quinta-feira, janeiro 26, 2006

Triste inverossimilitude

A tristeza é uma casa vazia, um silêncio profundo de uma noite mal dormida, ou passada entre tantos sonhos desencontrados e pensamentos confusos ao despertar. É ter que olhar para si mesmo e dar nome aos seus demônios, ou rezar para um anjo que não aparece e nem vela o teu sono. É encarar as mentiras das verdades da vida, da existência de um deus pai no qual todas as virtudes cumulam-se de modo absoluto, da vida como uma coisa simples e boa, da felicidade como meta tangível para qualquer reles ser humano que andeja sobre a terra e do amor que cura todos os males, aproxima as pessoas e nos torna aptos para a compreensão dos itens anteriores, deus, a vida e a felicidade.
A tristeza é um corpo inerte, uma mente ociosa e uma vontade obsoleta. Corpo inerte que vive como que morto, mente ociosa porque fixada numa única razão para tudo e vontade obsoleta porque não renova o querer, quer sempre a mesma coisa, como se mais nada existisse no mundo.
A tristeza é uma doença da alma, incurável por um tempo indeterminado, contagiosa e de difícil tratamento. Tem como sintomas falta de ânimo, desesperança, dificuldades severas de sorrir, sair de casa, ver gente.
A tristeza não é poética, ainda que nos arranque sempre um certo lirismo. Ainda que nasça quase sempre de um sentimento tão belo, o amor, a tristeza é a escuridão, o fenecimento, a morbidez, o consumo rápido e desnecessário de energias vitais. É filha do desespero, mãe da angústia e irmã da melancolia.
Deve ter sua razão de ser numa idéia de castigo. É punição divina, seja pelo roubo do fogo, perpetrado por Prometeu ou a queda do paraíso, quando Adão e Eva provaram do fruto proibido. Trazemos então essa propensão à tristeza, sentimento por tudo o que nos falta.
A tristeza denota a falta de algo. Falta de algo que queremos ser ou ter. Falta de algo que não conseguimos compreender. E vai ser sempre falta de algo que nos dê prazer. Em todos os sentidos. Se a felicidade de fato não existir, é plausível pelo menos ela ser confundida com o prazer.
Não sei que relação deve haver entre a tristeza e a solidão, porque não é necessária. Pessoas há solitárias, mas que não são tristes, do mesmo modo que pessoas há tristes, mas não solitárias. A tristeza é essa marca pessoal de um sentimento individual, cada um tem a sua, embora possa ser por um mesmo motivo.
Todo esse tratado acerca da tristeza é simplesmente para me declarar triste. É esse o sentimento por que ora sou assolado. Não é mais simplesmente coisa passageira, mas coisa que se instalou aos poucos e, quando dei por mim, estava ali sólida e incrustada no peito. Quando dei por mim, eu já era irremediavelmente triste. Por aquelas questões todas já nomeadas aqui. E por muito mais, triste por muito mais tempo do que eu possa imaginar, talvez triste desde sempre.
Haveria de me perguntar se é por causa das coisas que não fiz. Ou das coisas que fiz de um modo que nunca quis. Mas não é essa explicação mais acertada. Minha tristeza é por causa do não querer. Seria um belo jogo de palavras dizer que eu nunca quis o que fiz e nunca fiz o que quis. Mas não é assim tão simples. A questão é que eu nunca quis querer nada. E quando quis, nunca soube o que era.
Acontece que não adianta querer explicar a tristeza, como se dissecando-a ela pudesse ser combatida. Esse sentimento e seus similares não funcionam assim. Eu sei apenas que estou triste.
Estou triste um pouco por causa de tudo, dos aniversários que trazem seus acontecimentos de volta, da mulher da minha vida que demora a aparecer, por causa dos filhos que não vejo todo dia e da minha cachorra que levaram de mim, sendo que esta não pode pedir para me ver, por mais que queira, não pode! Então tristeza é só isso, não poder nem ver o cachorro? Acho que é isso e mais um pouco. Quando eu tinha cachorro, tinha muito mais coisas. As coisas todas que perdi sem saber por que e que não tenho certeza se terei de volta.
