terça-feira, abril 03, 2007

E-mail a uma jovem poeta

Porque, no fundo, todos sabemos desenhar e escrever. Basta descobrirmos quando é que esquecemos.
(íntegra de um e-mail a uma amiga, que me pediu para dizer o que acha de uns poemas que escreveu)

Julie

Prepare-se para ler muito! Mas muito mesmo!!!
Já faz dois meses que completei 45 anos de idade, com aquela festinha na Gruta, que contou com sua honrosa presença. E devo dizer, também, que você foi a única que levou presente. Aliás, do que me desejou naquela “conchinha” surpresa, que eu não consegui abrir, posso dizer que já me aconteceu tudo nesses dois meses que se passaram, fora o que já vinha acontecendo antes.
E não reclame do tempo que levei para lhe escrever estas linhas, são só dois meses, ou sessenta dias, como queira, tempo suficientemente curto para um desocupado como eu, tanto livre das mazelas e vaidades acadêmicas. No começo do ano que vem, você vai entender o que estou dizendo, se bem que você tem TCC para fazer, o que dá a possibilidade de aproveitar o mesmo tema para um mestrado. De minha parte, estou apressadíssimo. Meu mestrado será daqui uns dois anos, 2009, portanto. E doutorado só depois de mais três anos, lá pelo ano de 2012, ou 2013 (um belo número, aliás!). Não vou esconder que tenho lido mais do que na graduação, mas vou lhe poupar da lista dos títulos, talvez não, li quatro livros de Cortázar, três de Voltaire, um do Michel Onfray, três de André Comte-Sponville (iniciei hoje a leitura do quarto), um de Camus, um de Umberto Eco, um de Carl Sagan e um de Van Gogh. Na mira para próximas leituras estão Graciliano Ramos, outro de Umberto Eco, um de José Saramago, além de Baudelaire, Walt Whithman e não sei mais o que. Nem vislumbre de tema para um projeto de tese para mestrado. Eu quero ler, tá? Só isso, ler, ler e reler tudo que não deu tempo de ler. Minha estante está em festa, nunca se sentiu tão prestigiada.
Mas não foi para lhe fazer inveja que eu lhe escrevi.
Vai ser difícil eu ir tanto aí na UniJudas, talvez eu vá na quinta, que é véspera de feriado. No grupo Nietzsche está impraticável eu ir, já que no meu trabalho vivemos tempos bicudos. Prefiro ser um pouco burro do que desempregado, sabe como é, na minha idade, só sendo poeta ou professor de filosofia, duas coisas para as quais eu não tenho o menor talento.
Escrevi para falar de poesia. Sim, que li seus poemas. Isso depois de reler alguns dos meus e escrever outros, que a poesia andava de mim meio descuidada. Tomou-me, entretanto, de assalto certa noite, e desandei a escrever, à caneta em folha de papel almaço, que ficam uns tempos curtindo numa pasta, até que eu os digite e ponha aos olhos do grande público. Ora bolas! Grande esse público! Já tenho dois para o próximo concurso de poesia da dita UniJudas, e devo caprichar, porque desconfio que este ano a concorrência vai ser feroz, feroz e grande.
Sim, escrevi para dizer que finalmente li as suas “quase todas tentativas de escrever poesia” E sim, para trocarmos mais idéias e termos mais assunto em nossas conversas.
Bom, agora devo evitar qualquer tom “professoral”, que seria de longe, como de fato é, detestável.
Depois disso que eu conseguir dizer, se é que vou conseguir, leia “Cartas a um Jovem Poeta” de Rainer Maria Rilke. Se eu tiver em arquivo, mando anexado neste. Não sei, porque estou em casa em meu micro sem internet, eu aqui sem televisão (ainda bem, porque senão eu não tinha lido tanto). Eu, quando me sinto sem inspiração ou uma porcaria de um reles escrevinhador, leio esse texto do Rilke. E outros poetas, é claro.
(Claro que não consegui anexar, então mandei a primeira carta na íntegra, em outro e-mail. Minha relação com computadores é satisfatória, do tipo dá para sentir falta da máquina de escrever - mentira!!!)
Será mesmo que o poeta só escreve quando está angustiado ou o poeta é um arauto da angústia? Quando está ansioso ou triste, apaixonado? Eu quando estou com meu amor no cômodo do lado, se me ponho a escrever, falo da saudade que dela me separa por dois cômodos e dois segundos que levo para ir ao seu encontro. O poeta é assim, quando lida com esses sentimentos, tristeza, angústia, paixões não realizadas, é para ressaltar seus opostos, dizer que sabe que eles existem e devem ser almejados.
No mais, o que me toca realmente em poesia são mesmo os maravilhosos jogos de palavras. Um poeta nunca diz nada que seja comum, reles, vulgar e superficial. Um poeta, mesmo falando de coisas comuns, tem o dom de dizê-las de maneira profunda, tocante e pungente. Nada de dizer “acordei feliz e está um lindo dia”. Um poeta diz “queria acordar feliz num dia que fosse o mais lindo da vida”. Não se contenta com pouco, um alvorecer ou um pôr-do-sol. Ele quer o mundo, toda a realidade, e também a fantasia, ou tudo o que lhe possibilitar a imaginação.
Dizia Fernando Pessoa que o poeta é um fingidor: “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E Manoel de Barros, mais matreiro, diz que “o que eu não invento é falso”.

