quinta-feira, agosto 23, 2007

Nada

Aonde foi minha alma a noite inteira, que acordei esta manhã tão cansado como se nem tivesse dormido? Se for verdade que temos alma, e se temos, se é que tenho direito a uma como todos.
Voltava para casa ontem tentando entender a lógica das escadas, aquilo que é uma coisa só, mas que faz você subir ou descer. E, conforme for, no meu caso, descendo as escadas, estou indo ser nada nesse mundo imenso. Subindo, estou de volta ao meu tão pequeno mundo, tão repleto de tudo o que sou, de tudo o que não sou, de tudo que poderia ter sido. Analogia imediata do subir/descer como sair do paraíso e ir ao inferno. E viver muito mais tempo no inferno do que em qualquer outro lugar. A lógica das escadas é igual à lógica dos caminhos. Ir e vir dependentes de escolhas e decisões, deixando-nos tão à mercê dos acasos.
Suspenso. Nos seus mais possíveis sentidos. Que flutua na parte alta de (algo); que se interrompeu temporária ou definitivamente; paralisado, adiado, sustado, cancelado; que tem sentido incompleto. Nenhum nexo causal entre o momento anterior e este, e entre este e o possível próximo. Um outro olhar que me força ver a vida como mera sucessão de acasos.
Se acaso me quiseres, sou tão difícil de esconder. Se acaso me quiseres, sou tão fácil de ser encontrado, nessas escadas, subindo ou descendo, visite meu inferno e, dependendo da hora do dia, poderei ser encontrado numa espécie de paraíso.

Nenhuma carta na caixa de correspondência, o telefone não toca, em volta tanta gente que tanto gosta de mim mas que nada sabe de mim. Eu ouvindo, ouvindo, ouvindo, sem quase nunca poder falar. Eu que sei o que falta naquele lado da cama, do outro lado da mesa, do outro lado de qualquer abraço, do outro lado de meu olhar cansado que busca os olhos da pessoa amada. Eu que sei. Quando falo dessa solidão, mais importância vai ter a dicotomia entre razão e emoção, sempre um ponto de vista e nenhuma vista exatamente naquele ponto.

Vou acordar no meio da noite, tendo perdido completamente o sono. Por um tempo muito mais longo do que possa imaginar. O que me atormenta, não sei. O que me preocupa, talvez a falta de preocupar-me com alguma coisa. Cansado sou tanto morto quanto posso imaginar. Não há nada adiante, nada agora em torno de mim, não há mais nada de tão importante e interessante que vivi há algum tempo atrás. Nada.
Descobri, de repente, o que existe na nossa idéia de inferno e paraíso. Nada.