Estou triste porque a solidão passou a zombar da farra que eu fazia outrora de estar com as pessoas e viver com elas. E fica a me incitar a falar com as paredes, a cantar no banheiro, a filosofar com as árvores do parque e as plantas de casa, a ouvir as histórias dos insetos, a contemplar a dança da chuva nas folhas lá fora e o vento orquestrando outras danças de galhos. E me pergunta o que vou fazer desses desenhos tantos e de todos os poemas, aquelas palavras postas no papel sabe-se lá por que e para que, uma vez que era tão bom que permanecessem pensamentos apenas. Porque toda dor que tem nome cria corpo e dá nome a outras dores que criam corpo. E não tarda demônios entrarem nesses corpos, cada qual com seu nome e sua dor, seu castigo tão peculiar.
Estou triste porque se perdeu no tempo o último beijo, a última palavra de carinho, o último momento de intimidade de olhares trocados e juras compartilhadas; estou triste porque sem paixão, sem a dor que traz amar sem se dar conta disso. Estou triste porque até mesmo as lembranças dissiparam-se tão aos poucos nesse cansaço cotidiano de estar só e nessa ilusão de não existir a tristeza. Nada há que me traga o que se foi, que refaça o que se desfez, que conserte o que quebrou, que cure tudo aquilo que dói.
Estou triste porque há o tempo ávido por nos devorar a todos. E quanto mais tempo eu tenho, menos eu sou para ter tempo. Até o dia de ser nada.
Estou triste porque encho a casa de gente e essa gente tem sempre que ir e quando vejo estou de novo com as paredes e os insetos, as árvores e as plantas, e a solidão zombeteira a me perguntar porque fiquei ali e não fui com todos, largando os desenhos e os livros, os poemas e os sonhos, o silêncio religiosamente guardado, essa força tola e inútil de não desistir de coisa nenhuma, de lembrar as datas de todos os aniversários e os fatos que elas trazem, de reviver desesperadamente o que já morreu, de querer inutilmente o que não é mais meu.
Estou triste porque ninguém me pergunta se estou feliz, ninguém me vê chorar, nem me revirar na cama com mais um sonho estranho, no qual as pessoas ainda estão vivas e eu tenho cachorro. Ninguém lembra que eu não trouxe nenhuma foto para não doer mais ainda a vida que não tinha mais, para não estranhar não ser o que nunca na realidade fui mesmo. Tudo o que eu não era ficou. E tudo o que trouxe é exatamente o que não sou. E esses dois vivem a se olhar no espelho e se estranham. Não se conhecem e não supõe um ao outro.
Estou triste porque tudo isso já fez aniversário. E nunca vai mudar nem acabar. Tudo vai ser exatamente assim, do jeito que é. Estou triste porque não há nada a fazer a respeito de nada. A não ser deixar a vida seguir seu curso, justamente por não sermos narradores oniscientes de nosso próprio drama.
Somos parte dele, do drama, e não há como saber se o drama existe por nós ou se nós é que existimos por ele.
Eu não sei quem me inventou. Nem sei o que invento ou o que já vem pronto como realidade e verdade para serem digeridas. Não sei se escreveram ou desenharam o nosso destino. Sei apenas ler ou contemplar esse destino em suas cores e formas e em seus verbos e substantivos, dois pontos, pontos de exclamação ou interrogação. Reticências e parêntesis, vírgula, ponto e vírgula e ponto final.
Eu não creio que haja uma verdade que tenhamos inventado.
Acho que há uma verdade que nos inventou.
Por isso toda essa inverossimilitude.
Triste inverossimilitude.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Aniversários

Ainda se estende o período de comemorações do aniversário de meu desespero. Há um ano atrás só eu sei as agruras que eu passei em todas as esquinas da vida. E aniversários são aquelas datas que a gente marca no tempo marcado por nós, para serem repetitivos, as datas e o tempo, e nós com eles.
Deverei passar incólume pelo desespero que paira em meus momentos, até esquecer que tudo existiu no passado, e que aconteceu tudo o que fiz e não fiz, o que não fiz aconteceu de um modo que é não acontecer, é o que seria se não fosse o que foi. É, o tempo enrola a gente. Se eu voltasse atrás faria tudo igual, porque sou fiel à própria desgraça, fidelidade mais imbecil que essa não deve existir.
E todo dia deve ser aniversário de alguém ou de algo. Hoje é aniversário de alguém e eu daria de presente a necessidade de não ser perdoado. Quero, antes disso, ser capaz de perdoar a mim mesmo.
