perdoar. E tudo é divino e maravilhoso. Tudo tem um propósito que precisamos compreender nesse grande plano divino.
Mundo possível ideal número dois: o amor existe e sua conseqüência maior, o seu fim (no sentido de finalidade) é a felicidade, que também existe. Parece difícil, mas qualquer um pode alcançar a felicidade. Há pessoas felizes para onde quer que eu olhe, por todo o lado o que mais tem são pessoas extremamente satisfeitas. Mas há lugares no mundo em que falta o amor e, conseqüentemente, a felicidade. Felizmente, há também pessoas que são capazes, são fortes o bastante para isso, de levar o amor onde ele falta e tudo fica bem.
Mundo possível ideal número três: existe um estado de natureza, tão sonhado pelos filósofos do XVII-XVIII, pelo Iluminismo-Humanismo. Sim, o homem é bom por natureza, mas já em sociedade... A sociedade é que corrompe o homem. Tendo aceitado o fato de que existe um estado de natureza, basta almejar atingi-lo (ir até ele ou a ele voltar, vai saber), e a humanidade será enfim tudo de bom. Cada ser existente vai usar só aquilo de que precisa, nada além disso. A natureza vai ser preservada, com ela a humanidade. Harmonia nem será uma palavra curinga, será pura realidade. Harmonia de tudo com tudo o mais, de cada um com todos e de todos com cada um. Um verdadeiro paraíso materializado e tornado possível aqui e agora, nessa nossa tão palpável vida. Descobrir-se-á que a guerra é um grande engano, não mais se matará por motivo algum, todos os estados resolverão suas “disputas” ou na discussão pacífica ou, em último caso, por sorteio. Ou ainda em jogos. Jogar-se-ão jogos para dirimir as questões. Só que vencedores e vencidos ainda assim haverão de confraternizar como iguais, como irmãos. Aliás, descobrir-se-á que somos filhos de um mesmo pai criador, portanto, irmãos. Todos os povos assim se tratarão.
Mundo possível ideal número quatro: na seqüência do estado de natureza, não haverá posse e nem propriedade. E nem haverá riqueza, porque a riqueza só tem sua razão de ser sendo o oposto da miséria. Como não haverá miséria, não vai haver porque existir riqueza. Todos serão iguais e terão somente aquilo que necessitam para viver e viver bem. Se ocorrer de alguém não ter esse mínimo necessário, deverá ser por descuido ou acidente, então deverá haver a partilha. Uns ajudarão aos outros e assim todos ficarão bem. Não haverá nesse caso má distribuição desses bens mínimos necessários para se viver. Aliás, não haverá nem necessidade da existência de dinheiro. Todos os bens de produção serão muito bem distribuídos a cada qual segundo as suas necessidades. A humanidade em estado de natureza será a mais ideal das cooperativas.
Mundo possível ideal número cinco: tudo será mágico. Cupido existe. Você se apaixona e a pessoa apaixona-se por você de volta. Quanta felicidade! Ninguém será carente, insatisfeito, não haverá solidão e nem depressão, se houver choro será apenas de alegria. O amor será tanto nesse mundo que será muito difícil não partilhar esse amor com tantos quantos encontrar. Seremos uma bela e enorme família. Não haverá ciúme, raiva, rancor, vingança. Se somos capazes de partilhar o que é material, portanto perecível, seremos capazes de partilhar o que não é material, portanto, imperecível.
Mundo possível ideal número seis: não haverá preconceitos de qualquer ordem, em lugar algum. Sexo vai ser tão simples como um aceno de mão. Alias, compreender-se-á que um aperto de mão, um abraço ou um beijo são tudo coisas que a gente não consegue dar sem receber de volta, quer dizer, já o recebemos quando damos. Não se terá medo ou nojo do corpo. Tudo será limpo, sublime e perfeito. Todos serão igualmente belos por isso, pois a conquista não fará mais nenhum sentido, tudo estará posto, como a fruta na árvore, pronta para ser colhida e degustada. Degustaremos, enfim, essa existência feliz.

Pode ser de agora ficarem imaginando se tudo isso que foi dito é mesmo sério ou é apenas uma ironia. Seriedade e ironia também são palavras curinga, assim como todo este texto. Eu sei o que quis dizer e disse. Quem vai ler... bem,que se virem!
E sobre as tais palavras fictícias que não sei se o são ou se são curingas, as que me parecem mais próxima do real são três: a fome, a sede e o tesão.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Uma hóspede


Faz uns três dias que ela chegou para ficar de vez. E me bater doído, jurando que de lá não sai tão cedo. Eu sabia que viria mais cedo ou mais tarde, ainda mais numa noite chuvosa de quarta-feira. Segunda e terça eu já pressentia sua presença, ou sua aproximação. E tal proximidade ameaçadora deu-me a certeza de que teria que amargar uma longa convivência. Meus pensamentos perambulando por aí, eu me dizia o tempo todo que “vai ser assim”, sim, vai. E não deixava de perguntar: vai ser mesmo assim? Sim, vai. O silêncio aterrador em volta respondia que sim, vai ser assim.
Não vou lá agora recebê-la com banda de música e tapete vermelho, vem sem ser convidada, não que não seja até bem-vinda, mas chegar de mala e cuia, com ar desafiador, instalando-se na minha vida sem me perguntar se posso, se quero, se suporto. Banda de música não, mas uma música ao menos achei na bagunça de meus pensamentos, de um velho disco de vinil que eu gostava tanto de ouvir, só não ouvi na chegada dela porque aí ia ser muito disparate da minha capacidade inabalável de rir da própria desgraça ou, quando não muito, colocar nela um adequado fundo musical. Lembrei Alceu Valença, uma letra de música que é um poema que eu gostaria de ter escrito, de tão simples que é chega a ser profundo, e diz tudo em tão poucas palavras. E serve para recebê-la, de modo a dizer que fique o quanto quiser, eu terei recursos para nos alimentar a ambos, pode dormir onde quiser, mudar o que quiser. Fique o tempo que precisar, que achar melhor para seu intuito. Eu não vou ser mais do tipo de me importar com muita coisa.
Com um sorriso nos lábios, na fronteira inteiramente tênue entre a loucura e a lucidez, eu a recebo, abro a porta para ela entrar com toda sua bagagem, hei de lhe passar um café quente, trocar os lençóis da cama, se for necessário, limpar com esmero o apartamento, talvez falte alguma coisa na geladeira que providenciarei com urgência. Se quiser dormir do lado da cama em que durmo, eu durmo do outro, se quiser descansar na minha poltrona preferida, pode ser, pode ir, pode ficar. Pode usar minha toalha, eu uso a outra, e os meus chinelos, ou se não eu compro um novo par.
Pode ir ficando, porque eu sabia que ela viria mesmo, que se instalaria de vez na minha vida, sem me dar conta ou satisfação de quando iria embora ou se iria, quem sabe, um dia, atormentar a rotina já atormentada de um outro que dela precise mais do que eu.
Não se importe muito comigo, com meus caprichos e minhas pequenas e mesmo as grandes manias, tudo é tão pouco e tão insignificante, dá para ficar sem levar muito tudo isso em conta. Eu durmo tarde porque não durmo cedo, e não durmo cedo porque quase não durmo. Acordo no meio da noite sempre com medo de descobrir que amo, eu amo, amo, eu amo, sempre com medo de descobrir. Depois volto a dormir e durmo logo, um sono sem sonhos, tudo muito simples. Não me siga pelos cantos, como agora, quando fujo para os cantos é porque gosto de chorar sozinho, sem ninguém me perguntando o que é, o que foi, o que será, por que e para que. Já me basta o próprio solilóquio com todas as suas indagações até agora sem resposta, sem a mínima chance de poder ser desvendado qualquer questionamento. Eu não sei. Pois não sei saber. Eu apenas sinto, pois isso eu sei, eu sei sentir.
É por isso que as lágrimas são líquidas, para não poderem ser represadas. A gente tapa um furo aqui, outro ali, reforça toda a estrutura. De repente tudo explode, e sai aos soluços. Depois dá um alívio danado, junto com um certo cansaço, uma fadiga, que eu poderia dizer, de existir, de ter de estar ali nesse momento, de estar vivo, de fazer coisas e ser coisas, de pensar coisas, de tentar entender as coisas. O que é melhor depois de uma crise de choro é um bom banho e algumas horas de sono. O banho inverte o sentido da água, em vez de água de dentro para fora, água de fora para dentro, ou só fora, lavando o cansaço. E o sono há de aquietar qualquer pensamento, esses cavalos selvagens a correr pelas pradarias da vida, mesmo eles, que não são domados de jeito nenhum, têm que descansar.
Então, não ligue muito para mim, nem me olhe, não se preocupe comigo muito que não vale a pena. Sinta-se em casa, só me diga por que nome devo chamá-la. Porque se não for assim, ainda tenho a música de que falei antes, a passear-me os pensamentos. E, nessa música, sei seu nome e seus maiores atributos, para melhor hospedá-la na minha humilde morada, ou na minha infame vida.
Pode ir ficando, que a música de Alceu Valença não roda na agulha do toca-discos, mas ninguém pode me impedir de cantarolar a música em minha mente:

