quarta-feira, março 06, 2013

Essa prosa vai longe V



Súplica

Já que trouxeste este silêncio com sua escuridão, dize-me onde deixaste a angústia dele. Preciso de um pouco dessa dor para me sentir vivo, a dor desse amor que me mantém cativo. Que só eu é que vivo enfeitando de lembranças a saudade de todos os momentos. E sou eu que afugento toda hora o bicho dos esquecimentos, aquele que me come os mais belos pensamentos e faz mofar a imaginação como coisa velha e estragada. Só eu é que fico fazendo a arrumação e limpeza desse vazio que ficou para quando voltares encontrar tudo no devido lugar. Tudo do jeito que deixaste com tudo que deixaste, os anéis e os colares, as roupas e os sapatos, os discos e os livros, as toalhas e os sabonetes, a cama pronta e a mesa posta e no ar aquele incenso de que tanto gostas e a música perfeita para embalar aquele outro silêncio que gostamos tanto de fazer.

Mas não te lembras...

Já que escolheste a distância para ser tudo o que pode haver entre nós, eu te ofereço o infinito e a eternidade para que possas fugir despercebida ou desesperada disso tudo e mais nada. Só não prometo não estar em toda parte o tempo todo, porque espalhei na imensidão todas as vontades de minhas vontades e minha única necessidade é sentir que vives mesmo que distante ou perdida no tempo, mesmo que como parte deste meu mais resistente pensamento, ainda que como uma tola ilusão minha, ficção de amor verdadeiro ou utopia de um sentimento derradeiro. E eu ainda escrevo em todos os meus cadernos o teu nome, como se isso me matasse a sede e a fome, como se isso fosse aquela coisa que não sabemos se tem nome, amor, como se o amor fosse tão mais importante do que pode ser importante viver, como se o amor fosse renascer sempre dessas cinzas dos restos de vida incendiada, à qual entregamos nossas almas entediadas que quando se lembram desse amor não querem mais nada.

Mas não te lembras...

Já que vieste no último dia em que respiro, que meu olhar derradeiro se espalha por tudo o que ainda não viu, no dia em que já ouço todas as melodias de um tempo que ainda nem vivi, já que vieste no dia em que minha vida se vai, eu só te peço que me deixes com tudo do pouco que fomos, para que eu não parta vazio de ter sido ou de ter vivido. Que me deixes ao menos com a ilusão de que te perco para a morte e não para a vida.
Mas não sabias que era o último dia em que respiro, que era meu olhar derradeiro e que eu esvoaçava nas melodias de um sem tempo, que minha vida se ia e nem ouviste que eu te pedia para me deixares com um pouco deste tudo que fomos, que eu partia vazio de ter sido e pleno do que não quis sem ter percebido que vivido esses meus dias em ilusão de vida e amor que a única verdade que havia era a morte e sua espera à minha espreita, taciturna, solene e triste. E nem sabias de todos os cadernos que levam teu nome escrito e uma história de amor que só ocorreu em meus sonhos e nunca, mas nunca mesmo, vai se tornar realidade. Não sabias das cinzas dos restos de vida incendiada e nem de nossas almas entediadas que não queriam mais nada a não ser lembrar-se desse amor. Desse amor de que devias te lembrar.

Mas não te lembras...

Essa prosa vai longe IV


Luz e Escuridão

Eu vi brilhar bem longe essa luz, mas não consigo sair dessa escuridão. E ouvi soar melodias angelicais de um canto celestial, mas estou encerrado neste meu inferno. Eternos não são os momentos, mas a saudade que me ocorre ter sempre deles.
Tenho vivido só de imaginar e a imaginação é este castigo eterno. Porque se imagina o que não existe ou o que não se tem. Vivo este castigo de imaginar teu sorriso, o som de tua voz, teu olhar como razão de eu existir, o bom entre nós, alguma felicidade talvez, que talvez seja felicidade e seja de verdade.
Tenho vivido de sonhar aquele sonho recorrente, quando não mais do que de repente apareces na minha frente e nada é diferente de tudo como foi, diferente de agora que tudo é diferente de tudo como teria sido.
Tenho vivido de esperar que o pesadelo acabe e este abismo desabe, mas não é a mim que cabe desejar o impensável nem pensar o indesejável. Talvez apenas sonhar com o inimaginável. E no meio de tudo isto esta minha tristeza inviolável e eu certo de que pensar nela toda hora é incontrolável.
Inacreditável este universo sublime que a vontade do amor construiu em meus sonhos, destruído pelo poder do silêncio e pela magia da escuridão que se apoderam de tudo.
Tenho vivido de contar os dias com suas horas intermináveis de um tempo implacável, cujo único ofício é passar, levando aos poucos cada pedaço de coisa quebrada que somos.
Eu vi teu rosto na janela, ouvi teus passos na escada, mas nada teu pode mais chegar à masmorra em que me encerraram. Nada teu pode ser maculado pela ansiosa vontade de apenas um olhar meu. Nada teu é feito para eu imaginar em meus sonhos ou desejar em meus tantos devaneios. Nada teu me pertence mais, nada teu me é próximo, nada teu é como se fosse meu. Não mais...
E temos que seguir em frente, mesmo que isso seja para ser na angústia da dor imensa do desencontro. Porque nada teu me alcança. Porque nada meu se move ao acaso e nem por acaso é sustentado por uma tola e vã esperança.
Desespero é o sentimento que fica, sentimento extremo e pequeno, último sentimento que me cabe, que me sabe, que me invade, que me resta. Desespero é o único sentimento que ainda presta.
Sei ao fim de tudo que sou dado a estranhamentos e tenho por mania estranhar tudo o que não seja estranho, por ser estranho que pareça normal. E o que de fato for estranho vai me parecer estranho parecer-se tanto com o que seja normal. Porque de fato é estranho tudo parecer normal, uma vez que o normal é que tudo seja estranho. Círculo perigoso: nada é normal... Nada em mim pode ser assim tão normal; isto seria muito estranho.
Talvez eu só quisesse permanecer no escuro desta masmorra e ser esquecido. Talvez eu só quisesse nunca ter nascido. Tendo nascido só queria não ter vivido. Tendo vivido só queria não ter aprendido. Mas aprendi e tendo aprendido só queria que não tivessem morrido todos os meninos em mim que brincam em quintais fantasmagóricos. Inexistentes...
Porque tudo é tristeza. E porque minha tristeza é feita deste silêncio e desse vazio estranhamente repleto do que não fui e pleno do que não serei, entregue a mais completa escuridão. E tudo isto vem muito bem disfarçado neste olhar dissimulado que brilha e nisto que tem de teimoso este sorriso que permanece como máscara a me ocultar o verdadeiro rosto que chora.
Quando me quiseres, me pensa. E quando me pensares esquece. Quando me esqueceres dispensa o remorso hipócrita que porventura terias ao pensar que perdes mais do que mereces. Pois não perdes nada em me perder, a não ser o tempo que perdes em pensar.