terça-feira, agosto 21, 2007

Melhor que eu fosse dormir

Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver, a espera de viver ao lado teu, por toda a minha vida.” (Jobim/Vinícius)

Não gosto muito quando brigo com os papéis. Os desenhos estão agora encerrados em suas pastas, amontoados. Calados, todos os papéis são só papéis. E não podem virar outra coisa, algo com forma e cor, com poesia. As canetas e os lápis em seus potes estão de castigo no armário, trancados. A mesa não está posta, está limpa, o chão está limpo, tudo limpo, está limpo o meu coração.
Estou assolado pela rotina. As horas do dia me esmagam. Tirei os livros da minha frente. Para saber quem ou o que sou eu em tudo isso, poemas e desenhos, eu a ver-me em contos fantásticos e em inimagináveis romances. Silêncio.
Todos os meus fantasmas aparecem no silêncio.
Nem tanto. Minha tristeza precisa sempre de um fundo musical. E, pelo que parece, nada em língua estrangeira, por ora, algo na minha língua, de preferência.
Os discos de vinil. Depois da arrumação do apartamento, quiseram os discos de vinil falar comigo. É tristeza à moda antiga, de um tempo em que havia amigos que ouviam sobre suas tristezas, aliás, que viam sua tristeza, de um tempo de conversas téte-a-téte, sem as absurdas intermediações de orkut, msn, e-mail, torpedos, e nem telefone. De um tempo que não se faziam distâncias.
Os discos de vinil. Maldição! Chamei para a conversa Chico, Bethânia, Vinícius, Toquinho, Maria Creuza, Marília Medalha, Nana Caymmi, Elis Regina. Só para começar.
Eu precisava dar um pulo no mercado. Além da pinga que já havia em casa, umas latas de cerveja e um Martini para colocar ao lado da vodka e enfeitar a minha tão negligenciada geladeira. Tenho prometida e garantida uma semana de nostalgia, de uma melancolia que serve como uma luva para me quebrar o silêncio. Ou para aquietar-me os pensamentos. Pensar cansa, esgota. Tudo isso para superar o silêncio dos papéis e a falta de imaginação, minha criatividade moribunda dentro de uma rotina tão sem sentido, todo dia, as mesmas coisas. E sou ninguém com essa falta de imaginação que me chega às mãos. Se minhas mãos se aquietam e não querem fazer nada, não tem jeito.
O que seria isso eu não sei. Essa quase certeza de um não pertencimento a esse espaço e a esse tempo, esse espaço que me limita, esse tempo que não me contém. Um não pertencimento a um mundo em que as pessoas usam cada vez mais as palavras para esconder as verdades, essa razão-vitrine a ocultar as mais belas emoções que tanto aprendi a apreciar no ser humano.
Queria agora alguém que soubesse suspirar comigo, por uma lembrança boa, uma história engraçada, uma sensação de bem-estar, e que chorasse por nada e por tudo, quando necessário. Alguém que entendesse de perda e de saudade. Que se emocionasse com o barulho da chuva, com um por-de-sol, com uma lua alta e branca num céu salpicado de estrelas, que ficasse boquiaberto diante desses mistérios todos do universo.
Começou tudo ontem, talvez, com a saudade do azul dos olhos de meu pai, com a brancura do sorriso de Marilyn, com a incompreensível força e coragem de um poeta de verdade chamado Victor, que não padecia de tristezas virtuais, mas sim sofria as tristezas de fato, de um tempo duro e violento, em que tinha que ser inevitável o medo de que a força e a coragem lhe custasse a vida. Como custou.
Eu lhes pergunto, então: quanto custa hoje a nossa vida?
Comecei com Chico cantando com Bethânia: “deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água.” E Elis, “Dois pra lá, dois pra cá” de João Bosco e Aldir Blanc.
Começou outra bagunça em minha mesa, três latas de cerveja vazias, uma cheia, um copinho de pinga a mais, os discos, cinzeiro com cigarro queimando, e eu tendo que dizer a mim mesmo coisas que não se diz, saudades tantas de minhas tristezas de outrora, que será de mim com essas tolas tristezas de agora?
Deixo os discos por ora, arrumados e separados para um outro momento. O domingo que acabou ontem me deu de presente uma semana completa, passei pela segunda-feira e vivo ainda, preciso saber se chego até sexta-feira, para mais um final de semana em que o telefone não toca, o interfone não grita, ninguém me chama, ninguém me sente ausente, ninguém me quer.
