quarta-feira, abril 16, 2008

Pretérito imperfeito

O gosto de presunto e queijo do misto-quente, o cheiro da “Dama da Noite”. O amarelo alaranjado do sol que se põe no fim da rua. O acorde específico de certas músicas, letras, vozes de melodias românticas. O vento no rosto, a chuva no cabelo. A pele da moça de mais aquela dança, sentir no meu corpo algo como se fosse a alma dela. Beijo com gosto de boca, perder todos esses poucos sentidos, não respirar, não pensar, parar o tempo exatamente na contemplação daquele raio de sol que entra no fim da tarde, uma mentira de uma certa eternidade, as ilusões sobre a vida, os desejos inúteis sobre o tempo não passar nunca. Saudade da infância, vontade de nunca ter saído da adolescência. E agora voltar a tudo aquilo só se for com a imaginação e os sonhos. Impressão de que se deixou lá muita coisa.
Meu pai andava de bicicleta, meu irmão dançava ao som de funk, minhas irmãs cantavam as músicas do radio, minha mãe contava histórias de nascimentos, dava um motivo de a gente estar no mundo. Em casa sempre tinha cães e gatos, teve até pombos, todo mundo tocava violão.
E eu trago tudo isso como um tesouro muito bem protegido.
O que há hoje é os olhos estarem cansados e os olhares perdidos na imensidão, o peso no ar da incerteza de se ter vivido.
Há hoje somente a saudade.
Ninguém sabia o que o outro pensava, mas só o que dizia. E o que devia ser feito, primeiro a gente sentia. E a gente ria dos tombos de bicicleta, dos “foras” das namoradas, só se entristecia de verdade quando acabava o assunto. A gente tinha assunto, vivia o assunto, a gente era o assunto. A gente criava e o assunto nunca acabava. A gente sentava na calçada, brincava de noite na rua, namorava no portão, fazia baile todo sábado, se via todo dia.
Meu pai sentava na ponta da mesa e era Natal. Suas histórias eram piadas, suas piadas eram histórias. Na sua carteira a foto de uma mulatinha bonita que era a minha mãe. Toda semana tinha carne moída e purê de batata. E minha mãe fazia doces. E todo dia café com pão, quase sempre tinha bolo. Todo domingo tinha frango e macarrão.
Um tempo em que havia quintais. Tinha festa junina e quermesse, futebol na rua, tinha os amigos que eram amigos dos amigos, tinha alegria de viver.
Tudo isso eu trouxe à mente com o cheiro da Dama da Noite. Seu cheiro dá uma saudade tamanha daquelas noites.
E hoje, tão longe daquilo tudo, sinto que aprendo cada vez mais, ao passar dos anos, a odiar esse pretérito imperfeito.

Um comentário:

Anônimo disse...

A sua nostalgia me parece de coisas boas... de um pretérito perfeito. Nestes momentos, seria o presente "mais-que-imperfeito"?