segunda-feira, janeiro 21, 2008

Merecido castigo

As bicicletas não rodam mais no parque. As crianças viraram adultos insatisfeitos. O mundo de aventuras transformou-se numa realidade onde o que vale é o corre-corre. Os sonhos viraram estórias estranhas, fizeram um remake bem vagabundo de todos os mais belos sonhos que se pode ter. Não tem mais pote de ouro no fim do arco-íris, nem luz no fim do túnel. As mais belas palavras tornaram-se um balbuciar ininteligível sobre coisa alguma.
Enormes edifícios erguem-se onde havia sublimes mundos de quintais, pedra e asfalto cobrem os rios mortos. Colocaram flores de plástico em todos os vasos de minha vida. Cimentaram todos os bosques de nossa infância, puseram calçamento na areia das praias. Cobrimos tudo com paredes, janelas e portas para nos escondermos de qualquer coisa passível de nos ser próxima. Estamos encerrados em nossas prisões com as portas abertas, temos medo de sair, temos medo de voar, tudo não passa de uma canção no escuro.
A fumaça maculou o azul do céu, luzes artificiais ofuscam a luz das estrelas. Cidades invadem campos, lixo invade enseadas, sombras de prédios imensos são os melhores protetores solar.
Procuro amor em cada esquina, em cada beco escuro sem saída, o amor escoa pelo esgoto, vontade de viver, uma quimera, vontade de viver com hora marcada, entrar e sair, cinco ou seis dias por semana, na solidão de minha casa uma imagem incógnita em cada espelho parece ser eu. Procuro amor em cada olhar atormentado, e só há esgares no lugar de sorrisos. Em cada rosto uma história desfeita, mal contada, mal assimilada, mal vivida. Toda poesia é somente esse inquebrável silêncio a pairar entre as pessoas.
O que move tudo parece ser a tristeza, o que torna tudo possível é só melancolia, esses nossos medos tolos. O sofrimento se impõe como dádiva, um favor dos céus, um capricho da natureza. A dúvida é nosso melhor tempero, mesmo sobre aquilo que não se pergunta nem num momento de insanidade.
Não são lamentos por tempos idos e nem falsas esperanças de algum porvir. É bem menos que isso, é tudo ser bem menos que isso.
É somente vida, nosso mais merecido castigo.

Entre o céu e a terra

Com o coração entre o céu e a terra: ela vem! Esse amor que é tão fácil de negar, da boca para fora. Da boca para dentro nem tanto. Ela vem me trazer tudo de volta, ou não, trazer de novo tudo à tona. Vou tentar disfarçar a indisfarçável euforia. Tentar para quê? E por quê? Como? Onde vou esconder essa imensidão de sentimentos? Vai transbordar pelos olhos. E por cada poro vai me escapar um pouco de luz da imensa alegria interior. Incontrolável.
Ela vem e nem sabe que me traz tudo o que levou tão sem perceber, quase que sem querer, eu diria (diria?), eu diria que não devia ter dito que nunca mais ia dizer eu te amo. Não vou dizer. Talvez nem seja preciso. Não! Não vou dizer, não vou dizer o que de qualquer forma eu digo, mesmo sem perceber, mesmo pensando que sempre é sem querer.
Um frio na boca do estômago. Ela vem como se nada tivesse acontecido. Eu também me comporto assim, como se nada tivesse acontecido. Foi só a distância. Foi só toda essa saudade. A boca por que me apaixonei, desde a primeira vez que vi, a boca que me engoliu toda a vontade de fugir, de não mais querer, de não mais ser qualquer coisa. A boca que me devorou a vida, inteira. A boca que devorou todos os meus mais sublimes pensamentos.
A noite, também uma boca que me engole, não será mais tão vazia e silenciosa, haverá trovões em meu peito, haverá dança de luzes de todas as estrelas, haverá paz, uma paz tão indescritível, tão difícil de ser sem ela.
E sei também que haverá muita falta de paz, que amar não passa de travar consigo mesmo a mais cruenta de todas as guerras.
Toco sua boca toda noite em sonhos tão deliciosos. Tocarei suas delícias em sonhos que se tem quando preciso não dormir. Sei que todas as horas serão eternas, todas as noites suaves, sei que estarei como que morto para esse mundo que não me abarca, para todo o desejo que em mim não se aplaca, desejo de poesia em gesto. Todas as músicas. Todas as sinfonias no sussurro de cada palavra. Todo o amor de toda a eternidade e de todo universo, mesmo que não seja preciso dizer eu te amo.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Há música