quarta-feira, agosto 22, 2007

O cara do espelho

As coisas todas não estão em seu devido lugar. Só pode ser isso. Pelo menos, as coisas que eu queria em seu devido lugar, estão a setecentos quilômetros de distância.
Falei pouco da Marilyn ontem, mas encontrei uma foto digna de falar mais do que falei. Maravilhosa, linda. Minha mania de amar mais os mitos do que a realidade.
Sentei-me na janela do escritório ainda agora e fiquei a admirar longamente a paisagem em volta, o Pátio do Colégio, o Parque Dom Pedro, a rua e os camelôs, pessoas indo e vindo, que tribo enorme nos tornamos, a ponto de perdermos a noção de irmandade, tribo mesmo, fátria. Que espécie nos tornamos? Arrisco um palpite: homo urbanus virtualis.
O cara do espelho. Eu pensava, enquanto estava na janela, no cara do espelho. Aquele cara que me olha e, bem, diz o que tem que dizer. Faz falta um espelho na casa de cada pessoa, não para conferir a roupa ou o cabelo, não para fazer a barba. O cara no espelho para dizer para você, de uma hora para outra, que chega!
Então. O cara do espelho, ontem, ostentava um risinho irônico, daqueles que sabe as respostas para as suas mais medíocres perguntas, porque essas respostas são óbvias, e não pode fazer nada além de achar engraçado essa coisa de nos perdermos nessas inúteis inquietações. O cara do espelho de casa é mais chato do que eu consigo ser.
Falei muito de meu pai e nele pensei muito nesses dias. Até parece que não tenho mãe. Tenho sim. Ela vai fazer setenta anos mês que vem. Eu sou já um quase velho que nasci dela, ela deve estar velha também, bem mais que eu. Puxa vida!
Mãe. A vida. A vida que demoramos tanto para viver, acumulando tanta coisa. Disso que queria falar. Devo ir lá dia desses. Preciso ir. Falar com ela sobre tanta coisa que não falamos ainda. Antes que seja tarde demais. Não, ela não. Pode ser que eu próprio não veja o próximo amanhecer. Pensando na morte? Eu não. Só o cara do espelho que conta o tempo, eu não conto o tempo e nem meço os espaços, assim a vida transcorre linear, dá para ver tudo, o começo, o meio e o fim.
Também afirmei muito esses dias estar cansado das pessoas. Como explicaria isso? Na melhor das hipóteses, canso-me das pessoas porque preciso delas. E é por isso que me mantenho em torno delas, penso sempre nelas. E talvez a explicação para o fato de as pessoas não se cansarem de mim seja justamente o fato de elas não precisarem tanto de mim.
Uma certa vocação para a reclusão, é o que timidamente tenho desenvolvido. Em casa, eu e o cara do espelho.
Tenho a impressão de que duas certezas posso ter na vida, a de morrer ou a de enlouquecer. Desse modo, se viver muito anos mais, com certeza não será no gozo de minhas faculdades mentais. Se viver pouco, terei morrido lúcido ainda, por pura teimosia, por essa mania de ir teimando na vida para ver no que a vida dá. Exagero essa coisa de loucura? De modo algum. Tenho olhado em volta e me questionado muito sobre a lucidez de muita gente.
O cara do espelho sempre diz que eu chego lá: morte ou loucura.
No mais, esse meu sentimento diante de todos como se eu fosse um fóssil de um animal extinto. Exclamações estapafúrdias: ele é romântico! Ele ama! Ele está apaixonado! Ele é tão idealista! É mesmo um sonhador!
Ora bolas! Devo avisar aos dinossauros que o cometa não tarda. Com meu sangue de barata tenho uma grande probabilidade de sobreviver ao grande desastre.
Pensamentos soltos à procura de uma certa tranqüilidade (que eu tive?) que tem me feito falta. Tranqüilidade com relação a simplesmente tudo em volta. Talvez esses não sejam mais tempos assim tão propícios para o cultivo de algo tão inverossímil quanto a tranqüilidade. Tempos difíceis, de se imprimir uma grande velocidade a tudo, correndo com tudo, de tudo, correndo para tudo. Vivemos correndo. Que ritmo alucinante. O carro diante dos bois.
Ninguém tem mais tempo de ser contemplativo diante de uma janela.
E nem se dispõe a conversar com o cara do espelho.

terça-feira, agosto 21, 2007

Melhor que eu fosse dormir

Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver, a espera de viver ao lado teu, por toda a minha vida.” (Jobim/Vinícius)