A solidão é fera, a solidão devora.
É amiga das horas prima irmã do tempo,
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração.
A solidão dos astros;
A solidão da lua;
A solidão da noite;
A solidão da rua.

E só mais uma coisa: melhor ela não me dizer quando e se vai embora. Melhor deixar eu tentar adivinhar.

Um hóspede


Ele já estava antes de ela chegar. Vamos ter que conviver os três (ou seriam quatro, se contar a Samambaia?), a mais estranha família que se possa ter notícia de se formar, tão estranha que até pode dar certo. Uma planta, um felino, um humano e um ente subjetivo. Este último tem muito mais presença na casa do que os outros três.
Mas o caso é que ele já estava lá, devidamente instalado, adaptado, ele já tomou posse de tudo o que acha que pode ser dele, ou de tudo o que acha que é dele. Ou seja, tudo.
Tenho que providenciar que sua estada por ali seja das mais satisfatórias, o que quer dizer que tenho que satisfazer todas (ou quase todas?) as suas vontades. Vontades? Sim, vá lá, por falta de termo melhor, vamos chamar esse existir displicente, com essas coisas que ele tem que fazer, e quer, de vontades. O problema não será meu se o termo “vontade” a ele atribuído suscitar algumas discussões filosóficas. Valor de verdade por valor de verdade, sou mais poeta do que filósofo, ou nada filósofo e alguma coisa poeta, coisa que o valha, espero. Então prefiro dizer que lhe faço as vontades fazendo as minhas, ou faço as minhas vontades procurando fazer-lhe as suas. A questão é que nossas vontades combinam, elas se dão muito bem.
Depois da chegada do ente subjetivo querendo dominar tudo e todos, eu e ele nos unimos mais, estamos mais amigos, mais divertidos, mais moleques, inventando jogos e coisas tais e quais para passar o tempo. Parece que nenhum de nós a quer, aquela hóspede compulsória, e nos viramos como podemos.
Mas não vamos falar dela, que este é para falar dele.
Sair de casa virou algo que precisa de uma estratégia de guerra. Dá que ele foge de novo, e a moça bonita do apartamento sete não esteja por lá para recolhê-lo e acolhê-lo como da outra vez. Tenho que estar certo, então, ao sair, de que o danado fica dentro. E que tudo esteja devidamente fechado. Janelas da sala e do quarto, as portas, a da saída-entrada, claro, a que dá para a área de serviço e a do banheiro, por ora para evitar que transforme em brinquedo todos os rolos de papel higiênico.Aliás, brinquedos ele tem de monte. Todos fáceis de conseguir.
Depois da chegada dela, a hóspede cujo nome não ouso pronunciar, a não ser com aquela música, eu saí ontem para uma hora do almoço aqui pelo Centro que se resumiu em andar sem guarda-chuva debaixo de uma leve garoa, e a idéia que me ocorreu só na rua de que precisava comprar algumas cuecas, e meias e bermudas. Nos grandes magazines os preços são altos. Mais uma voltinha e entro numa loja, digamos, mais popular. Volto para o turno da tarde enriquecido de mais pertences: dez cuecas, seis pares de meia e duas bermudas. Precisava só das cuecas, mas com o dinheiro que compraria seis cuecas no grande magazine, comprei tudo o que enumerei ali atrás. As meias novas me fizeram lembrar de que posso me livrar das meias velhas, aquelas que ou estão encardidas ou já apresentam um furo pequeno ou médio aqui e ali.
Chegar em casa é outra campanha de guerra. O gato sempre me espera já na porta e vai abrindo todos os miados possíveis, quer tudo ao mesmo tempo, água, comida, brincadeira, cafuné, e tudo não necessariamente nessa mesma ordem. Se pudesse mesmo ser tudo ao mesmo tempo, para ele seria melhor, bem melhor. Mas eu presumo que ele já percebe que para chegar a ele cem por cento livre para dar cem por cento de atenção, tenho que me livrar de algumas coisas que afinal de contas só eu faço. Levar fora o lixo, depois de recolher o dito cujo, claro, limpar a caixa de areia, já que ele suja apenas e é só o que pode fazer, trocar-lhe a água, beber eu próprio um pouco de água. E café, se eu lembrar de fazer, ou de der tempo. Minha mochila e a sacola com cuecas e meias estão em cima do sofá. Ele quer brincar. Esconde-se atrás de uma porta e espreita daquele jeito que aparece uma orelha e um olho, e acha que está escondido. Essa brincadeira começou como pega-pega, mas virou também esconde-esconde. E ele não só corre de mim, mas também corre atrás de mim. Ele me dá um certo sossego quando estou fazendo um lanche na mesa, não se atreve a subir lá. Mas quando termino o lanche e estou ao telefone, aí parece que ele quer escutar a conversa.
Tudo feito, nada mais para fazer. Nada disso. Deu para fazer mais bolas de meias com as meias velhas. Percebi que ele agora tem catorze bolas. Resolvo dar nome a esses brinquedos. Vamos lá imaginação pueril! Os nomes: Wilson, Peninha, Espinhuda, Mizuno, Cinza, Bunda Cinza I, Bunda Cinza II, Chico & César, Rasta & Fari, Orelhuda, Barban Tina e Playmobil. Confira-se: catorze bolas. O gato me olha de soslaio, achando que devo ter pirado por ficar dando nome a bolas de meia. Olho de volta para ele, de soslaio, ele deve ser pirado, não percebe o quanto parece bobo brincando com essas bolas.
Dou umas boas risadas no meio da noite, o gato correndo de um lado para o outro. Pula das bolas e em cima delas, feito macaco. Ele é engraçado e nem sabe o quanto, pois faz tudo isso a sério.
Hora de dormir. Tudo feito afinal, três horas da manhã. Alguém nessa casa precisa trabalhar, ração de gato não dá em árvores, o que é uma pena. Vou para cama com uma última leitura da noite. Ele nem pede mais licença. Deita-se lá também e dorme primeiro do que eu. Acordo e ele ainda está lá, do mesmo jeito e com as mesmas coisas. Rio de manhã lembrando as estripulias de ontem. Bom dia, Logan! Até mais à noite.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Ao filho que amo

