quarta-feira, setembro 05, 2007

Músicas

Medi os céus, agora meço as sombras,
A mente era dos céus, o corpo repousa na terra.
EPITÁFIO DE KEPLER (escrito por ele mesmo)

Adágio
Sobre palavras, palavras de meus dias mais insanos. Toda a insanidade de minhas horas mais tristes. Quem dera tudo isso coubesse em palavras.
Epitáfios. Escrevi tantos. Que escrevam agora o que quiserem. Não quero somente os verbos “repousa” e “descansa”. Não há descanso nem repouso. Há apenas, e haverá de haver, apenas o gradual esquecimento de quem desapareceu.

Presto
Desapareceu, enfim, na tranqüilidade do silêncio.
Aos que ficam: esquecimento.

Largo un poco maestoso
Tranqüilidade. A minha mais almejada e mais utilizada das palavras. Paz, sossego, quietação, serenidade. Repouso do corpo ou do espírito. Distância é uma palavra capaz de expressar mais do que qualquer outra a realidade que indica. É uma palavra que você sente. E que pesa sobre você. Torna-se quase que material, palpável. A mais visível das palavras.
Tranqüilidade é tudo o que posso ver de olhos fechados. Um tolo sonho, um desejo impossível. Há que se dar conta do turbilhão de pensamentos, enquanto pensar. Mas não creio em controles. Enquanto não encontrar um modo de não pensar. Aquietar as palavras dentro de mim. Ter próxima e possível uma certa paz. Deve ter havido um tempo da tranqüilidade. Mas definitivamente esse tempo não é hoje. Vivemos o tempo da intranqüilidade, tempo de grades nas janelas e trancas nas portas, sejam de nossas casas ou de nossos sentimentos. Grades e trancas. Tempo de esconder-se, de dissimular, de fingir que não há tudo o que nos toca e afeta. Tempo de não reconhecer todos os medos. Tempo apenas de entregar-se a todos os medos.

Andante
Se houvesse uma espécie de habilitação para se viajar nas palavras, minha carteira já deveria ter sido cassada. Perdi a noção de todas as palavras que estão em minha órbita. Meu universo de palavras, tão restrito, minha confusão cósmica de frases e períodos, a desconexão mais provável entre o que sente e o que fala. Tanto que chego à conclusão de que devia pensar mais e falar menos, ou nem falar e nem pensar. Evitar, enfim, certas reflexões tão problemáticas. Isso tudo quando não me é difícil de perceber que todos em volta estão a me estranhar as palavras, portanto é hora de calar. Porque tudo o que falo me põe distante de tudo e só faz tornar-me mais indefinido do que posso imaginar, abrindo e gerando desertos entre mim e o interlocutor. Este último, para mim, aquele que nunca ouve, só escuta um balbuciar de palavras. Tudo que me restou parece que foi esse jogo mal fadado de jogar ao vento minhas palavras, nem que para que não me ouçam, mas para que olhem para mim, que não me entendam, mas que vejam pelo menos quem fala, perdido em meio a tantas palavras que perderam todo o sentido. Aliás, esse que sou que precisa aprender a calar, morrer nesse grito de vida incontido. O resumo da ópera é que estou cada vez mais perdido, à mercê de tudo o que não fiz, e a realidade está a cobrar-me que algo seja feito. E minhas palavras não servem para construir um mundo, nem para mim, nem para ninguém. Desisto, então. Falar menos, pensar quase sempre pouco. Pelo menos pensar mais do que fala. Escrever, talvez o que me reste de verdade, será daqui para frente somente essa válvula de escape. Essa boca do vulcão.

Largo
Cai a noite, a me acender as estrelas. Cai uma lagrima a me apagar a chama do que me mantém vivo. Consomem-me lentamente essas horas do dia, com tudo o que há de mais indefinido. Passados assombrados, futuros improváveis e um presente sem sentido. A olhar tudo em volta tão mudado de tudo quanto me acostumei ver. Tudo tão desencontrado de mim.
Os telhados das casas. As paredes dos edifícios. A história já esquecida de quem ali pôs cada telha. Pedra sobre pedra a consumir para existir tanta força de tanta vida. Os tijolos mataram as arvores. As janelas acesas riem-se disso tudo. E as calçadas de cimento reservam um pequeno quadrado por onde as raízes deixam brotar seus troncos e galhos. As folhas me olham tristes do alto dos seus ramos eu a olhar o chão de tantas folhas mortas.
Ao meu lado 2260 páginas com o significado de 200 mil palavras. E eu não sei agora o que dizer. Eu não sei mais o que dizer... eu não sei! Por detrás de tudo isso um céu que eu não sei medir, enquanto vou medindo as sombras.
O artista é sempre um solitário que vê luz e desenha sombras. Todo esse barro ordenado em telhas e tijolos são escombros. Todas as folhas, sequiosas de ação e reação, olham para mim. Eu não. Elas preparam um colchão para eu me deitar no parque, dormir para sempre debaixo das estrelas. Tranqüilidade. Silêncio. Esquecimento.