Interessante que tenho em minhas mãos poemas seus de 2004 a 2007. Dá para ter uma idéia de “evolução”, se é que se pode falar assim. Ou dá para ver como os mesmos temas são vistos de maneira diferente. E, acredite, é difícil não amadurecer escrevendo.
Voltei a escrever em janeiro de 2005 e este meu primeiro poema do retorno ninguém leu e nem vai ler, pelo menos por ora. Não gosto dele, acho-o pueril, pouco profundo, uma choradeira desgrenhada, péssimo. Mas fui eu quem o escreveu. Foi algo de mim que o fez nascer. E, diga-se de passagem, tem coisas que nunca jogo fora. E depois outros vêm na mesma esteira, e eu querendo escrever e descontente com o que escrevo, mas escrevendo, escrevendo, escrevendo. Até que, algo que saiu de mim toca em mim... Pronto! Aí a coisa foi e foi, e você sabe o resto da história.
Não vou julgar nem analisar seus poemas, vou falar deles como se quisesse neles falar de você, do que você passa, do que consigo sentir e perceber que você passa. Posso julgar os meus, porque agora entendo o que queria dizer antes e não conseguia e agora creio que consigo. Faça isso com você, com seus poemas, com sua vontade de escrever. Pergunte-se (aqui me aproveito da sacada genial do Rilke) se você vive sem isso. Se a resposta for sim, faça outra coisa. Se for não, faça isso mesmo: escreva!
Se eu quisesse ser poeta, estaria fadada ao anomimato...” Já estamos, minha cara, já estamos fadados ao anomimato. Quem lhe disse que esse eu que eu sou e que todos conhecem é o mesmo eu que escreve os poemas? Sempre sóbria? Pois embriague-se de si mesma, desça ao inferno, ande o caminho de dois desertos, suba ao céu, penetre uma profunda caverna. Saia de si e não esqueça quem você é. Aquiete-se, aquiete sua voz, sua alma, seu corpo, mergulhe no vazio e afunde-se no silêncio. As palavras todas estão lá, a espera. “O gosto das minhas palavras ditas e não ditas me torturam e sufocam...
Só que escrever não cura nada. Quem se cura é normal e quem é normal se escraviza, se limita, se anula. Forjamos nossas palavras na ansiedade de dizê-las.
Que tal “rasgar os lábios, arranhar a pele, arrancar os cabelos, só para chamar a sua atenção”? E depois de tudo, dizer: “Queridos bandidos, eu tenho chances de morrer sozinha, histérica e amargurada, mas morrerei vingada.”
Coração de plástico. Mantenha distância, ou... seja rápido!” “Você me viu demais, agora não vai me enxergar.” “Você sabe que hoje em dia vive-se mal, sorrir dói...”
Onde estavam essas palavras a não ser no mais profundo silêncio? E de onde acha que tiro as minhas senão do medo imenso de nunca mais ouví-las? (Ou talvez de um parque ao lado de casa, escondidas sob tantas folhas mortas, espreitando meus passos).
