terça-feira, outubro 30, 2007

Seis mundos possíveis ideais

Eu me “desapaixonei” de você. É simples assim. A gente pega aquele monte de paixão e acua num canto qualquer do peito, põe de castigo, não deixa mais ir brincar na rua por um tempo indeterminado. Essa paixão acuada e de castigo, encerrada lá naquele canto não pode mais ser pensada. Não se pensa nela de jeito nenhum. Não é fácil. Porque tudo em volta vai fazer você lembrar, tudo em volta vai conspirar a favor da menor reminiscência. Então você tem que ser decidido em não mais pensar. Você tem que se tornar um especialista em esquecimento. E tem que fazer de conta que tudo de tão bom e belo que foi trazido por essa paixão não é assim tão importante. Tem que achar coisas mais importantes nas quais pensar, nas quais dedicar seu tempo. Por exemplo, aprender sânscrito. É difícil pra caramba, mas tentando, você vai esquecer qualquer paixão. Quer dizer, você vai se sentir tão incompetente, que vai achar que nem para se apaixonar você presta. Pode ser outra língua: russo, gaélico, hebraico, árabe, mandarim. Não vale inglês, francês ou espanhol, talvez nem italiano, alemão, porque vai que você aprende e aí vai ficar dizendo por aí “eu te amo” em qualquer uma dessas línguas. Se não der certo, tente decifrar hieróglifos, sem ajuda.
Mas tem essa coisa das coisas levando você às lembranças. Isso é complicado. O jeito é você tratar isso como uma história, um verdadeiro romance ou uma boa novela e excluir-se como personagem. A história é linda, é verdade, mas aquele que lá está fazendo e dizendo todas aquelas coisas, aquele que está sentindo todas essas coisas tão lindas e boas, aquele não é você. Definitivamente não é você. Não pode ser você. Não deve ser você. Você não. Pronto. Você fora da história já é bem um meio caminho andado.
Tem mais um problema. São as pessoas apaixonadas a sua volta. Vai ter que lidar com isso, e vai ter que lidar bem. Os casais que andam de mãos dadas, que vivem se bicando aos beijos, abraçadinhos em tantos momentos, com aqueles olhares e tudo o mais. Não preste atenção por mais de um minuto nos amassos alheios, que é uma possibilidade muito grande de recaída. Faça de conta que você é um tipo de representante superior da espécie humana e paira acima dessas vicissitudes, digamos, emocionais, sentimentais. Isso é um mero desperdício de energia e você poupa suas energias para coisas mais elevadas, mais prazerosas e gratificantes. Não seja um reles ser humano mortal e passional, não, você é mais.
Ocupe-se de algo mais proveitoso. Como por exemplo mudar todas as concepções de mundo que você tem e mesmo as que andam por aí aos borbotões. Porque visões de mundo há por aí de cambulhada. Use toda sua imaginação em coisas muito mais úteis e questões mais edificantes, do que essa coisa de gosto dela e ela não gosta de mim, ela gosta de mim mas eu não gosto dela, eu queria encontrar alguém, não ouse sentir medo de ficar sozinho. Ficar sozinho é bom, é muito bom. Não passe suas valiosas horas de vida achando que você precisa encontrar alguém. Sabe quem você precisa encontrar? Aquele que lhe aparece no espelho do banheiro. Então, ocupe seu tempo em imaginar mundos possíveis ideais, mundos que certamente são melhores do que este. Muito melhores.
Nunca se atreva a se sentir sozinho, pense no silêncio e no sossego, poder espremer a pasta de dente no meio, deixar cuecas jogadas pelo quarto, toalha de banho no espaldar da cadeira, louça suja em cima da pia, levantar e não arrumar a cama, levantar num fim de semana e ir dormir de novo. Ouvir a música que você quer e cantar junto sem ninguém dizer que você desafina ou que errou a letra. E poder pensar sobre o que vai fazer depois de fazer nada, mais nada e depois disso, descansar de ter tanto o que fazer, porque até fazer nada às vezes cansa. E, afinal de contas, quem pode provar que dormir ou tirar um cochilo na poltrona não é fazer alguma coisa? Ninguém vai lhe perguntar aonde vai, onde foi e com quem, o que fez ou deixou de fazer. Pode ir a padaria com a roupa que usou para dormir, ninguém lá fora sabe que dormiu com ela.
Não desista de tentar imaginar aqueles mundos possíveis ideais. Mas, antes disso, é preciso livrar-se de algumas palavras fictícias, que são todas aquelas que só servem para nos enfeitar as fantasias ou alienar-nos da torturante realidade. Esta que nós temos tanto medo de encarar. A realidade crua e cruenta. Diria até que é cruel, para continuar no trocadilho proposicional. Vamos tentar uma pequena lista: amor, paixão, compaixão, resignação, esperança, fé, caridade, bondade, fraternidade. E por aí vai. Esse é só o começo da minha lista, façam a sua. As palavras, afinal, servem apenas para nos afastar da verdade. Aliás, verdade, uma outra palavra fictícia. Diria então que as palavras só servem para nos afastar da realidade, do que é real. O que é real? Que nascemos, vivemos e morremos. E sofremos tanto por tudo isso. Tenho dúvidas de que a palavra sofrimento seja fictícia. Acho até que é uma palavra curinga, que pode ser real e fictícia. Não vou fazer aqui uma lista das palavras curingas. Façam vocês a sua própria lista, memorizem e nunca esqueçam dela. É bom acrescentar coisas novas.