Meu filho caçula faz hoje quinze anos. Pudesse dar-lhe um presente que prestasse, daria um outro mundo, outra realidade. Daria uma vida com mais livros e menos TV, mais jogos na rua do que na tela do computador. Mais que todo avanço tecnológico que proporciona um sem par de utensílios que poderia lhe dar de presente, daria uma boa dose de fantasia, aquela coisa que acho que é própria dos meninos de se acharem o maioral, o mais forte, o mais inteligente, o mais bonito. Se bem que tudo isso ele já é de fato. Eu lhe daria, não sei de que modo, mais infância, afinal de contas, tudo o que mais faz falta aos infantes de hoje em dia. Fazer e não comprar, procurar e não ter à mão, criar um universo do qual é protagonista e não engolir um já criado onde é um figurante.
Seria imprescindível dar-lhe gostar da lua e das estrelas, gostar de árvores e de bichos, gostar de livros e olhar de vez em quando algumas pinturas. Daria a ele todas as palavras que tenho para ele construir suas próprias indagações e conseguir suas próprias respostas. E daria todas as boas noites de sono e sonhos de grandeza tão aceitáveis aos adolescentes, ainda que sejam para nós, chatos adultos, inaceitáveis.
E tentaria explicar a sensação de tomar um banho de chuva, sapatear em poças de água, ou o que é muito mais difícil, essa coisa toda que sentimos quando nos apaixonamos pela primeira vez. Daria o gosto pela amizade leal e sincera, e também aquela pirraça que temos que ter que só os amigos mais leais e sinceros podem suportar. E que viver nada mais é do que gostar da vida.
Tentaria ensinar tantas coisas que custei muito a aprender e mesmo as que ainda não aprendi. Quem sabe pudesse mostrar o quanto é bom ler e escrever poemas, desenhar mapas de mundos inexistentes, inventar e contar histórias, contar causos, rir à beça de uma boa peça pregada a alguém. Roubar fruta no quintal do vizinho, fazer um esconderijo no próprio quintal.
Tentaria mostrar o quanto é bom um toque de carinho, cafuné de mãe, risada de pai e pai babando alguma coisa que faz bem demais. E o quanto é bom ter irmãos, irmãs, primos e primas, tios e tias, avós. E que é uma aventura andar de ônibus de um lugar ao outro, ou ir a padaria comprar pão. E como é tão gostoso dançar e bolo sem nenhuma cobertura. E bolinho de chuva, pipoca, pastel, suspiro, bala de goma, rocambole. E ouvir música, saber que tudo é música.
E queria ser capaz de mostrar que crescer não dói e não é chato. A gente só não pode fazer mais algumas coisas mas pode fazer muitas outras mais. E nem precisa esquecer que foi criança um dia e gostar disso.
Enfim, se eu tivesse, por um passe de mágica, agora, minha infância de volta, mandaria embrulhar num papel dourado, e daria de presente ao filho que amo.

Pensando coisas...