Você vai ver logo mais (nas aulas de Estética) que nós não inventamos a linguagem, porque ela nos perpassa, ela que nos inventou. Assim como se pode dizer que não criamos as palavras, mas elas que nos criam. Não somos capazes de dizer em palavras o que somos (ou desejamos ou sentimos), mas a palavra é que, insinuando-se por meio de nós, atreve-se a dizer o que somos, desejamos ou sentimos, isso sem muito êxito, já que o que somos, nenhuma palavra consegue descrever. O mais belo verso não passa de um arremedo do mais reles sentimento que temos de nós próprios, esse indescritível, intangível. Assim, toda a poesia é um arremedo.
Tenha esperança, ainda que ela seja “um lixo que gostamos de acumular”. Mas não se fie muito nela, e sim no seu oposto, o desespero, esse sim, capaz de nos fazer vislumbrar qualquer lampejo de esperança. Então seja desesperada. Fique desesperada sempre. Desesperada de amor, de beleza, de lirismo, de sonhos e de imaginação. Entregue-se ao desespero e sobreviva a ele. Entregue-se ao desespero de estar suspensa sempre entre duas imensidões absolutas: o céu e o mar, você e o outro, a vida e a morte.
Porque o poeta “troca a boca por um dedo, divide angústias e alegrias, com ninguém, a não ser com ele mesmo.” E mesmo assim, o outro que lê se sente tocado e se contamina com as angústias e alegrias divididas, porque expressadas, ligadas às suas próprias angústias e alegrias.
O eu do poeta não fala a ninguém, a não ser com o eu completamente distraído e absorto do outro, o que lê, e que se vê no que lê, como que se num mundo que foi recriado para o deleite de quem puder, de quem quiser.
Eu não tenho culpa por morrer de saudade, eu preciso matar essa tarde...” E todo poeta precisa matar para deixar nascer, o dia, a tarde, a noite, a vida, o amor, a morte, a angústia, a saudade.
Então sonha, como quem “não quer pensar sobre o que se trata e só quer ser deixada para se perder nisso tudo e se acabar em tal pessoa, para ser acordada quando for a hora de partir...” Sonha como se fosse permitido, melhor, como se fosse exigível. Mais fácil do que mudar o mundo é mudar sua visão sobre ele. Com mais acuidade, com mais interesse e curiosidade, perplexidade. Mais fácil do que mudar as pessoas em sua volta, é mudar sua relação com elas. E pronto! Tudo está mudado, para ser mudado outra vez e de novo se e quando for preciso. Solte-se como se fosse vela ao vento, isso sim é ser forte. Além do além do mar existe outro mar e o que é preciso é navegar.
Talvez vá com este a carta de Rilke ao jovem poeta. Ele diz:”(...) Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga que não é bastante poeta para extrair suas riquezas.