Não saber porque nasceu, viver e procurar em vão um sentido para isso, e não conseguir negar que vai morrer, embora não se pense muito nisso, e nem se fale, é tudo o que nos afasta do real e nos faz criar essas ficções para atenuar o nosso medo da morte, a “angústia de quem vive”. Angústia, aliás, uma outra grande palavra curinga. Assim como solidão e tristeza. Mas eu tinha jurado que não faria uma lista.
Mundo possível ideal número um: deus existe e criou tudo quanto existe para nosso bem e conforto, o dia em que percebermos isso seremos muito mais felizes. Soframos cá na terra, há um céu que nos aguarda, no qual seremos recompensados por tudo que aqui passamos. Recompensados eternamente. Por isso é que temos o Bem introjetado em nossos corações. Nos desviamos, mas há a possibilidade de sermos perdoados, bastando para isso o sincero arrependimento de todas as nossas faltas. E bastando que saibamos também perdoar. E tudo é divino e maravilhoso. Tudo tem um propósito que precisamos compreender nesse grande plano divino.
Mundo possível ideal número dois: o amor existe e sua conseqüência maior, o seu fim (no sentido de finalidade) é a felicidade, que também existe. Parece difícil, mas qualquer um pode alcançar a felicidade. Há pessoas felizes para onde quer que eu olhe, por todo o lado o que mais tem são pessoas extremamente satisfeitas. Mas há lugares no mundo em que falta o amor e, conseqüentemente, a felicidade. Felizmente, há também pessoas que são capazes, são fortes o bastante para isso, de levar o amor onde ele falta e tudo fica bem.
Mundo possível ideal número três: existe um estado de natureza, tão sonhado pelos filósofos do XVII-XVIII, pelo Iluminismo-Humanismo. Sim, o homem é bom por natureza, mas já em sociedade... A sociedade é que corrompe o homem. Tendo aceitado o fato de que existe um estado de natureza, basta almejar atingi-lo (ir até ele ou a ele voltar, vai saber), e a humanidade será enfim tudo de bom. Cada ser existente vai usar só aquilo de que precisa, nada além disso. A natureza vai ser preservada, com ela a humanidade. Harmonia nem será uma palavra curinga, será pura realidade. Harmonia de tudo com tudo o mais, de cada um com todos e de todos com cada um. Um verdadeiro paraíso materializado e tornado possível aqui e agora, nessa nossa tão palpável vida. Descobrir-se-á que a guerra é um grande engano, não mais se matará por motivo algum, todos os estados resolverão suas “disputas” ou na discussão pacífica ou, em último caso, por sorteio. Ou ainda em jogos. Jogar-se-ão jogos para dirimir as questões. Só que vencedores e vencidos ainda assim haverão de confraternizar como iguais, como irmãos. Aliás, descobrir-se-á que somos filhos de um mesmo pai criador, portanto, irmãos. Todos os povos assim se tratarão.
Mundo possível ideal número quatro: na seqüência do estado de natureza, não haverá posse e nem propriedade. E nem haverá riqueza, porque a riqueza só tem sua razão de ser sendo o oposto da miséria. Como não haverá miséria, não vai haver porque existir riqueza. Todos serão iguais e terão somente aquilo que necessitam para viver e viver bem. Se ocorrer de alguém não ter esse mínimo necessário, deverá ser por descuido ou acidente, então deverá haver a partilha. Uns ajudarão aos outros e assim todos ficarão bem. Não haverá nesse caso má distribuição desses bens mínimos necessários para se viver. Aliás, não haverá nem necessidade da existência de dinheiro. Todos os bens de produção serão muito bem distribuídos a cada qual segundo as suas necessidades. A humanidade em estado de natureza será a mais ideal das cooperativas.
Mundo possível ideal número cinco: tudo será mágico. Cupido existe. Você se apaixona e a pessoa apaixona-se por você de volta. Quanta felicidade! Ninguém será carente, insatisfeito, não haverá solidão e nem depressão, se houver choro será apenas de alegria. O amor será tanto nesse mundo que será muito difícil não partilhar esse amor com tantos quantos encontrar. Seremos uma bela e enorme família. Não haverá ciúme, raiva, rancor, vingança. Se somos capazes de partilhar o que é material, portanto perecível, seremos capazes de partilhar o que não é material, portanto, imperecível.
Mundo possível ideal número seis: não haverá preconceitos de qualquer ordem, em lugar algum. Sexo vai ser tão simples como um aceno de mão. Alias, compreender-se-á que um aperto de mão, um abraço ou um beijo são tudo coisas que a gente não consegue dar sem receber de volta, quer dizer, já o recebemos quando damos. Não se terá medo ou nojo do corpo. Tudo será limpo, sublime e perfeito. Todos serão igualmente belos por isso, pois a conquista não fará mais nenhum sentido, tudo estará posto, como a fruta na árvore, pronta para ser colhida e degustada. Degustaremos, enfim, essa existência feliz.

Pode ser de agora ficarem imaginando se tudo isso que foi dito é mesmo sério ou é apenas uma ironia. Seriedade e ironia também são palavras curinga, assim como todo este texto. Eu sei o que quis dizer e disse. Quem vai ler... bem,que se virem!
E sobre as tais palavras fictícias que não sei se o são ou se são curingas, as que me parecem mais próxima do real são três: a fome, a sede e o tesão.

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