Não gosto muito quando brigo com os papéis. Os desenhos estão agora encerrados em suas pastas, amontoados. Calados, todos os papéis são só papéis. E não podem virar outra coisa, algo com forma e cor, com poesia. As canetas e os lápis em seus potes estão de castigo no armário, trancados. A mesa não está posta, está limpa, o chão está limpo, tudo limpo, está limpo o meu coração.
Estou assolado pela rotina. As horas do dia me esmagam. Tirei os livros da minha frente. Para saber quem ou o que sou eu em tudo isso, poemas e desenhos, eu a ver-me em contos fantásticos e em inimagináveis romances. Silêncio.
Todos os meus fantasmas aparecem no silêncio.
Nem tanto. Minha tristeza precisa sempre de um fundo musical. E, pelo que parece, nada em língua estrangeira, por ora, algo na minha língua, de preferência.
Os discos de vinil. Depois da arrumação do apartamento, quiseram os discos de vinil falar comigo. É tristeza à moda antiga, de um tempo em que havia amigos que ouviam sobre suas tristezas, aliás, que viam sua tristeza, de um tempo de conversas téte-a-téte, sem as absurdas intermediações de orkut, msn, e-mail, torpedos, e nem telefone. De um tempo que não se faziam distâncias.
Os discos de vinil. Maldição! Chamei para a conversa Chico, Bethânia, Vinícius, Toquinho, Maria Creuza, Marília Medalha, Nana Caymmi, Elis Regina. Só para começar.
Eu precisava dar um pulo no mercado. Além da pinga que já havia em casa, umas latas de cerveja e um Martini para colocar ao lado da vodka e enfeitar a minha tão negligenciada geladeira. Tenho prometida e garantida uma semana de nostalgia, de uma melancolia que serve como uma luva para me quebrar o silêncio. Ou para aquietar-me os pensamentos. Pensar cansa, esgota. Tudo isso para superar o silêncio dos papéis e a falta de imaginação, minha criatividade moribunda dentro de uma rotina tão sem sentido, todo dia, as mesmas coisas. E sou ninguém com essa falta de imaginação que me chega às mãos. Se minhas mãos se aquietam e não querem fazer nada, não tem jeito.
O que seria isso eu não sei. Essa quase certeza de um não pertencimento a esse espaço e a esse tempo, esse espaço que me limita, esse tempo que não me contém. Um não pertencimento a um mundo em que as pessoas usam cada vez mais as palavras para esconder as verdades, essa razão-vitrine a ocultar as mais belas emoções que tanto aprendi a apreciar no ser humano.
Queria agora alguém que soubesse suspirar comigo, por uma lembrança boa, uma história engraçada, uma sensação de bem-estar, e que chorasse por nada e por tudo, quando necessário. Alguém que entendesse de perda e de saudade. Que se emocionasse com o barulho da chuva, com um por-de-sol, com uma lua alta e branca num céu salpicado de estrelas, que ficasse boquiaberto diante desses mistérios todos do universo.
Começou tudo ontem, talvez, com a saudade do azul dos olhos de meu pai, com a brancura do sorriso de Marilyn, com a incompreensível força e coragem de um poeta de verdade chamado Victor, que não padecia de tristezas virtuais, mas sim sofria as tristezas de fato, de um tempo duro e violento, em que tinha que ser inevitável o medo de que a força e a coragem lhe custasse a vida. Como custou.
Eu lhes pergunto, então: quanto custa hoje a nossa vida?
Comecei com Chico cantando com Bethânia: “deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água.” E Elis, “Dois pra lá, dois pra cá” de João Bosco e Aldir Blanc.
Começou outra bagunça em minha mesa, três latas de cerveja vazias, uma cheia, um copinho de pinga a mais, os discos, cinzeiro com cigarro queimando, e eu tendo que dizer a mim mesmo coisas que não se diz, saudades tantas de minhas tristezas de outrora, que será de mim com essas tolas tristezas de agora?
Deixo os discos por ora, arrumados e separados para um outro momento. O domingo que acabou ontem me deu de presente uma semana completa, passei pela segunda-feira e vivo ainda, preciso saber se chego até sexta-feira, para mais um final de semana em que o telefone não toca, o interfone não grita, ninguém me chama, ninguém me sente ausente, ninguém me quer.
Mais um cigarro, a quarta cerveja que se acaba, a quinta pinga, minha perna esquerda dói, doem-me os dedos da mão, preciso dormir ao menos uma noite inteira, recuperar sei lá que forças para nenhuma luta amanhã. Só tédio, a monotonia, a rotina que me cabe desse olhar tudo lá fora daqui do lado de dentro da janela.
Estou mais só do que triste, sofro mais do que choro, sinto mais do que demonstro, demonstro tanto nada que não percebem em volta. Meu silêncio me esconde em cada palavra que uso muito bem para não revelar nada.
O que eu não daria por um abraço demorado, um colo onde repousar a cabeça, alguém com um silêncio tão grande a ponto de compartilhar meu grande silêncio.
Palavras me cansam. Pessoas me cansam. Amor me cansa. Sou feito de amor, pessoas e palavras. E me canso de mim. Não quero ser eu. Esse que sou que nada quer, nada tem, nada faz. Só espera. Quero um beijo apenas, antes do instante de minha grande morte. Um beijo que devora palavras, gera silêncios e une pessoas nesse mistério que, por falta de ciência, chamamos amor.
Mas quem me amará com um amor assim, tão desprovido de proposições?
Os cães e os gatos têm amor melhor que o meu, tanta gente medíocre é mais amada do que quero ser amado. E tanta gente que mente tem, mais do que eu, mais prazer, muito mais prazer em um minuto do que posso ter em um ano.
Sou o amigo que todos querem ter, mas não posso ter nenhum amigo que possa merecer. Eu sei ouvir, mas não sei quem me ouve, eu pareço nunca ter o que dizer.
Ser forte cansa. Ser idealista cansa. Ter esperança cansa. E cansa o tempo todo ter que manter um injustificável bom-humor. Conheço tanta gente, sei seus segredos, mas conhecer-me é fugir de meus segredos. Saber meus segredos nem quem me pariu. Puta que o pariu!
Eu só quero dormir essa noite! Quero o abraço da noite, o colo do silêncio, o beijo da madrugada... quero silêncio, só o silêncio, mais silêncio. Não pensar, não ser, não sentir.
Quero fingir, como todos, que estou feliz.
Não sei mentir, não sei fingir, quase mal consigo disfarçar. Mas me custa muito envergar essas máscaras indesejáveis.
Mais um cigarro. A quinta cerveja? Ou sexta, sei lá. A perna dói. Os dedos doem. Pensar dói. Ser dói. Sentir é que dói. Viver dói. Tudo dói. E tudo a doer a mim resta aceitar essa e qualquer dor. Toda a dor do mundo.
Seja como for, era melhor desistir de tudo, negar toda a dor, abandonar de vez tudo o que dizem que é vida, essa estrada tão mal fadada, esse último passo diante do abismo. Esse vôo no escuro, esse mergulho tão duro para dentro de si mesmo.
Baudelaire, Pessoa, Artaud, Rimbaud, tem um Pascal me atormentando os pensamentos. Cala-te, Schpenhauer! Não sou pessimista, a vida é que parece péssima. Deve ter um outro jeito de olhar, deve ter. Cala-te, Nietzsche! O niilismo já veio em nós embutido. Chico! A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Eu nunca vi um bispo com os olhos vermelhos. Vinícius! É chama, posto que não é imortal e não sei se enquanto dura é infinito. Pessoa, essas coisas lindas nunca existirão. O que me dói, dói tanto, e não é o que há no coração, esse cofre que não se pode fechar com o que há de cheio.