Pensando coisas é que me perco. Pensasse menos, encontraria uma certa paz. Ainda mais agora que já sei o nome da árvore que enfeita minha janela: Tabebuia pentaphylla, mas podem chamá-la ipê-rosa-el-salvador. Sim, é um ipê, não como os nossos aqui, é mesmo de El Salvador. Os nossos, o também Ipê Rosa, o Branco, o Roxo e o Amarelo (eu vi todas essas árvores, e com flores) são do tipo de dar galhos mais comportados, formam uma bela copa, são bem mais elegantes que o seu primo de El Salvador. Mas eu gosto deste último, com seus galhos não comportados. Dão flores em ramalhetes, quer dizer, várias flores no mesmo lugar. E dão flores enquanto têm as folhas. Mas vocês todos, quando a virem, podem chamar de árvore mesmo, que ela atende de qualquer modo.
O gato trava uma guerra contra os insetos. E ele tem como brinquedo seis bolas de meia, duas bolinhas de plástico, algumas que aparecem, feitas de papel, tem como brinquedo ainda eu e a casa toda. Tudo é dele e tudo é brinquedo. Ele aprendeu a brincar de pega-pega. Gosta de correr de mim e atrás de mim, já demos umas quase trombadas. E sempre me ameaça quando estou descalço e de bermudas, caçando qualquer um dos meus pés. Ele é divertido, mas acho que eu o divirto ainda mais, enquanto me divirto com ele. Mais do que isso, só vendo.
As pessoas no terminal rodoviário são pura ansiedade. Lá estão a esperar alguém que vem de longe num ônibus, ficam espreitando feito gato cada ônibus que chega. E se ô ônibus é da cidade de que vem a pessoa esperada, ficam espreitando cada um saindo pela porta. E as pessoas que descem já procuram alguém conhecido no meio dos muitos ansiosos rostos. Quando encontram, já se cumprimentam pelo olhar e por um sorriso que eu diria que simplesmente ou escapa ou muito dificilmente pode ser contido. Mas essa é a hora da chegada.
A hora da despedida tem as mesmas coisas de modos diferentes. É um outro tipo de ansiedade. A antecipação da saudade certa que vai pairar entre quem parte e quem fica. Inevitável. Querem falar de tudo um ao outro, ou uns aos outros, nos minutos que antecedem a separação que se dará de fato. Outros ficam abraçados, incapazes de decidir se quem fica quer ir ou se quem vai quer ficar. Ou se pegam nas mãos, beijam-se, fazem pequenas carícias, um afago no cabelo, um correr dos dedos pelo rosto. Olhares que dizem adeus e querem dizer volte logo. E os ônibus são monstros gigantes a engolir e carregar para longe quem a gente ama.
Estive ontem na rodoviária. Sempre olho com hostilidade para o monstro gigante. Ela entrou num desses e se foi. Que pessoa de rodoviária ela é? Que pessoa ela é da minha vida? De tanto olhar, não pude deixar de perceber. Chegando, ao descer do ônibus, ela olha direto para o bagageiro do mesmo, como se sua bagagem fosse lhe pular no colo feito um animal de estimação. Sempre tem gente na frente a pegar suas malas. Ela espera sem olhar para ver se chegou quem veio esperá-la. Estou ali, já a vi e ela não me vê.
E na hora de partir, ela esgota os assuntos, mais preocupada em dar o bilhete ao motorista do que se entregar ao ritual da despedida. Não sabe se quer apertar as mãos, abraçar, beijar, e de novo beijar, abraçar e pegar nas mãos. É muito desajeitada com gestos íntimos em público ou com despedidas, não sei qual das duas coisas. Então, ela simplesmente entra e vai.
Então foi assim que ela se foi. Assim termina o romance que na vida eu escrevia, que tinha de tudo para ser tão mais belo e insistiu para ser apenas belo o suficiente. E no tempo certo, não muito além da conta.
Não contente em ficar encarando o monstro gigante que a levou para longe, achei de ficar encarando todos os outros monstros gigantes a fechar as suas portas e partir, levando tanta gente e suas histórias para bem longe. Separando as pessoas.
Depois disso, era imprescindível que eu fumasse dois ou três cigarros, para configurar a saudade para agüentar mais um tempo, com a nítida certeza de que esse tempo vai ser mais longo do que eu possa imaginar. Esse tempo pode ser para sempre.
Se eu tivesse na vida mais despedidas, faria a alegria e a fortuna dos livreiros. Saí de lá com mais um livro para ler no trem a caminho de volta para casa. E para ler e reler a vida toda, porque é um bom livro de um bom autor tratando de um bom assunto. Tudo parece tão bom.
Cheguei em casa com uma sensação que não é muito fácil de descrever, sei apenas que não é simplesmente alívio e muito menos é resignação. Mas é como se tivessem tirado a adaga fincada bem no meio do meu peito. Tenho que correr atrás do gato. Ele vai querer correr atrás de mim. Não sei o que ele pensa quando me arranca risadas no meio da noite. Mas acho que ele se diverte bastante.
PS.: Claro que o ipê da foto não é o que está em frente a minha janela. É apenas imagem para quem não conhece. Também acho que o ipê da foto é o brasileiro, não o de El Salvador, que não perde as folhas quando dá flores. Ah! Preciso mesmo de uma máquina digital, para poder mostrar o ipê da minha janela. Providenciarei.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Uma aventura

Eu preparo uma aventura. Quer dizer, eu me preparo atirar-me a uma aventura. E olho para trás a procura de aventuras do passado, quando foi a última? Tirando as de caráter pueril, ou mais próprias da adolescência, que são só aventuras porque parecem aventuras naquela idade, tirando isso, desde que me entendo por gente, essa coisa adulta cheia de peso na bagagem, às vezes até em volta da cintura, essa coisa cheia de limites e limitações, essa coisa cheia de ponderações, que não se sabe se dono ou escravo da própria razão, desde que virei isso que sou, não sou capaz de me lembrar de mais nenhuma aventura de verdade.
A vida que querem que tenhamos, ou que permitem que tenhamos, nos enquadra da forma que quer e no que quer, dita o tamanho de nossos passos, a extensão de nossas ambições, os limites de nossas possibilidades. Quem dita isso? Sei lá, não vou tecer nenhum tratado sociológico ou antropológico, e muito menos filosófico, a essa altura dos acontecimentos. Mas tenho todo o direito do mundo de tergiversar sobre o que quero e o que não quero, à vontade. Minha vontade, só minha, vontade minha.
Mas também deixemos dessas considerações rebeldes desprovidas de causas plausíveis. A realidade é que ser o que queremos e tudo o mais nessa porcaria de vida tem um preço, e muitas vezes a gente vende a alma para pagar esse preço. Ou às vezes vamos entregando tudo em intermináveis prestações, pagando o preço em doses homeopáticas, com juros e correção monetária, sempre com correção no nosso saldo devedor. Não estou falando de dívidas bancárias, que também tenho, como podem pensar. Estou falando de nossa dívida existencial, para respirar e existir pague! E pague bem caro. Não tem dinheiro? Então pague indiretamente, consumindo tudo o que lhe oferecem para você ser algo mais do que é, (puxa vida!), essa porcaria que não figuraria bem num horário global, nem no núcleo pobre da pior novela. Esse algo que é que não fotografaria bem suas caras numa certa revista, que não seria bem visto passeando em Beverly Hills ou transitando distraidamente em Hollywood. Ora bolas!
Declaro-me, desde já, um inadimplente.
Mas não era disso que eu estava falando. Eu falava de uma certa aventura. Será que queria mesmo falar? Agora é tarde, meus dedos correm muito rápido pelo teclado e falam por mim. Eu falava de uma aventura de amor. Desde fevereiro que não a vejo e ainda acho que ela é minha namorada. Parece não ser mais, acho que terminamos por telefone (por telefone?). Não! Não posso aceitar isso. Se pelo menos fosse por carta, ainda ia.
Às vésperas desse feriado, deu-me de me dar uma idéia louca e absurda, inteiramente pueril, de fazer uma viagem de setecentos quilômetros só para ver a pessoa amada. E de ônibus. Tivesse trem para lá seria muito mais emocionante, além de romântico, é claro. Mas não há. Parece que não há. Ônibus mesmo, e estrada, esses meus dois velhos conhecidos. Já fiz virtualmente a bagagem, vou levar bastante papel, lapiseira e caneta. Roupas? Não sei se vou precisar. Vou num pé e volto n’outro. Sem hospedagem. Vim aqui não para conhecer essa fabulosa cidade, mas só para ver você. E só ver mesmo, se for o caso. Como se fosse a última coisa que tivesse para fazer na vida. Nem que seja para ouvir ao vivo e em cores que está tudo terminado. Mas vou ver você. O que mais vou conversar? Não sei. Não dá para ficar fazendo ensaios com essas coisas. Levarei todas as palavras que tenho não na bagagem de mão, mas em outra minha bagagem, essa que acho que trago desde sempre, desde que comecei acumular. Levarei esses meus ultrapassados sentimentos. Como não sei rezar e nem cantar, levarei meu olhar, meu olhar. Acho que deveria levar também flores, só para parecer ainda mais antiquado. Levarei então o presente de aniversário atrasado, isso, com um mês de atraso, mas tudo bem, será um outro livro, de longe o presente que mais gosto de dar e é muito bom quando encontro alguém que gosta de ganhar exatamente esse presente. Que mais? Que mais? Não sei. Nem sei mais.
Mais perguntas? Quais são as minhas verdadeiras intenções? Bem, eu só quero ver a moça. Preciso parar de sonhar com aqueles lábios espalhados por toda parte. Ou, quem sabe, ter motivos para sonhar com eles ainda mais. Aventura, cada um tem a que merece.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Talvez sim! Talvez não! Talvez...

