sexta-feira, outubro 26, 2007

Um hóspede


Ele já estava antes de ela chegar. Vamos ter que conviver os três (ou seriam quatro, se contar a Samambaia?), a mais estranha família que se possa ter notícia de se formar, tão estranha que até pode dar certo. Uma planta, um felino, um humano e um ente subjetivo. Este último tem muito mais presença na casa do que os outros três.
Mas o caso é que ele já estava lá, devidamente instalado, adaptado, ele já tomou posse de tudo o que acha que pode ser dele, ou de tudo o que acha que é dele. Ou seja, tudo.
Tenho que providenciar que sua estada por ali seja das mais satisfatórias, o que quer dizer que tenho que satisfazer todas (ou quase todas?) as suas vontades. Vontades? Sim, vá lá, por falta de termo melhor, vamos chamar esse existir displicente, com essas coisas que ele tem que fazer, e quer, de vontades. O problema não será meu se o termo “vontade” a ele atribuído suscitar algumas discussões filosóficas. Valor de verdade por valor de verdade, sou mais poeta do que filósofo, ou nada filósofo e alguma coisa poeta, coisa que o valha, espero. Então prefiro dizer que lhe faço as vontades fazendo as minhas, ou faço as minhas vontades procurando fazer-lhe as suas. A questão é que nossas vontades combinam, elas se dão muito bem.
Depois da chegada do ente subjetivo querendo dominar tudo e todos, eu e ele nos unimos mais, estamos mais amigos, mais divertidos, mais moleques, inventando jogos e coisas tais e quais para passar o tempo. Parece que nenhum de nós a quer, aquela hóspede compulsória, e nos viramos como podemos.
Mas não vamos falar dela, que este é para falar dele.
Sair de casa virou algo que precisa de uma estratégia de guerra. Dá que ele foge de novo, e a moça bonita do apartamento sete não esteja por lá para recolhê-lo e acolhê-lo como da outra vez. Tenho que estar certo, então, ao sair, de que o danado fica dentro. E que tudo esteja devidamente fechado. Janelas da sala e do quarto, as portas, a da saída-entrada, claro, a que dá para a área de serviço e a do banheiro, por ora para evitar que transforme em brinquedo todos os rolos de papel higiênico.Aliás, brinquedos ele tem de monte. Todos fáceis de conseguir.
Depois da chegada dela, a hóspede cujo nome não ouso pronunciar, a não ser com aquela música, eu saí ontem para uma hora do almoço aqui pelo Centro que se resumiu em andar sem guarda-chuva debaixo de uma leve garoa, e a idéia que me ocorreu só na rua de que precisava comprar algumas cuecas, e meias e bermudas. Nos grandes magazines os preços são altos. Mais uma voltinha e entro numa loja, digamos, mais popular. Volto para o turno da tarde enriquecido de mais pertences: dez cuecas, seis pares de meia e duas bermudas. Precisava só das cuecas, mas com o dinheiro que compraria seis cuecas no grande magazine, comprei tudo o que enumerei ali atrás. As meias novas me fizeram lembrar de que posso me livrar das meias velhas, aquelas que ou estão encardidas ou já apresentam um furo pequeno ou médio aqui e ali.
Chegar em casa é outra campanha de guerra. O gato sempre me espera já na porta e vai abrindo todos os miados possíveis, quer tudo ao mesmo tempo, água, comida, brincadeira, cafuné, e tudo não necessariamente nessa mesma ordem. Se pudesse mesmo ser tudo ao mesmo tempo, para ele seria melhor, bem melhor. Mas eu presumo que ele já percebe que para chegar a ele cem por cento livre para dar cem por cento de atenção, tenho que me livrar de algumas coisas que afinal de contas só eu faço. Levar fora o lixo, depois de recolher o dito cujo, claro, limpar a caixa de areia, já que ele suja apenas e é só o que pode fazer, trocar-lhe a água, beber eu próprio um pouco de água. E café, se eu lembrar de fazer, ou de der tempo. Minha mochila e a sacola com cuecas e meias estão em cima do sofá. Ele quer brincar. Esconde-se atrás de uma porta e espreita daquele jeito que aparece uma orelha e um olho, e acha que está escondido. Essa brincadeira começou como pega-pega, mas virou também esconde-esconde. E ele não só corre de mim, mas também corre atrás de mim. Ele me dá um certo sossego quando estou fazendo um lanche na mesa, não se atreve a subir lá. Mas quando termino o lanche e estou ao telefone, aí parece que ele quer escutar a conversa.
Tudo feito, nada mais para fazer. Nada disso. Deu para fazer mais bolas de meias com as meias velhas. Percebi que ele agora tem catorze bolas. Resolvo dar nome a esses brinquedos. Vamos lá imaginação pueril! Os nomes: Wilson, Peninha, Espinhuda, Mizuno, Cinza, Bunda Cinza I, Bunda Cinza II, Chico & César, Rasta & Fari, Orelhuda, Barban Tina e Playmobil. Confira-se: catorze bolas. O gato me olha de soslaio, achando que devo ter pirado por ficar dando nome a bolas de meia. Olho de volta para ele, de soslaio, ele deve ser pirado, não percebe o quanto parece bobo brincando com essas bolas.
Dou umas boas risadas no meio da noite, o gato correndo de um lado para o outro. Pula das bolas e em cima delas, feito macaco. Ele é engraçado e nem sabe o quanto, pois faz tudo isso a sério.
Hora de dormir. Tudo feito afinal, três horas da manhã. Alguém nessa casa precisa trabalhar, ração de gato não dá em árvores, o que é uma pena. Vou para cama com uma última leitura da noite. Ele nem pede mais licença. Deita-se lá também e dorme primeiro do que eu. Acordo e ele ainda está lá, do mesmo jeito e com as mesmas coisas. Rio de manhã lembrando as estripulias de ontem. Bom dia, Logan! Até mais à noite.

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