Melhor que eu fosse dormir
Dormindo, melhor que dormisse para sempre
Mais um dia o peso do amanhã
Se palavras me escapam e rompem silêncios
Fere muito mais o que tenho de calar
Melhor esquecer dessas mãos toda a destreza
Que as palavras soem em qualquer lugar
Não em mim, não de mim, não por mim
Melhor que não soem tão verdadeiras
E que não anunciem que não há nada
Melhor esquecer dessa alma sua força
Ou sua mera ilusão de poder
Melhor não ser, não ter, não fazer
Melhor perder esse olhar na madrugada
Num abandono em desertos incomensuráveis
Num vicejar de utopias macabras
Que anunciam que somos nada
Melhor que eu fosse morrer
Em qualquer lugar tão bom de dormir
O peso das palavras de mais um dia
É o que tenho, tudo o que tenho
Um amanhã de silêncios inescapáveis
Melhor calar essas mãos
Matar a verdade dessas palavras
E essa destreza da alma
E de sua força utópica
Mais um amanhã e seu peso
Todas as levezas dilaceradas
Melhor que eu fosse dormir...

segunda-feira, agosto 20, 2007

Agosto Setembro Outubro


Saudade de palavras que vêm lá de além do sol, saudade tanta, que temo entrar numa espécie de catástrofe psicológica. Pois é, tem algum silêncio que me incomoda, ou me deixa assim a sentir falta de algo para a vida parecer, às vezes, um pouco melhor. E nem sinto vontade de escrever aqui quando demora para ler um post que vem de lá. Mas vou tentar, com umas coisas que andava em minha cabeça por esses dias.
Andava atrás de uma letra de música, muito bem cantada por Mercedes Sosa, de quem já tive oportunidade de falar por aqui. Encontrei-a dias desses em uma pesquisa ou outra pela internet, num site com mais de oito mil letras. Eu ouvia a musica e não sabia o que dizia, embora soubesse de quem falava. O título da música é “A Victor”. E esse Victor é Victor Jara.
Todas essas coisas me levaram a algumas coincidências de data. Mas antes disso, há alguns domingos atrás, dia dos pais, lembrei do meu, que nasceu em 1933 e morreu em 1985, um dois meses antes de completar 51 anos. A última vez que o vi com vida foi no Hospital da Beneficência Portuguesa, eu minha mãe íamos visita-lo. Levamos um susto ao entrarmos no quarto no dia de sua cirurgia, ele não estava na cama e havia sangue no lençol. Quedamo-nos em silêncio alguns instantes e ele saiu do banheiro. Estava preparado para a cirurgia, o sangue era de uma espetada de agulha. Ele sentou-se na cama, e eu aos pés, observando seus pés inchados. Perguntei alguma coisa sobre o que seria aquilo. Disse que era por causa dos problemas nos rins. Ele tinha cálculos renais e mais um monte de problemas dos quais nem mais me lembro, foi tudo escrito no atestado de óbito. Não quis mais ver uma cópia, não sei onde está a minha. Depois disso, um silêncio imenso se interpôs entre nós. A única lembrança que tenho é de ter olhado profundamente em seus olhos tão azuis, um olhar que dispensou qualquer palavra, que disse tudo, sem que se tivesse que usar de qualquer palavras. Uma despedida, talvez, um adeus, um até breve. “Daddy's flown across the ocean”.
Ele não viu os netos que lhe dei. Eu fico imaginando como seria ele me ver pai, pai como ele, eu e ele, um filho e dois pais. Saudade dos mais belos blue eyes.
A canção, eis a letra aí embaixo. Coloquei uma tradução, ainda que não seja muito difícil. Sempre me impressionou mais a morte de Victor do que os perigos de sua vida. Líder da canção nova, nascido em 28/09/1932, um ano antes que meu pai e alguns quilômetros muito distante. Dando uma olhada em sua biografia, cheguei a uma outra data interessante, 11 de setembro. No caso o ano é 1973, golpe militar no Chile. Morto Allende, sobe ao poder o general Augusto Pinochet, que era da confiança de Allende, nomeado por ele. Mas que mudou de lado. E no dia 16 de setembro daquele mesmo ano, os militares colocavam o povo no Santiago Stadium (por que “Stadium”?) e entre eles, Victor Jara, que animava a população estarrecida com suas canções e seu violão. Um soldado o mandou parar de cantar, ele não obedeceu, cortou-lhe as mãos. Entre gritos de dor, entremeava versos de suas canções de protesto. Calou-se com um tiro fatal na cabeça. Como negar que essa canção na voz de Mercedes Sosa me emociona?