“Aquele que trabalha com suas mãos é um operário, aquele que trabalha com suas mãos e sua cabeça é um artesão, aquele que trabalha com suas mãos, sua cabeça e seu coração é um artista”

Talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não. Talvez...

Talvez eu seja rancoroso, desde que haja um bom significado para a palavra. Talvez eu saiba amar e as pessoas não saibam ser amadas, talvez o contrário disso. Talvez nada disso, talvez eu precise aprender a não amar tanto, ou achar que amo tanto, ou talvez encontrar um outro jeito de amar. Talvez eu tenha pelas pessoas muita consideração. Consideração demais e talvez me importe muito com isso. Talvez eu nutra uma estranha esperança com relação às pessoas. Uma esperança de todo inútil, frágil e sem sentido. Talvez...
Talvez eu precise sonhar menos e agir mais. Ou talvez agir o suficiente para poder sonhar o quanto quiser, sonhar à vontade. Talvez a realidade não tenha para mim nenhum significado. Ou talvez tenha significado demais. Talvez eu seja mais racional, racional ao extremo, mais racional do que eu possa imaginar. Talvez seja uma grande e tola ilusão que eu seja assim todo sentimentos. Talvez eu me engane muito com as paixões, talvez achando que delas me alimento até me fartar. Talvez essa fome de tudo ser outra coisa um tanto melhor não seja fome, mas algo que não tem nome. Talvez...
Talvez eu tenha pela vida mais desprezo do que ouso ser capaz de perceber, talvez muito mais do que sou capaz de ousar admitir. Talvez esse asco, esse olhar de viés, talvez esse dar de ombros, essa ausência de um esperado desespero, essa mais completa falta de ansiedade, essa nulidade de quaisquer ambições, talvez isso tudo seja meu melhor jogo de cena posto em meu melhor personagem, que sou um “eu” nenhum de nenhum lado dos espelhos em que me olho. E talvez isso não resista a um olhar atento no espelho. Talvez...
Talvez seja melhor eu estar sozinho, sempre, talvez. Talvez seja bom não ter aonde ir, para onde voltar, não ter onde ficar. Talvez seja melhor sempre recomeçar tudo do zero, talvez esquecer tudo o que quero, deixar de lado tudo quanto espero. Talvez o melhor de tudo seja não esperar nada. Talvez...
Talvez seja bom não desperdiçar esses olhares, não lidar talvez tão bem assim com as palavras e procurar talvez lidar com os números. Talvez eu deva fazer mais silêncio, talvez calar mais sobre tudo aqui dentro, para talvez sofrer menos, ou não, talvez , sofrer logo tudo de uma vez. Talvez...
Talvez seja tarde, tão tarde talvez para tudo na vida. Talvez eu deva somente respirar essas tardes que avançam na noite, essas noites que desabam sobre mim, impiedosas e naturais, e se tornam madrugadas torturantes. Talvez eu deva sorver mais as noites de sábado e as tardes de domingo como coisas só minhas. Talvez dormir mais, viver menos, pensar menos. Talvez menos amor à sabedoria, em tudo o que é, afinal, tão muito mais simples do que podemos ver. Talvez um outro amanhecer de luzes assim tão estranhas, talvez um amanhã que me saia das entranhas, e talvez essa manhã tão supostamente impossível traga quase por um mero acaso algo de novo. E talvez a mim reste apenas esperar. Talvez...
Talvez eu deva dar graças por estar vivo, e andar sobre as duas pernas, conhecer todos os caminhos, ter rumo e direção. Talvez não. Talvez eu deva ser grato pelo alimento, pela água, pelo ar e pelo veneno. Talvez eu deva ser muito agradecido por tudo que afinal de contas eu tenho que arrancar do nada para mim mesmo. Talvez eu deva louvar a vida e todas as suas portas, mesmo que sejam do céu ou do inferno, todas as portas me são batidas na cara e há sempre de todos estarem dentro e eu fora, fora de todas as lógicas, de todas as histórias, de todas as lembranças, fora de todas as casas, de todos os olhares e sorrisos, fora de tudo que é afinal tão simples e corriqueiro, esse sentimento exato de que a vida cabe numa equação matemática. Talvez eu deva seguir as estradas certas, trilhar os bons caminhos, ter uma sina, crer no destino, fazer parte de algum horrendo plano divino. Talvez não. Talvez eu deva me perder mais do que me perco, perder-me ainda mais e mais, de uma vez por todas, para nunca mais me encontrar, para talvez ser menos, ter menos, desejar menos, merecer menos. E me contentar talvez por estar sempre olhando para o nada, o nada da morte, essa angústia de quem vive, o nada da solidão, esse fim de quem ama. Talvez toda essa dor tenha um sentido e um significado, talvez tenha mesmo, mesmo que eu nunca consiga desvendar, talvez tenha. Talvez...
Talvez me falte sal ou açúcar, talvez um sabor de qualquer coisa. Algum sabor. Talvez em tudo tivesse que ter um outro tempero, ou algum tempero, mesmo que fosse uma pitada de raiva, um pouco que fosse de amor-próprio, um grãozinho de ódio ou de desespero, talvez devesse ter usado alguma mágoa a meu favor, alguma doidice ao meu dispor. Talvez eu tivesse que ter gritado, xingado, ter dado todos os possíveis murros em ponta de faca. Talvez ter dito desde o início e imediatamente que não quero mais. Talvez mais montanhas para escalar, mais ladeiras nos caminhos, mais becos escuros, e terrenos baldios, talvez mais poços sem fundo onde me afundar, talvez um tanto mais de emoções baratas, talvez um coração mais duro e uma mente menos displicente. Ou talvez não, apenas minhas lágrimas secretas em minhas noites vazias por simplesmente tudo e em tudo meu mais profundo silêncio, talvez me arrepender por todas as palavras, por cada frase dita, por cada pensamento libertado sem nenhum mistério. Talvez...
Talvez eu devesse ter mentido, ou talvez ocultado ao menos minhas reles impressões sobre qualquer coisa que pudesse parecer verdade. Talvez eu devesse ter aprendido onde por os pés, onde por as mãos, talvez aprendido para onde ter dirigido o olhar, ou talvez devesse ter fechado os olhos a tudo, talvez menos luz, menos lucidez. Talvez...
Talvez eu devesse ir atrás de você, ter ido atrás de tudo o que quero. Talvez eu devesse tentar tornar fáceis as coisas difíceis, mesmo sabendo que é muito difícil tornar fácil as coisas difíceis. Ou talvez eu torne sempre difícil as coisas fáceis e, desistindo delas enquanto difíceis, essas coisas permaneçam sendo o que realmente são, fáceis. Talvez muito mais fáceis do que percebemos. Talvez jogos de palavras e de idéias, talvez apenas jogos, nada mais. Ou talvez tentar outro caminho, outros desertos, outros portos distantes, talvez eu devesse ter prestado atenção em tantos outros pensamentos que se dão muito além do cais. Talvez um mar aberto, uma ilha perdida, um naufrágio talvez, não ter tantos tesouros escondidos. Talvez eu devesse construir com gestos todas as histórias, todos os destinos, talvez um desatino, uma coisa nunca antes pensada por se fazer, apenas por fazer, ação e simplesmente isso, ação talvez. Talvez...