E eu passei um ano jogando mil lembranças fora por dia e ainda tem muita coisa guardada para jogar fora, e vai ficar entupindo minhas horas, atrapalhando meus passos dentro de casa que, afinal das contas, não me levam mesmo a lugar algum.
Eu diria somente: "Parabéns! Seja feliz apesar de tudo no mundo e apesar de tudo de mim." Mas eu só posso imaginar encontros fictícios e desculpas sem pé nem cabeça. Fui covarde, nunca mais fui ver você que chorou por mim, adoeceu, quis morrer e me esquecer. E parece que conseguiu um pouco disso tudo. Eu me entreguei a uma nova vida e nunca me perguntei se era amor o que deixava e o que eu tinha. Como agora não pergunto se é amor o que me mata aos poucos em cada letra sangrando dessa cantilena de leito de morte. Não me pergunto se é amor o que me consome devagar como uma doença entranhada na alma, sem cura nem vacina.
Ora bolas! Estou pagando por meu crime com silêncio e solidão, com o medo de a vida não ser nada além de quatro paredes vazias que me cercam. Com medo de ter como alento apenas as lembranças de tantas fotos que não trago mais comigo. Porque aquelas pessoas não existem mais, nem aquelas festas e sorrisos, nem os cachorros (de novo os cachorros!), nem aqueles sonhos e planos, aquela ilusão de que tudo estaria tão bem hoje, de tal modo que não seria preciso ter medo. Estou pagando com esse grito preso na garganta. Estou pagando com a falta de perdão.
E pago também com essa falta de paz. Agora não dá mais para ser feliz, o tempo não volta atrás e a gente não refaz o que se desfez e nem encontra o mesmo amor mais de uma vez.
Aniversários são passos dessa caminhada em direção da morte. Eu conto os mortos espalhados pelos campos onde antes havia flores. Onde estão as minhas fotos? E as flores? Onde estão as pessoas vivas com seus sorrisos entre balões coloridos? Por que me cresceram essas crianças? (de novo as crianças...). E por que afinal de contas me invadiram essas lembranças?
É que hoje é o aniversário de alguém que se foi, ou melhor dizendo, alguém que ficou no caminho, quando um acidente me tirou dos trilhos. Eu não quero seu perdão, quero que esteja bem. Não preciso de seu perdão, preciso que viva sua vida como se não tivesse topado com a minha, nunca!
Mas mesmo isso também é pedir muito. Então esquece o perdão e a súplica. Marque um encontro e não venha me ver, mas me deixe ver você de longe, que é onde sempre deixei você. Deixe-me olhar você sem que me veja. Deixe-me sofrer em paz e por mim mesmo todas as besteiras que fiz na vida. Não ceda à tentação de me salvar dessa desgraça, traçada e pintada, destinada exclusivamente para mim.
Só agora eu sei e é tarde. Não amei por causa de você. Não amei mais ninguém. Meu erro foi não perceber que perdia tudo quando me perdi de você. Eu calei em mim o que havia de mais sagrado. Agora é tarde para merecer seu perdão. Nada vai me libertar desse inferno onde estou condenado. Eu não tenho salvação.
Não sei porque voltei no tempo para pensar em você, se não tenho esse direito. Não sei porque achei que de alguma forma merecesse ser lembrado lembrando das coisas esquecidas. Acho que esqueci meus passos na fuga e nunca soube o caminho de volta.
E agora que o encontro é muito tarde.
Apenas isso: é tarde.
E o que cala tarda.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Dioniso não Apolo

Baco, bacante, bacanal, bacana! A festa nos liberta de nossos fantasmas mas nos aprisiona em outras máscaras. Baco, deus do êxtase e do entusiasmo. Eu sou Tântalo, às vezes Pandora, Prometeu, Perséfone. Eu sou Orfeu que desce ao inferno para buscar a amada. O inferno me engole, eu olho para trás e ela vira uma estátua. Morre duas vezes para eu viver sozinho mil outras vidas, nenhuma delas querida ou escolhida, todas ao sabor do tempo passando e devorando minhas lembranças para sempre.