Agora são apenas os rostos da minha imaginação. As mulheres que eu amo são as que eu desenho, as que me olham do fundo da pasta, aquelas que têm seus mais enigmáticos olhares. O limiar da falta de lucidez será estar próximo de uma certa loucura. Bobagem! É só este convívio com uma duradoura solidão, esse silêncio sempre absurdo dentro de mim, essa aceitação de todos os fatos inaceitáveis. Não vai haver ninguém pelo caminho, ninguém para tomar pela mão, ninguém para dividir a tristeza de momentos tão felizes. Ninguém para compartilhar esse olhar que se perde na madrugada, lua e estrelas, a noite e sua escuridão, seu silêncio, imensa quietude, ninguém com um abraço que me aproxime de todos os medos do mundo e que me afaste de mim mesmo.
Tristeza, é sempre mais tristeza do que solidão. tristeza por tudo e por nada, por tão pouco, muito pouco. E aceitar tudo isso como se fosse uma dádiva, acalentar a tristeza porque sua existência é verdadeira e necessária, mais do que a improvável felicidade.
Não mais fingir, não mentir a cada olhar no espelho, não se deixar enganar por tantas coisas tão tolas e inúteis.
Nenhum lugar cabe em mim, nenhuma distância me percorre, nenhuma mão me alcança, nenhum olhar me atinge em cheio para dar um sentido a existência. Existir não faz o menor sentido e o medo dessas palavras agora faz menos sentido ainda.
Os sonhos, sempre os sonhos. Sonhar de olhos abertos até que se quebre o enorme silêncio e eu possa dormir. Aquela vontade de nunca ir a lugar nenhum, não ver sequer uma pessoa que seja, não ouvir mais nada sobre tudo e qualquer coisa, entregar-se ao silêncio, a mais absoluta das forças da natureza. Apagar meu nome de todas as bocas, banir minha imagem de todas as lembranças, tirar minha vida de toda essa história. Eu preciso ir, encontrar de vez o que vim fazer aqui. Eu preciso ir para bem longe, onde todas as distâncias não irão fazer nenhum sentido.
Esquecer a vida e seu sofrimento, essas lágrimas sempre derramadas em vão, essa dor no meio do peito tão indecifrável, esquecer toda essa vontade de amar tão incontrolável. E nascer de novo na manhã que se avizinha, nascer novo, outro que não eu mesmo. Para que me conheçam menos ainda, que não saibam nada, e para que possam ter a certeza de que nunca vão me conhecer.
Agora sei que sou a tristeza. E na tristeza de ser isso, sou o desconhecido.
Ainda bem que há música e alguém que ainda saiba ouvir a música que há. Sim, uma nota triste de um violino aqui, um rufar de tambores ali, anunciando um espírito revolucionário. Eu não prestava atenção às minhas próprias palavras, quando me contam, escuto-as de modo diferente, como se não fosse eu, mas talvez um eu como uma centelha no coração de outros. Ouça quem sabe ouvir. Ouvidos para quem tem sensibilidade. Sensibilidade para quem é capaz de viver. E vida para quem ainda é capaz de sonhar. E sonhos para quem se atreve a viver.
PS.: O final quase perdido:
"Ainda bem que tudo pode soar às vezes como música, uma nota triste de um violino aqui, um ribombar de tambores revolucionários ali, talvez algo mais, piano e metais, sinfonias para quem tem ouvidos, ouvidos para quem tem sensibilidade, sensibilidade para quem sabe que está vivo e pode estar. E vida para quem ainda é capaz de sonhar. E sonhos para quem é capaz de viver."