No puede borrarse el canto
con sangre del buen cantor
después que ha silbado el aire
los tonos de su canción.

Los pájaros llevan notas
a casa del trovador;
tendrán que matar el viento
que dice lucha y amor.

Tendrán que callar el río,
tendrán que secar el mar
que inspiran y dan al hombre
motivos para cantar.

No puede borrarse el canto
con sangre del buen cantor,
tendrán que matar el viento
que dice lucha y amor.

Tendrán que callar el río,
tendrán que secar el mar
que inspiran y dan al hombre
motivos para cantar.


Tendrán que parar la lluvia,
tendrán que apagar el sol,
tendrán que matar el canto
para que olviden tu voz.

Não pode apagar-se o canto
com sangue do bom cantor
depois que assobiou o ar
os tons de sua canção.

Os pássaros levam notas
a casa do trovador;
terão que matar o vento
que diz luta e amor.

Terão que calar o rio,
terão que secar o mar
que inspiram e dão ao homem
motivos para cantar.

Não pode apagar-se o canto
com sangue do bom cantor,
terão que matar o vento
que diz luta e amor.

Terão que calar o rio,
terão que secar o mar
que inspiram e dão ao homem
motivos para cantar.

Terão que parar a chuva,
terão que apagar o sol,
terão que matar o canto
para que esqueçam tua voz.


Naquele ano, o de 1973, eram iniciadas as obras das Torres Gêmeas em Manhattan. Aquelas mesmas que em 11 de setembro de 2001 foram abatidas por dois aviões num atentado terrorista. No dia anterior, eu trabalhava em Campinas, atendendo mutuários de minha companhia. E na manhã do dia 11 fomos dispensados do trabalho porque o prefeito da cidade tinha sido assassinado. Voltei ao hotel e liguei a televisão. Ali estava uma das torres queimando e os repórteres não sabiam nada, se era só um incêndio ou o que, até que vi, na tela da tv um avião rasgando o espaço aéreo que estava interditado, meus olhos grudaram-se na tela e estarrecido, vi o avião chocar-se.
Estava acabando o mundo? Liguei para casa, para saber se estavam todos bem, minha esposa e meus filhos. Podia ser uma operação global, podia ser a terceira guerra mundial.
Mas o 11 de setembro que mais me interessa agora é o próximo. É o aniversário dela. Minha namorada que vive tão longe de mim. Mas depois falo disso.