Eu sóbrio seguro o próprio corpo que voaria por uma janela, mas nela deixa voar apenas umas tantas lágrimas, numa sacada que ninguém vê, numa madrugada que não me contém. Eu voltei ao passado onde havia infância, um cachorro vivo, esperança ou ilusão, eu voltei para o sonho não realizado estando na não realização dele, meu presente futuro daquele momento tão desejado por uns momentos. Que não volta mais, nunca mais.
Eu me vi só diante da janela e todos entretidos com o esquecer que existimos e eu existindo penosamente, muito contra a vontade, querendo o silêncio de uma madrugada distante.
Outro dia e outro copo, outra mesa e outro corpo de mulher lambido pelos meus olhos. Estamos sós, mas distantes, eu te levaria em casa, te daria um banho de água e outro de língua. Preciso disso para saber mais que a amizade, no que você precisa precisaria eu de você tantas vezes quanto necessário para aplacar a fome e a sede, a vontade animal de não pensar nunca mais. Eu preciso na sua solidão acabar com a minha, o quanto antes, antes de o tempo acabar com a solidão e a vida mesma, com o que meus olhos podem ver e tocar minhas mãos.
Eu não sei dizer eu te amo! Não posso dizer eu te quero. Mas eu olho em volta e não sei ao certo se quero o que amo, ou não sei se amo, se quero, se sei que não sei.
Voltem para seus lugares! Essa janela é minha e nela projeto algo além do olhar no infinito. Vá um para o banheiro onde estava, outros dois voltem para o quarto, e vá embora quem já tinha que ir e nem venha quem não devia ter vindo. Essa festa não está dentro de mim, fora dela sou espectador de meu próprio desespero. Quantos homens me beijariam e no entanto nenhuma mulher que me toque a alma para que eu sinta a calma de me iludir outra vez. Minta para mim dizendo que me ama, não quero sua verdade que me exclui, nem sua vontade que não me supõe.
Eu sofro e você não vê que nenhuma festa vai mudar o sofrimento que carrego tão dedicadamente. Ninguém supõe que eu falaria o nome de meus trezentos milhões de demônios e mesmo assim eles permaneceriam ao meu lado. Mas nenhum anjo me guarda. Eu sucumbi na catedral em ruínas desde a última guerra santa.
Me dá um pouco do prazer que a si mesmo recusa, um pouco do que não tem para que eu não tenha um pouco do que atira fora. Venha sentar-se ao meu lado nessa noite terrível, o silêncio da madrugada teima em gritar meu nome e se eu não tiver alguém que me abrace serei levado para o início da saga do tempo, onde nem começamos ou terminamos, onde simplesmente acabamos.
Eu amo você. Sem êxtase e entusiasmo. Eu amo você no passar dessas horas nefastas e vazias, no desespero de meus dias. Eu amo você no silêncio da madrugada, nas lágrimas desperdiçadas na janela. Eu amo você com medo de amar. Sem saber mais amar. Eu amo você porque não sei mais o que fazer.
Eu amo você porque não aprendi a odiar.
E talvez nunca aprenda.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Eu tenho que passar!

Eu estou aqui para derramar minhas palavras. Lamento, leitor, se elas esbarram em você. Sai da minha frente, então! Não vim ao mundo para agradar a ninguém. E por mais que eu tente, não consigo mesmo. Então não tenho a ousadia de agradar a gregos e troianos numa mesa hitleriana patrocinada por judeus e palestinos. A esquerda e a direita que se danem no banquete do centro. Eu sou o de fora. Há sempre, sim, esse jogo de contrários em tudo quanto existe nesse mundo. E eu abandonei há tempos aquela necessidade de agradar a todos. Nada mais me desagrada senão a desagradável mania de alguém querer sentir-se agradado. Agrade-se do que quiser, a mesa está posta, o jogo foi iniciado, a sorte está lançada, o destino traçado, de algum modo que não sabemos, pelas Erínias. Ou não, traçamos o destino a cada momento desprezível que gastamos do tempo efêmero que temos. Vai saber... viva sua vida como quiser e busque a morte se for seu desejo. Só quero que me deixem ser medíocre e tolo, sonhador e fútil, pequeno e insignificante. Pois pode ser nisso tudo que hei de encontrar uma certa grandeza, talvez a grandeza de ser nada. Todo mundo é alguma coisa, todo mundo quer, todo mundo faz, todo mundo tem. Busca, luta, tenta, cai e levanta, tenta outra vez, acredita, se desespera, enlouquece, corre, corre, corre e morre. Eu não! Minha vida não é um filme hollywoodiano de aventura. Muito menos um dramalhão mexicano ou uma novelinha global. Minha vida é a merda da realidade protocolar e inútil, pasmaceira de mesmices, enjoamento de mesmos rostos, expressões, histórias e palavras. Minha vida se faz no que se desfaz e ninguém pode saber se o começo é o fim ou se o fim é o começo.