Você

Eu ontem deitei ao seu lado sem ter você ali. E a solidão disse que você não vinha mais no meio de um sonho, porque cada sonho, todo sonho acaba. O seu rosto não estava ali no vazio, um beijo perdido no meio da noite, a saudade sangrando em cada momento que passa, inútil e inevitável. E eu abraçando cada lembrança de tudo o que não vai acontecer mais. Não de novo.
O telefone ocupado no meio da noite, você lê outro, talvez, fala outro, pensa outro talvez, e talvez eu outro que não eu tão capaz de entender silêncios e distâncias, e a viver o vazio que me traz esse estar sempre sem sono. Eu acordado prolongando a agonia de saber que em ninguém vou encontrar você nunca mais.
Olhar tudo em volta dessa verdade que tem que ser assim mesmo, não de outro jeito, essa verdade indesculpável de não me saber mais o que se faz quando não se sabe realmente o que fazer, o que ser, o que pensar, o que sentir. Sempre essa mesma coisa, sentir muito todas as coisas e ter que ouvir todos em volta pensando essas coisas da maneira mais absurda e improvável que existe, da maneira mais inadequada.
E perceber que não existe mais. Não existo mais nas histórias todas das pessoas, no que falam e no que vêem, no que pensam. Não existo para os seus sentimentos, para alguma espécie de carinho que me pudessem ter, que não têm, porque nem isso mais sabem ter. Outra sintonia em meu mundo à parte, ou na minha parte dessa mesma porcaria de mundo.
Meus sentimentos mais caros todos lançados no chão. Sou menos que o boneco com que as meninas brincariam de imaginar seus príncipes encantados que haverão de vir montados em cavalos brancos inimaginavelmente bonitos. E deverei brevemente mofar no fundo de uma enorme caixa de brinquedos.
Falta-me alguma coisa para que me vejam, para que saibam que existo e sinto todas as coisas como elas bem que deveriam ser. Falta-me alguma coisa e não há como saber o que é. Porque em tudo o que dizem eu não me encontro.
Eu não faço parte do conto de fadas em cujo final todos viveram felizes para sempre.
Minhas palavras e meus poemas, minha mais ativa imaginação, meu espírito criativo que se quer tão selvagem, meu modo de olhar para todas as coisas, minha capacidade de ouvir, minha vontade de entender cada pedaço de cada ser de que me aproximo, isso tudo, tudo isso não vale mais nada. Falta-me alguma coisa, uma luz ou um fogo, um ribombar de mil trovões, ou o estrondoso clamor de todos os meus demônios, ventos uivantes da partida de uma caravana de fantasmas. Falta-me andar errante por mais duas eternidades, mundos distantes e inexistentes, desconhecidos, com seus desertos e abismos, cumes de montanhas que tocam o céu, profundezas que se avizinham de todos os infernos.
Para me sentir vivo e tão sozinho como sempre houve por ser não de outro jeito. Para não precisar mais de muito pouco, precisando enfim de nada.
E aprender a voz indizível do silêncio, a eloqüência do olhar. Estar em paz diante de tudo assim se desmoronando tão aos poucos que ninguém percebe, diante de tudo que se dissipa desde o mais imediato instante anterior a esse que também já passou.
Estar em paz como que na hora da morte, sem angústias ou esperanças, sem dúvida ou temor, apenas paz, somente a paz de quem sabe que sabe que vai saber dormir para sempre.
Eu ontem fui dormir e você era o vazio imenso ao meu lado. Você era o silêncio e a distância, você era a serenidade da hora da morte, você era a vida inteira a passar-me diante dos olhos, todas as lembranças dissipando-se, um olhar que nunca nada igual tinha visto ainda.
Você era essa dor de viver, essa solidão que se eterniza e essa distância que não se percorre nem em sonhos, que não cabe na imaginação.
Você era esse pensamento mais belo que pode haver, que se perdeu no tempo, e que nunca ainda nasceu e nunca mais vai nascer.