Faltou agosto. Tirando que nunca consigo esquecer as duas bombas atômicas atiradas sobre o Japão, em Hiroshima em 06/08 e em Nagasaki em 09/08/1945. as fotos dos cogumelos que eu via nos livros de história sempre me encheram de medo. Um dia destruímos tudo, para descobrir que não construímos nada.
Mas agosto tem uma outra data, o dia 05, mais precisamente 05/08/1962, eu já tinha nascido há uns seis meses, e ela morria aos 36 anos em Los Angeles. Andei olhando aqui pela internet muitas fotos dela, incrivelmente linda, incrivelmente mais maravilhosa do que podemos imaginar que fosse. Seu nome: Norma Jean Baker, nascida em 01/06/1926, sete anos antes de meu pai, seis antes de Victor Jara, mais conhecida dos menos aficionados como Marilyn Monroe. Vi também alguns vídeos postados no Youtube. E me deu a estranha impressão de que ela gostava mesmo de sorrir, algo denunciou isso, porque ela sorria com muita facilidade. Encontrada morta e nua, dizem que foi overdose. Dizem que não. Saudade de quem não conheci, dela e de Victor, duas belezas cada qual a seu modo.
Podia agora listar muita gente que se foi e muitas datas. Bastam-me agora esses três, Pai, aos 50; Victor, aos 40; Marilyn, aos 36 anos.
Não sei como o mundo sobrevive depois de perder tanta beleza.

sexta-feira, agosto 10, 2007

O efeito da causa

Precisamos de tempo para pensar. E, pensando, gastamos nosso tempo. Uma decisão se avizinha, eis que imediatamente precisamos de tempo para pensar sobre o que decidir. Pensar e decidir, no mínimo, na melhor das hipóteses, sobre duas coisas, duas alternativas. Geralmente um par de opostos, sim ou não, vou ou não vou, faço ou não faço, isto ou aquilo, sempre uma afirmação contraposta a uma negação ou vice-versa. Decidir implica pensar.
Aproveito para puxar a sardinha para a minha polêmica preferida. Precisamos de tempo para pensar. No entanto, não precisamos de tempo para sentir. Precisaríamos de tempo para pensar sobre o que sentimos? Complicado esse negócio de abrir mão do pensamento poético e ver-se emaranhado em reflexões filosóficas. Sempre esse dilema.
Os primeiros resultados daquilo que fiz afirmando que não queria fazer começam a aparecer. Descubro, atônito, que não tenho certeza se pensava mais que sentia ou o contrário. E desconfio que estava freqüentemente pensando sobre o que sentia. O pior é que, achei que não precisava de tempo para isso. Fui lá fazendo, dando vazão a uma relação de causa e efeito que não levava em conta até aqui. Aparecendo os efeitos, eis o absurdo, eu voltando a pensar sobre o que sinto.
E agora ela também está pensando e gastando seu tempo. Pensando no relacionamento, provavelmente em mim. E eu tendo que pensar se isto é bom ou ruim, se fico satisfeito com essa situação, por achar que antes ela não refletia e agora, depois de meu ato (impensado?), reflete. Vai colocar nos pratos da balança o peso e a leveza desse relacionamento.
Estou preocupado com tudo que vem por aí, no que isso tudo vai dar. E tentando evitar esse fiozinho de esperança que desponta, pois a esperança é feita sempre para gente tentar adivinhar o futuro de acordo com nossas expectativas.
Melhor seria que não fosse assim. Mas quem disse que as coisas perguntam para gente como é que elas devem ser? Nós é que devemos fazer as coisas, não é isto o que parece? Voltamos à necessidade de decisão. Que nos leva ao seu fim mais importante, que é o imperativo da escolha. E escolher não escolher, antes de ser uma fuga, algo que elimina a escolha, nada mais é do que uma escolha.
Amo aquela mulher. E, pensando sobre o que sentia, escolhi decidir não mais esperar por ela.
Lá se vão minhas noites de sono com esse raciocínio circular. Isso ainda vai me deixar tonto.
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”. É, Pascal não ajuda muito. Melhor voltar aos poetas.