Pouco importa o saber, por mais que o venere com inquebrantável fidelidade, pouco importa o saber, que não me tira o cansaço, não me renova inexistentes esperanças, não traz nenhum alento para a angústia latente de tantas madrugadas insones, pensativas e estarrecedoras. Deixo os outros saberem muito mais que eu sobre tudo o que nem se escreveu ou nem se pensou. Academia de sábios insatisfeitos é aquela que usa o saber para deleite da própria vaidade, enquanto a maior vaidade que tenho é poder defecar o que comi. Então eu me alimento de sonhos, de palavras e de conhecimentos alheios, de sonhos e visões dos iluminados, de lirismo dos desenganados. Eu me alimento das alucinações dos tresloucados. E das dúvidas dos profetas e dores dos poetas. Eu hei de sempre cagar poesia!
E limparei a bunda com tantas páginas escritas.
Pouco me importa saber se sou deus ou o demônio. E se não sou nenhum deles, pouco me importa saber de qual deles sou. Desconfio que deus criou a escuridão e o demônio a luz. Dá para saber quem plantou no paraíso a árvore do conhecimento do bem e do mal. Sei que somos todos órfãos. Estamos sós na madrugada do universo. Minha prece sempre foi o grito preso na garganta depois de mais um pesadelo. Eu não tenho medo do medo que tenho. Nem do medo que me oferecem gratuitamente de um milhão de modos diferentes nessa era decadente cujo avanço em matéria de comunicação possibilitou cada vez mais ninguém se comunicar com ninguém.
O que querem que eu seja? Meu gosto é muito duvidoso para escolha de uniformes. Não me caem bem os cintos de castidade (bem como a própria castidade), mas também roupinha de rebelde sem causa também não me assenta. A revolta que me atrai é aquela que me repele.
A causa que me fascina é a que me exclui. Eu não gosto de parecer com nada que anda por aí, por isso disfarço bem.
Desculpe, caro leitor, nunca sairá de mim algo começado com "era uma vez..." e terminado com "... e viveram felizes para sempre."
Porque a vida não é um filme de hollywood, nem um dramalhão mexicano ou uma novelinha global. A vida é essa maravilhosa merda... protocolar e inútil, aquelas coisas todas que já disse.
Para derramar minhas palavras. E para elas esbarrarem em você! Sai da frente. Eu tenho que passar tão rápido como passam as horas de meus dias.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Uma lição sobre o tempo

Ah! O tempo... que nos devora e além disso nos engana. Uma volta completa que a Terra dá em torno de seu próprio eixo, uma volta completa que ela dá em torno do Sol. Eis um ano passando, passado e outro a passar. E o tempo tão temido nada é além disso.
Feliz Ano Novo! Todo mundo diz para o velho que sou, que na madrugada do primeiro dia do ano que começa, carrega as mesmas velhas coisas, as mesmas velhas palavras sobre as coisas velhas e novas, conhecidas, desconhecidas e ainda por conhecer. E para as coisas mesmas que nenhum de nós nunca vai conhecer. O velho que sou olha a juventude nos olhos dos outros e se emociona, chora às vezes, pelo fato do tempo que nem existe nem ao menos voltar atrás, só um pouquinho que seja, para vermos o que se esquece, para sermos um pouco mais o que fomos, jovens e sonhadores, cheios de esperança numa coisa que por estar à frente aprendemos a chamar de futuro. Que é para onde sempre olhamos e não vemos nada. Nada!
Eu vou ser tudo de bom nesse novo ano, você também, todos vão ser. Até ele ficar velho. E ele fica velho logo depois do terceiro mês, às vezes antes.
