terça-feira, novembro 01, 2005

Está feito


Está feito tudo que se desfez e que não se pôde mais refazer. Está perfeito o imperfeito de todas as coisas cujas perfeições muito pouco importam. Está terminado o que não se começou e se desistiu de fazer. O que agora é, é o que sempre seria. Ou outra coisa se insinuaria com um gesto ou um passo diferente? Ou outra realidade se faria simplesmente por se querer? Está dito tudo o que não se ouviu e esquecido tudo o que nem se ousou pronunciar. Está sepultado tudo o que ainda nem se deu ao luxo de ao menos morrer. E o que não nasceu partiu para sempre, para dentro da imensidão vazia do universo. Distante, muito distante.
Sou devoto do tempo, único deus que reconheço. Sou filho do silêncio e da solidão e sempre soube disso. Mãe que me afasta do resto da humanidade e pai que nega-me o poder das palavras.
Está certa mais essa incerteza de se ter feito o certo, ou errado muito sem querer. É verdade toda essa ilusão que agora dá lugar ao torpor de quem olha de frente para a luz do sol, cegueira e desorientação, é tudo tão real como todos os sonhos ruins de tantas noites.
Está dado mais um passo que me levará a lugar nenhum, quando me trouxer de onde nem me levou. E está posto mais um caminho que me apresenta todas as possíveis distâncias. E eu as conheço todas, eu já fui ao ponto final de todas as fugas possíveis e imagináveis.
Está tudo triste de um jeito diferente. Tudo mais vazio de coisas das quais nem mesmo precisava. Resta-me ser acalentado então pela solidão e pelo silêncio. Pai e mãe.
Estão perdidas todas as lembranças com exatamente aquele sabor, ou aquele cheiro, ou talvez ainda com aquela sensação de querer viver de novo os momentos por elas trazidos. Tudo paira estranhamente num jardim suspenso no passado, como flores sem água a fenecer numa questão de tempo.
Sou amigo de todas as minhas dores e fiel a todas as minhas lágrimas. Sou consciente de meus mais terríveis temores, talvez não de um único, o maior deles, que sei que existe mas não sei qual é. Sou cúmplice de todas as minhas palavras. E escravo de meu silêncio.
Eu acordo ao me ver dormindo na cama. Eu não sei se vivo ao me ver morto andando à esmo por estranhas estradas. Eu estou pertido aqui tão perto de onde vivo, pois não sei se vivo.
Está perdido tudo aquilo que nem se viu, que não apareceu ou não existiu. Há uma vaga noção de desperdício esse acordar mais uma outra vez em um outro amanhecer. Esse dia, mais um dia, a arrastar-se modorrento a entranhar-se nas profundezas do tempo. Tempo que é tudo o que não volta, que não se refaz, que não se toma, que não se tem, que nos devora avidamente.
Está pensado o pensamento que não se manifestou, está dito o que não virou palavra. Está no olhar que nada vê. Está no grito que não escapa, na lágrima que não é vertida, está na felicidade que não vem, na alegria que não se tem, no abraço que não me contém.
Está tirado tudo o que não se deu.
Resta andar a refazer caminhos que guardam lembranças, na esperança de encontrar restos de tudo aquilo que não fomos, não tivemos e não fizemos. Resta essa angústia por um momento no porvir, que engula tudo o que passou e me faça olhar para frente, para não saber enfim o que estou vendo.
Resta voar ao sabor do vento.
Não há refúgio mais para meus subterfúrgios, não há como esconder tudo o que vivi mostrando tanto para ninguém ver de verdade. Não há mais a esperança de algo que traga juventude ou vontade de viver. Vou cumprir meu tempo na terra como quem nem quisera mesmo ter vindo.
Há ruínas imensas espalhadas em volta de tudo aquilo que não construí. Há um resto devastado de mim mesmo que não vai ser mais cultivado, uma terra árida banhada em sangue. Antigas batalhas não travadas, guerras inteiras em que se dormia ao lado da morte. O vazio de olhar em volta e não saber para onde ir.
A solidão é um deserto. Sou filho do deserto.
E meu grito já escapou na imensidão:
Eu saio de dentro do imenso vazio que contém o mundo
E trago dentro de mim toda a consciência do nada
Meu murmúrio é nada mais que um ranger de dentes
É sair de uma vagina. É entrar numa latrina
É rastejar por dentro do esgoto fugindo
Buscar o grito último para quebrar o silêncio
Lançar-se no abismo infinito de um outro espelho
Sentir a luz dos olhos gotejar sangue
Eu saio liquefeito em meu próprio vômito
Eu me desfaço em cada absurdo passo
Eu não volto, eu só vou
Eu vôo
E sumo

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