quinta-feira, agosto 09, 2007

Necessário

Agora que fiz não sei mais se penso ou não penso mais no que fiz. Quanto mais penso, mais me arrependo, e depois me arrependo de ter me arrependido. E arrepender-se do arrependimento é manter o que se fez. E o que fiz fica como está. Feito
Fiz o que não queria e fazer o que não se quer é querer o que não se faz. E muita coisa do que a gente faz, perde-se embrenhada no tempo. E no tempo embrenhada a coisa feita parece não poder ser desfeita, não volta atrás.
Minhas palavras voaram no vento de um instante fugaz. Minhas palavras juntadas uma vez como nunca antes juntadas, para dizer o que não se quer, para não querer o que se diz. Minhas palavras de mim dissidentes, rebeladas de meus anseios, traidoras de minhas vontades, esquecidas de meus mais caros desejos. Levaram num sopro minha alma, e eu fiquei casca, emprenhado desse vazio, entranhado de minhas mais absolutas incertezas, eu casca um vazio tão fundo por dentro e tanto silêncio fora, o que foi que eu fiz?
Não quis e fiz. Era necessário. E na insuportável lógica, o que é necessário sua negação implica uma contradição. E não cabe no coração a desnecessidade do que é ilógico, mesmo que não possa haver lógica alguma na necessidade de ter que fazer sempre o que não se quer.
O amor não é lógico. Não é matemático. Não pode ser expresso por uma equação e nem por nenhum tipo de proposição. Não se presta a deixar-se revelar por meio de elucubrações filosóficas. Quando muito, insinua-se entre um verso e outro da mais displicente e distraída linguagem poética. O amor não é um objeto, nem coisa subjetiva, tampouco é abstração. Talvez fosse uma força da natureza, mas nem isso é, talvez não possamos saber, como algo que confere a toda natureza sua força. Palavras para nos aproximarmos dele, dele nos afastam, abismo, deserto, desolação, solidão, imensidão, um vazio tão pleno de si, tão distante de nossas pobres e inúteis palavras.
Agora há o silêncio de todas as palavras apartadas de mim, um silêncio que é, antes de tudo, triste. Feito de escombros e sombras e de ausências de amanhãs. E de dolorosos esquecimentos, e falsos, que tentam nos arrancar do que somos cada momento do que vivemos. Deixa no lugar apenas uma ferida aberta. Uma luta inglória numa batalha incerta.
A morte nunca me levou ninguém. Mas a vida me toma cada um. Perdidas lembranças, a consciência de estar fadado a viver de esquecimentos.
Meus olhos esquecerão rostos e sorrisos, minha pele não se lembrará de nenhum toque, meus lábios serão secos de todos os beijos, meus braços sem abraços, minhas mãos sem o poder da carícia, meu corpo privado de prazeres, o desejo apenas uma lembrança desvanecida. Nenhum grito na noite, lágrimas apagarão todos os nomes e não saber mais da saudade apagará todos os sinais.
Os lugares marcados sempre trarão de volta tudo o que perdi. Os momentos me prenderão no indesejável passado. O futuro deverá ser um nada imerso no tempo, dissipando-se na atenção incontrolável ao passar das horas.
O apartamento, meu laboratório de alquimia do que vou ou não vou ser, meu túmulo de silêncio e solidão, um bunker que me guarda o coração, onde vivo por pura teimosia, onde espero na absurda espera que um dia a realidade não seja verdade, até cair desse sonho em todos os abismos, para percorrer em vão todos os desertos.
Deixem-me todos! Nunca me viram, não me conheceram. Não ouviram sequer o que havia entre as palavras. Nunca me notaram as mãos, sempre escravas da minha imaginação. Nunca souberam decifrar meu brilho nos olhos, nunca ousaram olhar na direção de meus olhares, para não se perderem em mundos fantásticos, nunca foram capazes de compartilhar meu silêncio. Deixem-me todos! Nunca irão aonde vou.
Eu estou bem não estando nada bem.
Eu caminho por entre sombras, por entre troncos, pisando folhas mortas. Eu saio de todas as casas e desconheço portas, entro pelos olhos de quem não me olha e desvendo a alma. E sei cada palavra antes que saia da boca de quem me fala. sinto a dor antes que sintam quem perto de mim sofre.
No entanto, são meus, só meus, meus olhares e palavras, meus sentimentos do jeito que são. E meu sofrimento que se aquieta constantemente.
Só meus são meus mais impossíveis sonhos, meu silêncio e minha escuridão, a madrugada que me acolhe e o vazio que me recolhe. Meus são todos os pensamentos.
Estou só. E só sou somente sentimentos.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Odeio o amor à sabedoria