Mais um cigarro, a quarta cerveja que se acaba, a quinta pinga, minha perna esquerda dói, doem-me os dedos da mão, preciso dormir ao menos uma noite inteira, recuperar sei lá que forças para nenhuma luta amanhã. Só tédio, a monotonia, a rotina que me cabe desse olhar tudo lá fora daqui do lado de dentro da janela.
Estou mais só do que triste, sofro mais do que choro, sinto mais do que demonstro, demonstro tanto nada que não percebem em volta. Meu silêncio me esconde em cada palavra que uso muito bem para não revelar nada.
O que eu não daria por um abraço demorado, um colo onde repousar a cabeça, alguém com um silêncio tão grande a ponto de compartilhar meu grande silêncio.
Palavras me cansam. Pessoas me cansam. Amor me cansa. Sou feito de amor, pessoas e palavras. E me canso de mim. Não quero ser eu. Esse que sou que nada quer, nada tem, nada faz. Só espera. Quero um beijo apenas, antes do instante de minha grande morte. Um beijo que devora palavras, gera silêncios e une pessoas nesse mistério que, por falta de ciência, chamamos amor.
Mas quem me amará com um amor assim, tão desprovido de proposições?
Os cães e os gatos têm amor melhor que o meu, tanta gente medíocre é mais amada do que quero ser amado. E tanta gente que mente tem, mais do que eu, mais prazer, muito mais prazer em um minuto do que posso ter em um ano.
Sou o amigo que todos querem ter, mas não posso ter nenhum amigo que possa merecer. Eu sei ouvir, mas não sei quem me ouve, eu pareço nunca ter o que dizer.
Ser forte cansa. Ser idealista cansa. Ter esperança cansa. E cansa o tempo todo ter que manter um injustificável bom-humor. Conheço tanta gente, sei seus segredos, mas conhecer-me é fugir de meus segredos. Saber meus segredos nem quem me pariu. Puta que o pariu!
Eu só quero dormir essa noite! Quero o abraço da noite, o colo do silêncio, o beijo da madrugada... quero silêncio, só o silêncio, mais silêncio. Não pensar, não ser, não sentir.
Quero fingir, como todos, que estou feliz.
Não sei mentir, não sei fingir, quase mal consigo disfarçar. Mas me custa muito envergar essas máscaras indesejáveis.
Mais um cigarro. A quinta cerveja? Ou sexta, sei lá. A perna dói. Os dedos doem. Pensar dói. Ser dói. Sentir é que dói. Viver dói. Tudo dói. E tudo a doer a mim resta aceitar essa e qualquer dor. Toda a dor do mundo.
Seja como for, era melhor desistir de tudo, negar toda a dor, abandonar de vez tudo o que dizem que é vida, essa estrada tão mal fadada, esse último passo diante do abismo. Esse vôo no escuro, esse mergulho tão duro para dentro de si mesmo.
Baudelaire, Pessoa, Artaud, Rimbaud, tem um Pascal me atormentando os pensamentos. Cala-te, Schpenhauer! Não sou pessimista, a vida é que parece péssima. Deve ter um outro jeito de olhar, deve ter. Cala-te, Nietzsche! O niilismo já veio em nós embutido. Chico! A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Eu nunca vi um bispo com os olhos vermelhos. Vinícius! É chama, posto que não é imortal e não sei se enquanto dura é infinito. Pessoa, essas coisas lindas nunca existirão. O que me dói, dói tanto, e não é o que há no coração, esse cofre que não se pode fechar com o que há de cheio.

Melhor que eu fosse dormir
Dormindo, melhor que dormisse para sempre
Mais um dia o peso do amanhã
Se palavras me escapam e rompem silêncios
Fere muito mais o que tenho de calar
Melhor esquecer dessas mãos toda a destreza
Que as palavras soem em qualquer lugar
Não em mim, não de mim, não por mim
Melhor que não soem tão verdadeiras
E que não anunciem que não há nada
Melhor esquecer dessa alma sua força
Ou sua mera ilusão de poder
Melhor não ser, não ter, não fazer
Melhor perder esse olhar na madrugada
Num abandono em desertos incomensuráveis
Num vicejar de utopias macabras
Que anunciam que somos nada
Melhor que eu fosse morrer
Em qualquer lugar tão bom de dormir
O peso das palavras de mais um dia
É o que tenho, tudo o que tenho
Um amanhã de silêncios inescapáveis
Melhor calar essas mãos
Matar a verdade dessas palavras
E essa destreza da alma
E de sua força utópica
Mais um amanhã e seu peso
Todas as levezas dilaceradas
Melhor que eu fosse dormir...

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