Presto
Espelho. Sempre é, mais que o objeto que a palavra indica, o que esse objeto mostraria. É um olhar para si mesmo. Sempre que uso essa palavra, há esse olhar, esse tentar ver a si mesmo. Tentar ver-se como lhe veriam, ou ver como quem imaginando como é visto. Enfim, a palavra espelho é “introspecção”, esta mesma difícil e inaceitável, hoje em dia, muito pouco usada. Começou de um gesto material mesmo, um gesto real, olhar-se de verdade no espelho e ver-se, saber seus contornos, as características por que é reconhecido. Partindo daí para ver o que não são meros contornos. Colocar-se diante do espelho é sempre alienar seu modo de ver, suspenso por uns instantes, para refletir sobre como lhe veriam os que olham você.
Imensidão. Essa é fácil, é tudo o que é maior do que posso ser, e isso não é pouca coisa (não o que posso ser, mas o que é maior). Uma arvore imensa na janela convida a olhar um parque imenso, cuja visão não se restringe aos seus limites, mas vai além, para muito além de todos os parques, abarca todos os parques, e bosques e florestas que nunca vi, mas que trago vivos na imaginação. E tenta também definir, essa palavra, a vida como um caminho. Tente caminhar por mais de quarenta anos e veja aonde vai chegar. Tantas paisagens diante dos olhos, tanta gente, tanto céu, tantas ondas indo e vindo no mar (a imensidão mais poética e absoluta, depois do céu), tantas estrelas, e luas cheias, tanto querer saber, tanto indagar a respeito de tudo. A mente dos poetas, dos escritores, dos cientistas, dos bêbados do centro da cidade, dos mendigos nas praças ou nos bares em que tomamos nossa cerveja, tão pequenos a ponto de cabermos dentro de nosso próprio copo. O olhar aguçado das crianças, a força diante de tudo que têm os jovens, a plácida resignação e contemplação dos velhos diante da morte.

(Heavy Metal – um descuido do andamento – ma un poco scherzo)
Morri. Ora, não me venham dar um velório piegas. Eu posso merecer mais. Não digam nunca “ele foi tão bom”, porque eu não sou, bem, não era, não fui, sei lá. Pessoas muito melhores do que eu encontram-se por aí de cambulhada, facilmente. Não sei se quis ser assim tão bom, ou bonzinho. Terei saído da vida tendo passado vontade de ter dado uns bons socos e alguns pontapés ou de ter dito mais impropérios. Podem crer, há quem os mereça. Terei dito menos palavrões do que desejaria. Mas não gosto de violência.
Esqueçam os epitáfios! Escrevam-nos para a sua própria vida!
Não! Não! Não me venham com esta de relembrar os bons momentos! Tentem, então, digam meia dúzia deles, três, dois, um! Não irão lembrar nenhum. Não há bons momentos. Tirem-me da história e ela continuará a mesma. Minha companhia nunca lhes foi imprescindível e minha falta nunca foi sentida de verdade. Olhei nossos álbuns de fotografias, as fotos de nossas festas. Eu, que nunca tirei fotos, apareço em muito pouco delas. Há quem tenha aparecido mais do que eu nas fotos de meu próprio aniversário. Corram e confiram.
Quero ser enterrado junto com meus telefones, tão inúteis quanto a própria vida!
Eu gostaria de umas músicas para esse solene ultimo instante. Mas esqueçam tudo. Esqueçam os epitáfios, as músicas e os desejos. Apenas façam silêncio, uma vez em suas vidas. Homenageiem-me com o silêncio. Depois disso, podem voltar à costumeira tagarelice. Eu não vou poder ouvir mesmo.

Presto presto
Suicídio?! Coloquem diante de mim um bilhão de estúpidos que defendem (ainda que filosoficamente) essa idéia e eu mudo-lhes a “causa mortis”: homicídio qualificado.