Talvez eu devesse deixar que vivesse mesmo uma vida melhor do que a vida que posso lhe dar. Talvez fosse de fato necessário livrar você de todo peso, de toda a incerteza trazida pelo tempo, talvez afastar você dessas coisas todas tão complicadas. Talvez complicadas. Talvez não. Talvez eu soubesse de toda a distância mesmo antes de a distância se fazer concreta, palpável e presente, e talvez eu devesse viver somente todas as distâncias, nunca estar por perto, nunca desperto, e não cultivar talvez qualquer proximidade com o que quer que seja. Talvez...
Talvez tudo seja apenas isto: essa tristeza e essa solidão, esse imenso silêncio nas horas mais erradas. E talvez esses medos todos nas horas mais acertadas. Talvez tivesse que ter aceitado a efemeridade desses momentos que às vezes parecem tão eternos. Ou talvez percebido que há eternidade em momentos apenas efêmeros. Talvez só isso. Talvez...
Talvez eu devesse ter olhado as estrelas mais como astrônomo do que como poeta. Talvez tivesse sido melhor ter olhado a vida como espectador mais do que como amante. E talvez sentido o amor mais como objeto do que como sujeito. Talvez fosse melhor não querer nada tão perfeito, talvez nada ter feito, talvez nada revelado, nada escrito, nada pensado, nada dito. Talvez nada. Talvez...
Talvez ter olhado para tudo mais como observador do que como amante, esforçar-me talvez para não amar e não ser amado, ter economizado sentimentos tão caros e tão raros. Talvez ter todo o prazer como coisa corriqueira do corpo, talvez só isso, como se fosse possível, talvez tornar possível, como algo somente do corpo muito mais do que como alguma coisa d’alguma alma. Talvez...
Talvez eu devesse apagar toda a história, destruir talvez todas as memórias, viver de esquecimentos, talvez, rasgar todos os papéis acumulados, quebrar todos os instrumentos que me tornam outra coisa, talvez desativar todos os mecanismos da imaginação. Talvez encarar tudo o que se derrama mais como tolices do que como inspiração. Talvez não inspirar, não respirar, talvez não mais caminhar, não ter talvez tanto empenho e arte em lembrar e relembrar e lembrar tudo outra vez. Talvez...
Talvez eu devesse ter dito tudo isso e muito mais. Talvez não ter dito nada, nunca mais, ou talvez nunca ter dito. Entre o tudo e o nada, o dito e o não dito, uma existência que se resume em grandes fracassos diante de pequenos triunfos, esse poço que somos de emoções baratas, talvez me esvaziar mesmo dessas águas. Talvez ter arrancado tudo pela raiz, talvez não ter desejado tudo quase por um triz. Talvez fosse melhor eu não ter querido tudo como quis. Talvez não ter me iludido poder ser feliz, porque a felicidade é melhor não saber se existe do que saber que não se tem. Talvez...
Talvez haja um outro modo de ver tudo, de sentir tudo, de saber tudo, tudo o que é necessário, nada além, nada a mais, nada mais, só o necessário. Talvez haja um outro olhar, um outro mar, algum outro cais, talvez haja mesmo essa coisa de nunca mais. Talvez...
Talvez eu devesse escolher viver sem você, e muitas outras coisas que não quero. Talvez não escolher entre o querer e o poder, talvez nem ao menos poder. Talvez o querer seja só mais alguma coisa com a qual a gente se engane, talvez haja uma fronteira tão tênue entre o que se é e o que não se pode ser. Talvez...
Talvez haja alguma grande coisa nessas coisas tão pequenas, talvez o demônio tenha criado a luz e deus as trevas, talvez o mundo não seja pequeno e nem o universo infinito, e nem seja a vida um fato consumado, talvez haja em meio a todo esse terror algo talvez muito belo. Talvez belo. Talvez...
Talvez haja ainda tempo, tempo para mais um poema, um monte de palavras tolas e inúteis lançadas ao vento, a se perderem nos quatro cantos, talvez um pouco mais de tempo para essas coisas lindas que jamais existirão. Talvez sim. Talvez não. Talvez...
E talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não.
Talvez eu viva para brincar em outros quintais. Talvez não.
Talvez...
Talvez eu ame você para sempre. Talvez eu esqueça todo o amor ao virar a esquina, talvez não haja mais essas esquinas por que passei, talvez eu desista mesmo de amar, nem sei, talvez sei, se é que sei que não sei que sei. Talvez haja mais o que pensar e fazer, talvez vida muito mais além dessas janelas, talvez haja vida lá fora, lá fora no mundo, fora do mundo, talvez fora de tudo, talvez fora de mim. Talvez...
Talvez tudo isso termine, talvez derramar tudo de uma vez seja sofrer toda essa dor inútil e sem fim ainda uma outra vez. E talvez não aprendemos nada ainda sobre o fim, do fim e com o fim. Fim talvez de tudo. Talvez...
Talvez eu alimente esperanças em relação a todas as coisas, e nem dê com isso a devida atenção, talvez eu nunca esteja atento com o fato de que o que nos mata ou faz sofrer é qualquer esperança. Talvez então eu possa estar vazio, esvaziar o corpo das dores, a alma dos amores. Ou talvez esvaziar meus olhos das cores, das paisagens, talvez não haja mais o perfume de flores, talvez esvaziar minhas mãos dos gestos , meus ouvidos das mais belas sinfonias, talvez eu possa esvaziar todos os meus dias, esvaziar a mente das lembranças, esquecer os gostos e em minha língua matar as palavras, conter os pensamentos que me invadem, expulsar os demônios, matar os anjos, correr com os santos para fora do templo, sem pressa e sem preces, talvez eu possa destruir todos os deuses, todos os ritos, todos os mitos. Talvez...
E, vazio de mim, e em mim, vazio por mim, talvez isso não passe mesmo de palavras ao vento, poemas para o esquecimento, e nada mais. Talvez...
Talvez essa tristeza seja somente medo, medo da solidão. E talvez essa solidão seja só uma tristeza que nasce sempre de uma certeza. Ou talvez nem seja medo, talvez um arremedo dele, um pequeno engano, talvez uma impressão apenas, uma impressão de medo que mais é uma coragem velada de tocar em frente com o que vem e com o que se tem, e como vem, quando vem, talvez um desejo reprimido e escondido de estar a olhar em volta e ficar satisfeito em não encontrar ninguém. Talvez ninguém. Talvez...
Talvez abandonar tudo, deixar meus passos pelos caminhos, meus rastros em nenhuma estrada, talvez cessar de lançar palavras ao vento, colher as tempestades, não permitir nunca mais nem lágrimas nem lamentos, aceitar o mal como mais possível e real do que o bem que imagino espalhar-se por toda a parte. Talvez ser capaz de negligenciar quaisquer sentimentos acerca de absolutamente tudo, tudo talvez absolutamente sem o menor sentido. Talvez sem sentido. Talvez...
E talvez procurar não me arrepender de tudo aquilo que não fiz. Talvez procurar fazer todas as coisas, sem medo algum de me arrepender. Talvez nunca o arrependimento. Talvez!