Mentira

Mentira! É mentira! Deve ser mentira que sinto tudo isso. Mentindo para mim ou para o mundo, para fora ou para dentro, diante do espelho, alastram-se no decorrer das horas todas as mentiras que inventamos para nós mesmos (e que funcionam também para os outros), talvez para a vida ficar mais fácil de ser vivida, para aplacar nossa melancolia e enganar nossos piores medos.
Medo sim! O medo da solidão, o medo do sofrimento, o medo da morte. O medo do fim inevitável de tudo, o que nos leva a mais possível certeza de que são tolas e sempre serão tolas todas as nossas esperanças. Estão solapados os alicerces de nossos castelos de sonhos. Vivemos em ruína, pobres seres errantes que somos, tristes órfãos, miseráveis grãos de poeira espalhados pelos ventos impetuosos do tempo.
Que merda é saber que houve um tempo em que gostavam de me ouvir sobre essas mesmas coisas. Gostavam desse meu modo de olhar para todas as coisas. Agora parece que mudaram todos eles seu próprio olhar para as coisas e eu continuo com o meu olhar, por falta de outro modo de ver. Não que eu não queira, mas talvez por não achar outro melhor.
Então é hora de me calar. Já sou um fantasma nas conversas, como aquele vovô que pensam que caducou, ou como um velho e rabugento tio, que não tem paciência para ficar ouvindo as pessoas se enganando o tempo todo sobre tudo.
Eu fiquei ouvindo da cadeira de balanço onde eu estava sentado reclamarem tanto hoje em dia dos relacionamentos, dos sentimentos, dos amores e das paixões. E vociferarem que não dá mais certo. Não existe mais a pessoa certa para determinada pessoa. Parece que as pessoas não se encaixam mais ou algo que mudou drasticamente no mundo não encaixa mais nelas. Eu tento gritar que sei o que falta, ou acho que sei, mas é melhor balançar um tanto mais nessa cadeira, ruminar minhas melhores lembranças, deixar-me embalar por meus mais doces pensamentos e pegar no sono com um sorriso de escárnio bem no canto da boca, que seja imperceptível ou não, todo mundo sabe que quem enlouquece ou perde simplesmente a razão, ou fica caduco, simplesmente ri à toa. Que assim seja. Pois nem isso funciona mais.
Ninguém mais namora, se apaixona ou se entrega como devia ao amor, eu diria entre dormindo e acordado, e voltaria a dormir para poder fingir bem que não disse nada.
Eu poderia dizer que é como “andar de bicicleta”. Mas antes tenho que ouvir uma ladainha de reclamações do tipo as bicicletas não são mais as mesmas, as ruas estão diferentes, tem muita subida pelo caminho, o selim machuca a bunda, os pneus nunca estão bem cheios. Em matéria de amor inventaram um outro modo de andar de bicicleta, não deu certo, tentaram outra vez, não vai dar certo, não vai dar certo. Há que se gritar isso pelos quatro cantos da cidade, espalhar em outdoors, em panfletos entregues aos passantes, não deu certo, não vai dar certo, não está dando certo. Em matéria de amor, desaprenderam a andar de bicicleta. Mas não me dêem ouvidos, há para mim a desculpa de ou ter perdido o juízo ou ter ficado caduco mesmo. E eu nem esqueci como se anda de bicicleta, mas faz tempo que não ando.Não pensem agora que eu quero estar certo, eu não quero. Eu sempre quero estar errado e é para mim sempre triste quando me ajudam a constatar que não estou. Eu vou vivendo as coisas aos poucos e aos poucos é que vou tentando entender. Sei que hoje quero apenas “andar de bicicleta”, deparar-me com aquela imensa ladeira e soltar os freios, quero sentir o vento na cara.