Será que haveria uma receita para escrever? E para escrever bem? Seria uma outra receita com outros ingredientes? Foi escrito algum manual de instruções para jovens poetas, poetas iniciantes e interessados? Acho que não. Então eu escreveria um manual com umas poucas frases: dentro do seu crânio há um cérebro, use-o. Dentro do seu ser há sentimentos, sinta-os. Há algo além da dura realidade, sonhe. E sobre a verdade há um provérbio chinês que diz que há três verdades: a minha, a sua e a verdadeira. Procure!
Claro que você já domina satisfatoriamente essas regras, ainda que não tenha percebido.
Um aluno de jornalismo entrevistou-me após o último concurso da UniJudas e perguntou-me qual a dica que eu daria a ele, porque ele gostava também de escrever. Dica, eu?! Bem, disse-lhe, leia, leia muito, leia mais e mais, nunca pare de ler. Leia livros, leia o mundo, leia a realidade a sua volta, preste atenção nas pessoas, converse bastante, leia mais ainda do que já leu, interesse-se por vários assuntos e, sobretudo, não deixe de cultivar uma boa dose de sensibilidade. E mais ainda: nunca perca o dom de se emocionar, mesmo com as coisas mais singelas da vida. Uma dose também de bom humor é aconselhável. Ria bastante. Goste de gente, goste da noite, goste de árvores, de gatos e de cachorros, divirta-se com as crianças e como uma criança. E, o que é mais importante, não importando a idade que você tenha, nunca deixe de ter em casa algum brinquedo. E brinque com ele. Goste também de lápis de cor, mesmo que você ache que não saiba desenhar (porque todo mundo sabe, só desaprende quando cresce). Não tenha vergonha de ser carinhoso, tenha muitos amigos, abrace as pessoas, com vontade, e não perca a oportunidade de dar uns bons beijos, sejam eles de paixão ou de amizade. Nunca tenha vergonha de dizer eu te amo. Goste de silêncio e de caminhadas, de preferência nos parques, mas pode ser numa rua que você goste da cidade. Saiba ficar triste com a tristeza alheia, para se alegrar com a felicidade dos outros. Diga “parabéns” e muito obrigado. E não pense que isso tem que ser feito porque foi escrito em algum livro de auto-ajuda, faça como quem gosta e gostará de fazer em pouco tempo.
Aliás, não assista a programas ruins na televisão, não veja maus filmes, não deixe que lhe falem mal de ninguém, não se esconda, apareça, vá a festas, visite os amigos, telefone, mande e-mail ou carta até. Pense sempre em ser uma pessoa melhor do que é e as pessoas boas estarão do seu lado e, as não tão boas, irão se afastar naturalmente.
Goste de janelas ou de sacadas, se tiver uma, olhe a lua,as estrelas, não passe um ano sem ver o mar, um dia sem olhar o céu. Não deixe de contemplar um dia de chuva. Aprenda a reparar nas folhas que caíram no chão, observe, quando puder, o vôo dos pássaros. Goste de música, se puder, toque um instrumento, mesmo que não seja um “virtuose”, toque um instrumento só por gostar do som. E cante, mesmo desafinado, cante. Tire um cochilo numa tarde de folga, ou uma hora que seja da semana para fazer “nada”, absolutamente nada. Ande descalço onde e quando puder, pise a terra, toque terra. Quando for dormir, esvazie a mente. Ela é auto-carregável e estará cheia no dia seguinte. Não passe um mês sem ver quadros ou esculturas, sem ver um filme, sem ler um poema ou um romance. Por fim, goste de si mesmo como se você fosse seu próprio amante. E ame, que, tirando saudade e algumas desilusões, não há mais nenhuma contra-indicação.
Leia gibi, goste de ver mapas, fique embasbacado com distâncias astronômicas e perplexo diante da velocidade da luz.
E tenha em casa sempre papel e lápis e muitas garrafas. Somos todos náufragos nessa ilha deserta. Escreva sempre uma mensagem e jogue no mar. Numa outra ilha, alguém também náufrago, vai precisar.
Agora chega de escrever, que vou eu cá do meu lado tentar ser melhor do que tudo o que falo.
Guardo seus rascunhos junto com os meus, com o mesmo carinho e cuidado.
Falemos de nossos rascunhos, desses e dos próximos, sempre que quiser.

Em 02 de abril de 2007, exatamente dois meses depois de meu 45° aniversário.

Um beijo.

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