(05/10/2007 – 17:45 * 06/10/2007 – 14:42 * 07/10/2007 – 15:18 * 08/10/2007 – 09:20)

terça-feira, outubro 02, 2007

(Des)arrumação

Depois da chegada e devida arrumação da nova estante, sobrando tanto espaço na velha, e depois da chegada e inevitável desarrumação do novo habitante felino, tudo o que faço é arrumar e arrumar, organizar as coisas, como se arrumar tudo em volta e fora de mim arrumasse tudo dentro de mim.
Depois da glória efêmera de mais uma premiação poética, ponho-me a pensar que sou poeta coisa nenhuma. De volta ao ostracismo e ao esquecimento, resta-me arrumar meus muitos papéis, depois da arrumação dos livros. E lá vou arrumando esses tais papéis, muitos textos, alguns lidos, outros não, apenas colecionados. Etiquetando: poesia, literatura e filosofia. Escapam outros gêneros, história, ciência e alguns que são classificados mais no geral com uma etiqueta grafada diversos.
Tenho que sair rapidamente para o meu almoço, pegar o livro que deixei encomendado ontem. Bem que vai ser útil para um projeto de tese de mestrado, que parece se avizinhar nas cercanias de minha criatividade. Eu sei que vou escolher o tema mais difícil de ser abordado. Eu sou desse jeito, um sujeito difícil. Mestrado? Ora, o que estou dizendo?
Eu escrevia com pressa, mas perdi toda a pressa, uma questão de ritmo é sempre minha questão. Sinto-me como se estivesse sentado numa pedra bem no meio do deserto, para onde quer que eu olhe, nada.
Eu estava agora a pouco na livraria, aguardando o livro encomendado. Tantos livros são escritos. Eu que comprei um tanto desses que foram escritos, agora quero escrever um. Quero? Não sei se quero.
O Centro da cidade, tantas pessoas! De repente, um sentimento de estranhamento: o que são as pessoas? Ao que me parece, esse poço de emoções baratas. Eu quero ser esvaziado dessas águas. As pessoas e seus rostos, seus olhares, seus esgares, fico cá pensando na misantropia de minha grande amiga, talvez também esteja se perguntando o que são as pessoas. Ou talvez não. Talvez uma tristeza na qual eu não tenha prestado atenção. Talvez esteja ferida de uma batalha que trava sozinha, sem que eu possa fazer qualquer coisa. Sinto sua falta, mas parece que estamos vivendo nossos momentos em que algo mais nos falta. Isso mesmo. Aprendendo sobre o que exatamente nos faz falta. Ou quem sabe aprendendo a não fazer falta para nada e ninguém desse mundo. Uma arrumação, provavelmente, da bagunça interior. Um tal de um “sentimento de não estar de todo”.
Pois foi chafurdando na minha bagunça de papéis que encontrei vários poemas, que fui lendo quase com uma devoção extraordinária. Prestando atenção em como os poetas de verdade usam as palavras, tantas palavras mais do que as que eu uso, e fazem suas tão belas construções, pintando os sentimentos das mais variadas cores. E fiquei dessa vez me perguntando por que e para quê. Por que temos que ter tanto para dizer, o tempo todo, porque essa tagarelice escrita e rimada, bem construída? Melhor que ficássemos todos calados. Melhor que desistíssemos de achar que podemos querer mudar ou melhorar o mundo.
Ainda olho a caixa de correspondência, o telefone não toca e nem eu toco nele. Um e-mail eu não consegui responder. Parece que finalmente não tenho mais nada a dizer. Mais nada. Meu silêncio me atormenta, o vazio que fica me assombra. Não sei mais o que fazer das coisas do coração. Não sei mais. Silenciar. Entregar-se de uma vez por todas às lembranças de tudo que, afinal de contas, passou e, passando, acabou. E que não parece querer recomeçar.
Quanto ao coração, melhor seria que nunca tivesse amado, do que a possibilidade de um dia não amar mais. Do mesmo modo, melhor era nunca ter sido amado do que não ser mais amado. Esses instantes em nossas vidas tão impossíveis de serem eternos. E esse gosto por eternidade que temos por mera recaída do viver. Não! O tempo nem apaga e nem cura nada. Muito menos o tempo vence. O tempo apenas devora. A imagem mitológica, na minha humilde opinião, é a que ainda tem mais peso.
Então vamos seguindo em frente, sempre com um pedaço a menos do que somos, devorado pela voracidade do tempo. Errônea impressão de que somos mais enquanto o tempo flui. Vamos no fluir do tempo sendo cada vez menos, até sermos nada, nosso fim último e mais provável. Tudo isso sem grandes inquietações existenciais. Verdade!
Diria-nos Horácio, nessa hora tenebrosa: carpe diem.