A realidade é feita assim, dessas imagens ilusórias. Ou talvez as ilusões se façam de realidades momentâneas, fugidias. Lucidez é a maior das ilusões. E sabedoria, a mais vã das aspirações humanas.
Por isso é que prefiro a linguagem poética, muito mais que a filosófica. Fora aquela, somente a linguagem matemática, que para mim não deixa de ser também poética.
Quando foi que sumiu da cultura humana o matrimônio? Há dez anos, vinte, trinta ou cinqüenta? E a virgindade, começou a sucumbir nos anos 60 ou 70, mas quando é que teve o golpe final? Certo é que há pessoas ainda hoje em dia que se casam, assumindo o matrimônio indissolúvel. E certo também é que há quem ainda guarde a virgindade, talvez para um momento sagrado, para a realização de algo que ainda chamam noite de núpcias, precedida de uma cerimônia que envolve smokings alugados, belos vestidos, véu e grinalda. Com certeza, não podemos precisar quando foi que tudo isso perdeu o sentido e o significado que outrora ostentavam.
É muito reconfortante ver que as pessoas hoje são livres daqueles velhos preconceitos e tabus, todos desnecessários, diga-se de passagem. Livres dos grilhões dos afetos, dos sentimentos exclusivos por uma única pessoa, daquelas tolas esperanças de um amor eterno, algo que soe bem com um “até que a morte os separe”.
E não é difícil entender como tudo aquilo atrapalhava o uso do corpo na obtenção do prazer. De um lado a sexualidade aflorando, de outro o imperativo da virgindade, senão da castidade e da pureza. Sexo era feio e sujo, mas se consentido por um ritual e praticado com fins da reprodução da espécie humana, justificava-se, tornava-se belo e puro, aceitável, plenamente aceitável. E depois, a união entre duas pessoas tinha que ser meticulosamente pensada, afinal era com essa pessoa que se viveria até a morte os separar.
A vida era chata, eu sei, era preciso conter os desejos, o prazer era justificável somente para povoar a terra, segundo o mais divino dos planos.
Então foi ótimo, e muito, livrarmo-nos de tal empecilho. Estamos no século vinte e um e não podemos viver ainda com estruturas nascidas lá tão longe, bem no meio da idade média. Somos bem mais sábios que nossos ancestrais.
Só que eu gostaria que fôssemos também mais poéticos. Nada indica que a queda desses preconceitos e tabus implicasse na eliminação pura e simples do amor. Sim, os afetos, aquele amor que não se sabe se é para sempre, mas que é tão bom enquanto dura. Mesmo porque temos a oportunidade de outra tentativa, sem o peso na consciência de viver permanentemente em pecado.
Creio que os libertinos amavam e lutavam contra a repressão ao corpo, o repúdio vigente ao prazer e o represamento desnecessário do desejo. Não sei se por eles, ou por quem os seguiu durante tanto tempo, libertamo-nos desse inferno. Mas somos hoje o oposto deles, completamente, libertos dos preconceitos e tabus, no mais pleno gozo dos nossos direitos ao prazer e livres para o desejo, o que fizemos foi somente renegar o amor, ou o simples afeto. Para conquistar essa liberdade tão corpórea, por assim dizer, tivemos que reprimir o amor.
Pois é, ninguém mais ama, só deseja, só quer, só goza. E quem não o faz é logo tachado de romântico, como se esse alegado romantismo fosse uma praga, uma doença contagiosa, um defeito de caráter ou o pecado da vez.
Fui muitas vezes em minha vida acusado de romantismo, sempre tachado de incorrigível romântico. Esse rótulo e esse rotular esconde um medo presumidamente tão sábio de não encarar os sentimentos que não conseguimos varrer de nossa vida.
Na verdade, não sei se sou de fato romântico. Não sei se posso ser classificado dessa forma, mesmo que o seja. Sei apenas que amo e amo não de outra forma, mas dessa única forma que sei amar. Há idealização do ser amado? Há um sentir-se incompleto? Há o desejo de se unir para sentir-se pleno? Sim. Se todas essas e outras características mais são o que definem o romantismo e o romântico, aceito a pecha, sim, sou romântico.
Mas há que se falar ainda das opiniões filosoficamente fundamentadas. Dessas, aceito várias coisas, como o caráter indissolúvel do matrimônio, que prendeu por muito tempo e a contragosto muitos casais, a sacralização absurda e anacrônica da virgindade e tudo aquilo que pertence ao mais comum dos relacionamentos, como o sentimento de posse, a perda da liberdade, o ciúme e por aí vai.
Então devo acreditar que o sábio filósofo não se apaixona, não ama, não se entrega ao amor. Tudo para ele é puramente, estritamente racional.
Acontece que estou cansado mesmo deste post, cansado de minha mente racional, cansado de prestar atenção à sabedoria vigente, que sempre me dita coisas sobre os meus mais caros sentimentos.
Amo. Amo e espero. Amo, e a pessoa amada é única. Amo e sou romântico porra nenhuma. Somente sei amar e me sinto bem assim. Excluído dessas libertinagens de butique, eu amo como sei amar e não de outro modo. E nenhum pensador é capaz de me ensinar. Amo e não tenho medo do amor. E cada vez mais odeio a sabedoria.