domingo, novembro 06, 2005

Começo e fim


Vomitei o que não comi, mas saiu o que bebi. Tudo sempre assim acontecendo a despeito de eu existir. Eu nunca estou na cena em que apareço. Sou um figurante de minha vida inteira. Eu não sou personagem. Meu destino desenrola-se a alheio ao fato de eu querer existir ou não.
Vomitei o que não digeri. E mais uma vez perdi o senso sobre as coisas acontecerem ao lado, bem no momento em que não há a menor atenção. Bem no momento em que estou vivendo em standy by, bateria reserva, ávido por migalhas, feliz por estar bem no local em que vai cair o grande raio. Bem no momento em que tenho um relance de alienação, bem no momento em que deveria estar mais prestando atenção.
Eu simplesmente não posso encontrar as respostas das perguntas que não fiz. Eu não posso pensar sobre aquilo que não existe, amor, tão simplesmente impossível, tão facilmente digerível, que saiu no meu vômito no meio da noite. Eu posso conceber a perenidade de tais sentimentos, porque para mim as coisas deviam ser firmes como as rochas e quase eternas como as árvores milenares. Árvores e montanhas, queria que minha solidão pudesse se passar entre árvores e montanhas. Então eu morreria em silêncio e em paz, seria sepultado na relva, naturalmente, e seria eterno como as rochas. Ou quase eterno.
Mas tudo é perene e estou cansado de sentir saudade da próxima vez. Cansado...
Por que eu sou tão infeliz numa noite de felicidade? Por que ao achar o meu lugar eu mais me perco? Por que ao me perder eu tenho dúvida de ter ou não um lugar? Por que a humanidade é pouco? Por que a realidade é tão inútil? Eu tenho sonhos de que não me lembro e fujo por caminhos que não conheço. E não volto ao começo, estou sempre no mesmo lugar sem ser o mesmo. Eu me desfaço no disfarce. Eu me decomponho no que penso e não me reconstruo. Eu me escondo no que falo. Eu simplesmente desapareço no silêncio insuportável.
Um beijo numa noite que acaba me faz pensar na noite que nunca começa, talvez a última tão desejada, em que o amanhecer não venha mais me presentear com a angústia de estar vivo. E o péssimo da vida é não saber a próxima vez. Todo mundo tem saudade do passado, eu também. Mas a saudade que mais me mata é a saudade do futuro, da próxima vez, tão improvável de ser, tão sem chances de acontecer. Eu daria a vida inteira para eternizar um momento, e daria duas encarnações para eternizar uma noite. Mas não tenho a vida nem os seus momentos, eu não tenho tempo, eu não tenho nada que possa dar. E nada posso pedir.
E eu entrei no labirinto dessa linguagem cifrada para esconder de mim mesmo a verdade que eu sei que quer se proclamar. Meu dilema posto toda hora de cada dia que passa sem que nada se apresente de novo ou renovador. O dilema de saber a verdade que tenho que calar.
Cada vez mais a vida é algo muito mais estranho e desconhecido. E é o intervalo que me cabe do tempo posto pela eternidade, que me torna desconhecido de mim mesmo e estranho, um estranho diante do espelho. Não sei quem sou diante de todos os espelhos.
Eu estou a procura das coisas simples no meio de toda complicação que as escondem. As coisas simples não existem. As coisas simples são a gênese das coisas complicadas.
A vida. A morte. O amor. A solidão. A felicidade existir ou não.
A angústia de viver, o medo de sonhar, a dúvida ameaçadora, a possibilidade de a vida acabar e não haver outra. A possibilidade de haver outra e a dúvida não se solucionar.
Eu sei que estou só no grande deserto. Mas tenho que procurar por água. Eu sei que a terrível tempestade a todos afeta, embora me afete de modo particular. Eu sei que estou perdido dentro da noite mais escura, vagando madrugadas adentro, sempre indo embora dos lugares e das situações em que quero estar, por um terrível sentimento de não pertencer a esses lugares e não atuar nessas situações. Eu sei de um certo modo que há um algo em mim de não pertencer a esse mundo que é pouco para mim, ou talvez eu seja pouco para ele. Então o que é pouco pode-se jogar fora. E eu me joguei fora desse mundo várias vezes.
Assustado. Estou assustado com meus pensamentos sempre digressivos, estou atordoado por causa dessa visão estonteante da realidade, exata, ela mesma, sem tirar nem por, com tudo o que tem de necessário, nada além disso. Nada além.
E eu gosto de todos os momentos da vida exatamente quando eles acabam, os bons e os ruins. Sim. Também os bons. Quando eles acabam não preciso sentir a angústia que sempre é não poder vivê-los nunca mais.
Eu já fui profeta da esperança. Hoje sou testemunha de meu próprio desespero.
Eu faço planos de não sentir e sinto tanto não sentí-los que acabo sentindo o que não queria sentir.
Eu não quero amar. Eu não quero sonhar. Eu não quero a ilusão que a realidade impõe para esconder seu rosto maldito. Eu quero aprender todo o silêncio que tanto cultuo. Eu quero experimentar toda a solidão que me é possível, e trancar todas as portas e cerrar todas as janelas e existir como existe o cume da montanha mais inexplorada e o meio da floresta impenetrável.
Quero ver através dos rostos, ouvir além das palavras, compreender além dos pensamentos. Quero sentir a dor de viver única e intransferível. Quero empunhar a espada cansada na batalha derradeira e olhar ao lado e não ver você, porque quero você viva.
Ser sepultado na relva, naturalmente, entre "árvores e esquecimentos e ausências de amanhãs", quero que apaguem meu nome de todas as lembranças e que quando quiserem reverenciar alguma memória que seja minha, respirem o ar da montanha, do alto o vôo infinito que me levou ao nada trará palavras ao vento, histórias de antanho, palavras trazidas pelo vento que nunca foram ditas, mas que o silêncio por elas gerado disse tudo talvez mais do que se diria, sobre uma alma que não é desse mundo e nem desse tempo, que perdeu suas asas nas batalhas da vida e teve que morrer para voar outra vez.
Quem quiser reverenciar minha memória que me esqueça e não mais pronuncie meu nome. Para eu não sentir a tentação de voltar para esse mundo a que não pertenço, muito antes do tempo em que deveria ter vindo. De novo.
Eu me faço ávore. Eu vivo na montanha. Estou no ventre da terra. Nas asas do tempo.
Vôo ainda mais uma vez.
E despareço.
É o começo.
Ou outro fim.

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