Última semana de setembro

Semana cheia essa que passou, a última do mês de setembro, afinal um mês qualquer, com suas coisas ruins e boas, cada uma delas na justa medida. Cheia de emoções corriqueiras, nem grandes nem pequenas, médias talvez, uns tantos minutos de fama que me tiraram do ostracismo, para me devolver a ele com a mesma rapidez e desenvoltura. O que fazer depois de conquistar Tróia? Querer conquistar Roma. E o que fazer depois de conquistar Helena? Querer o amor da própria Afrodite. Toda megalomania, ainda que só desejada, sonhada, tem que ser controlada, colocada nos limites do possível. Será mesmo que tem?
Na segunda não fui ao trabalho. Recebi um telefonema da universidade, avisando que dois poemas dos três que coloquei no concurso foram classificados. Classificados Beijo e Errando Poesia, fiquei matutando por que é que As Horas ficou de fora. Talvez tenham sido poucos concorrentes. Disseram que não, que foram apresentados duzentos poemas, então dos treze classificados dois eram meus. Desci imediatamente o chicote na megalomania. Calma lá com o andor.
Mas também me convidaram para ir ao estúdio de rádio da universidade, para gravar as minhas poesias, que na quarta-feira seriam colocadas no site da universidade. Fui lá e gravei. A professora responsável disse que estava ótimo, logo de primeira leitura, o operador da mesa de som, no entanto, pediu-me para repetir um ou dois trechos. Depois fui conferir o resultado no site e odiei a minha voz de taquara rachada, minhas poesias lidas sem a devida entonação e não passando a emoção adequada. Autocrítica inevitável! Eu bem que tinha dito que preferia as poesias lidas na voz do Paulo Autran. Não! Eu não sou nada bobo.
Na quarta-feira, estavam todas as poesias no site. Deu um frio na espinha, achei três ou quatro muito bons e eles não eram meus. Comecei a ensaiar saber perder, afinal de contas, não se pode ganhar sempre. E também nunca é possível agradar a gregos e troianos, o que se dirá também dos romanos, que achei de colocar na peleja. E aquela minha voz de taquara rachada. Tudo bem, não sou locutor de rádio, mas sou um reles poeta.
Enquanto o resultado não vem, vamos ao simposio. Nesta mesma quarta ouviu-se sobre Nietzsche, Para muito além do tédio. Os expositores foram competentes no que prepararam. Mas cá no ouvido doeu um pouco a história de trabalho contra o tédio e uma outra história sobre ócio produtivo. Talvez eu deva escrever algo sobre como conviver com o que achamos que é tédio, embora eu concorde que ele exista, prefiro ele a um monte de coisa por aí. Quanto ao ócio, taxa-lo de produtivo, ou querer que o seja, é transformar o ócio em algo que ele não é. Ócio é ócio e pronto. Se estiver a produzir alguma coisa, por simples e pequena que seja, já não tenho mais ócio. Preciso pensar melhor nisso.
Valeu esse dia para depois da palestra, a caminho do metrô, achar aquele que seria meu futuro gato de estimação. Quer dizer, não fui eu quem o achou, minha grande amiga o achou por mim. Levamos ele para a casa dos gatos, onde já há sete residentes e pelo menos uns cinco visitantes nos telhados vizinhos. Hospedou-se lá por essa noite ao menos, para a decisão de quem ficaria com ele, Trinity ou eu. Eu ainda acho que ela planejou tudo direitinho, porque depois poderá se ver que quem ficou com ele fui eu.
Na quinta-feira perdi grande parte da palestra, sobre o tempo, porque fiquei perdendo meu tempo aqui no Centro da cidade, noite quente, cerveja gelada no copo. Mas foi o dia de decidir levar o gato. Lá fomos nós dar uma nova moradia para esse gato. Agora com nome: Logan. Pois é, por algum tempo, Trinity carrega nas costas uma marca de suas garras, quando tentou fugir. Fugir talvez não, tentou voltar para a rua. E ele foi para casa na caixa de transporte, no metrô, e nem sabíamos se isso era permitido ou não.
Sexta-feira, dia de trabalho e final do concurso de poesia. Eu preocupado com o Logan sozinho em casa. Pronto! Agora eu tenho um gato. Sempre me dá um nervoso não sei porque nessas horas de resultados. Se envolvesse sorte, tudo bem, porque sei que não tenho sorte, então qualquer um ganharia. Tivemos que ler os poemas e eu subi ao palco para ler logo os dois. Tive que caprichar dessa vez na entonação e na emoção da leitura, afinal, pela primeira vez nesses concursos, minha filha estava lá prestigiando. Terminadas as leituras, aqueles trinta ou quarenta minutos de coral, musica para alegrar o ambiente. Eles retornam logo depois com o resultado. Deram-me o segundo lugar. Quer dizer, premiaram-me pela terceira vez consecutiva. Ainda tenho que ouvir aqui dos amigos do trabalho que eu não ganhei nada, perdi o primeiro lugar. Primeiro lugar? Que tolice imensa, penso eu, sem dizer nada, com minha costumeira modéstia. A questão é que começo a ficar preocupado, porque sei o que me leva a escrever poesias, e sei também em que estado de espírito as escrevo. Sempre coloquei nesse concurso as três a que tenho direito. Em 2005 deram-me o terceiro lugar, o primeiro lugar em 2006 e agora o segundo. Ano passado classifiquei duas em dez e este ano duas em treze, dizem que essas treze selecionadas de duzentas. Isso me preocupa bastante. Se as pessoas gostam do que escrevo, tenho que continuar a escrever. Nada de pretensões literárias e monetárias, ao menos por ora, que sou perito em não ganhar dinheiro. Mas é incrível ver alguma coisa dar certo nesse universo de coisas tortas e desengonçadas, mal ajambradas que tem sido a vida.
Logan estava vivo na sexta-feira, depois de ficar o dia inteiro sozinho. Deve ter ficado dormindo. Comportou-se bem na festinha que fizemos para ele, comendo somente sua ração e não querendo nosso macarrão com arroz e fritada de ovos. Experimentou o colo de todo mundo, brincou e fez gracinhas. Gato atrevido e exibido, loiro de olhos claros, pensa que é o Brad Pitt.
No sábado, tendo eu dormido até quase meio-dia, tive que ter com ele uma conversa séria sobre como as coisas funcionam em casa. A caneta se mexendo sobre o papel não é brinquedo, mesa não é cama quando tem comida em cima, eu não como a comida dele e ele não come a minha. Eu recolho as fezes dele e ele não vai precisar recolher a minha. Tudo bem que dividamos a poltrona, ela é suficientemente grande para nós dois, mas não serve para afiar as garras, assim como não serve também as costas de minhas amigas.
Domingo teve mais visita para o gato. Três dias em casa e ele já recebe para ele mais visitas do que eu. Tenho que insistir sempre naquela história de posição na cadeia alimentar, mas ele não parece gostar dessa história.
Ontem tive que acabar de arrumar toda a minha papelada depois da estante nova na sala e uma redistribuição dos livros. Ele parece não perceber o que é trabalho e o que é brincadeira. E ontem estava simplesmente impossível, correndo pela casa toda.
Pois é, eu até que estava bem quieto no meu canto.
Mas tinha que me aparecer um gato no meio do caminho.

PS.: com o prêmio do concurso de poesia, mais cinco livros em minha estante, três do Umberto Eco, um Michel Onfray e um Drumond de Andrade. E vontade nascida no final de semana de começar um projeto de tese. E não vai ser sobre epistemologia.