O problema é que nós não nos renovamos em nossas promessas de renovação. Na emoção incompreensível de atravessar a última madrugada de um ano que se acaba e entrar na primeira de um ano que começa, nós confessamos todos os nossos pecados existenciais, para esquecê-los logo depois, no primeiro ou no segundo dia de nossa nova vida.
Dia Mundial da Paz! Primeiro dia do ano e nenhuma das guerras cruentas se entregou a uma trégua. E se tivessem mesmo se entregue a tal trégua, por que dela não gostaram, posto que retornaram à guerra como quem retorna ao trabalho? Dia Mundial de Tudo o que Não Temos. Nem nunca teremos.
Mas vão dizer que vale a esperança. E que não se pode ser assim tão pessimista. Vão dizer que é essa mesma a essência da vida, esse ar de levar os dias como quem cumpre um castigo. Um castigo divino. Não se nega aqui a esperança, cobra-se que ela valha para cada qual que a vai reivindicar. Tenha esperança! Essa frase expressa ao mesmo tempo um desejo, uma dúvida ou ainda um desafio: tenha esperança se for capaz!
Eu apenas me recosto na sacada de meu apartamento, nas primeiras horas da madrugada, que é quando reina o silêncio. Ali há somente o movimento da Terra em torno de seu próprio eixo, e o movimento em torno do Sol. Que trazem os dias que chamamos novos. E os anos. Mas só o silêncio é novo. Eu sei que vai amanhecer e nada de novo no rosto das pessoas, nada de novo em suas palavras e pensamentos, em seus gestos e desejos, em suas ações concretas. E meu silêncio de madrugada na sacada é pura ausência de reflexão. Porque eu não penso. Eu sinto tudo assim como é, como tem sido. Sem pensar. Eu preciso não pensar. Dizem que isso é meditar. Eu digo que é apenas sentir tudo o que pensei, tudo sobre o que refleti, o dia inteiro, o ano inteiro. Talvez a vida inteira. E a vida inteira de reflexão só me trouxe silêncio, um prazer de existir na sacada do apartamento, de madrugada. Só ali.
A imensidão me chama. A escuridão me chama. O vazio me chama. Me chama sempre o silêncio, anfitrião constante de minha solidão.
E eu não fujo das horas do dia. Arrasto-me nelas como que aprisionado, sem ter aonde ir, sem ter o que fazer a respeito de sua falta de graça e vontade de viver. Porque vi a vida no silêncio da madrugada. A vida como um castigo. Um castigo divino. Porque vi a vida quase do modo como deus a vê, inteira em sua essência, do começo ao fim sem ter começo e nem fim. Eu a vi pronta e acabada e sei onde vai dar. A vida se deixa devorar pelo tempo e aposto que o tempo vomita de volta toda a vida que engoliu.
Então olho sempre para o passado, onde estou encarcerado. Porque olhar para o futuro não me faz ver nada nem ninguém. Nada que importe e ninguém que eu seja. E o passado nunca acaba. O que acaba é sempre o futuro. Ele se faz presente e imediatamente vira passado: acaba.
Feliz Vida Velha então. A mesma vida em que nascemos, crescemos e vivemos até então. Nela rimos e choramos. Nela perdemos as esperanças todas para encontrar depois na bagunça das coisas em nossas almas, em nossas gavetas e armários, nos nossos baús e cofres. Feliz Mesma Vida de nossas repetidas palavras (eu te amo e não sei como dizer), de nossas vãs poesia e filosofia. De nossos medos mais profundos, que se escondem no olhar altivo e desafiador do tempo, como o olhar de quem se diz ser a obra-prima da criação.
Feliz Mesma Vida Velha! De todas as palavras que não sei mais dizer: amar, amor, saudade, felicidade (nunca mais vou ver?). Esperança. eu procuro a esperança no silêncio da madrugada, na sacada do apartamento. Na solidão eu procuro o mundo todo. Inútil busca. Eu sempre encontro num outro espelho uma máscara nova ainda desconhecida. Às vezes nela tem um sorriso, com o qual amanheço e ninguém sabe que chorei.
E retomo o caminho da vida como um castigo divino. Com um sorriso de máscara. Com as reflexões do silêncio da madrugada.
À mercê do tempo que me devora.
E me vomita num outro dia.
Num outro ano. Novo!
Feliz Ano Novo!
Feliz Outro Dia!