Adágio
A propósito de tijolos e telhas, “The Wall” (Pink Floyd) em meu som parece soar tétrico. Eu vi o filme, eu sei a história. Uma criança perdeu o pai na guerra (preciso falar dessa palavra), cresceu, tornou-se roqueiro e se vinga com um álbum desse. Se não se vinga, pelo menos faz uma bela critica, ou uma necessária catarse. E isso abre precedentes vários para mais um bocado de palavras e para os seus mais variados significados.
Rancor. É ódio inveterado, oculto, profundo. Uma grande aversão não manifestada, antipatia. Ressentimento. Ira secreta, malquerer. Pelo que parece, nenhum desses sinônimos alivia o peso dessa palavra. E a qualidade de oculto e secreto faz pensar se isso pode aparecer naquele olhar no espelho.
Ressentimento. É ação ou efeito de ressentir (tornar a sentir, sentir muito – e eu diria continuar a sentir ou não evitar sentir). Mas também é melindre, suscetibilidade. E, o que é pior, recordação de uma afronta, acompanhada do desejo de vingança. É o sentimento reservado de qualquer ofensa ou lembrança “dolorosa” de uma palavra ou ato ofensivo.
Meu maior e pior pecado terá sido manter meus sentimentos reservados demais, ter deixado que algumas lembranças, mesmo por um certo tempo, fossem dolorosas. Meu pecado mais freqüente é minha tolerância à dor.
Mas não é um erro meu não falar. Eu falaria e seria bom. Há um sentimento de olhar em volta e sentir-se só. E o solitário é sempre silencioso. A questão é achar que nunca é ouvido, não querer das pessoas o que elas não podem ou não estão dispostas a me dar. Como as fotografias em festas de aniversário. Aliás, sobre a palavra “sorriso”, é aquilo que aparece somente nas fotografias. Uns muito belos e até sinceros. Mas ninguém imagina como pode ser tão muito mais belo um sorriso de verdade, ao vivo e em cores, quente.
Agora não quero mais ser ouvido, apenas aprender uma de duas coisas: calar e esquecer. Ou as duas.

Allegro ma non troppo
Vida real. Não sei o que é isso. Muito menos sei sobre os seus principais ingredientes: dinheiro, planejamento, profissão e outros mais. Alias, não sei nem o que é vida, muito menos o que é real. Essas duas palavras juntas formam, para mim, algo ainda tão impalpável e inimaginável. Materializar isso é vê-la, a vida real, como um hecantóquiro, aquele monstro mitológico de cem braços e cinqüenta cabeças, que quando você corta uma, nascem duas no lugar. Vida real, sei apenas de seus golpes e imprevistos, de suas surpresas, de sua tacanhice sem igual, de sua teimosia atroz em bater na mesma tecla, sempre.
Telefone. Retiro tudo o que disse, só nesse momento, tudo o que disse sobre ele. Toca, às vezes, a gente estando em pleno banho. Para atender tem que sair pelado, enxugando-se. Valeu a pena, era ela, para dizer que vai ligar à meia-noite. Passaram-se duas eternidades, uma para chegar à meia-noite, e outros quinze minutos depois desse horário em que ela ainda não ligou. Para passar o tempo, volto às palavras...
Espera. Palavra tão dura e palpável quanto distância. Não quero falar dela, da palavra, por ora. Ela tem sido muito polêmica ultimamente. Prefiro falar de muitas outras coisas e palavras, enquanto dura a espera. Droga! Já se passaram vinte minutos da meia-noite e ela ainda não ligou. Tenho de esperar mais um pouco e conseguir falar de outra coisa, aquilo que não é uma coisa, não é aquela coisa, não é a coisa. Intrigante a palavra “coisa”, tudo parece caber nela, nela tudo se encaixa, ou se desencaixa. Que coisa! Não estou falando coisa com coisa. Nexo causal. Nexo, nexo, nexo, complexo, amplexo, circunflexo, reflexo, convexo, mais alguma coisa terminada com essa silaba... é um telefone que não toca, a espera da espera da espera é esperar esperar ter o que esperar enquanto espera o que se espera esperando esperar o que se está esperando.
Não! Este post não é para você. Para você reservo outras palavras de nossa história, mas pode ser que aqui tenha uma ou outra, não sei, não se veja nele tanto assim, não sei o que deve ser isso de não gostar tanto de você. E nem quero saber. Duas moças lindas em casa, aliche, margherita e mussarela........
Tocou o telefone...
...acabou o post, ela acabou com o meu post. Sinto muito, o post acabou!

Em 02/09/2007 às 00:30 h.

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