sexta-feira, novembro 11, 2005

Alone in the dark


Meu espírito se acalma só na calada da noite, reino das trevas, império do silêncio. E se deleita à beira do abismo na iminência do vôo impossível, mas inevitável. Todas as pessoas dormindo estão como mortas e todas as pessoas mortas como que despertando vêm me contar suas estranhas histórias. Lembranças e desesperos, angústias e reminiscências ao som de violinos na noite. Às vezes saxofones. E pianos.
Às vezes escuridão e pensamentos vazios, soltos no ar como fumaça sempre a esvanecer como os segundos imponderáveis da vida passando, aos poucos e bem devagar, que não pára e nem volta, simplesmente avança em direção ao nada do abismo profundo. O abismo. Sempre o abismo. Materialização da imagem do desconhecido, do oculto e do não revelado da realidade do universo, ou por nós gerada ou que a todos nós gera a cada instante.
Às vezes alguma lembrança me traz uma música que me traz a lembrança de algum momento fixo no tempo. E não sei se me transporto, nessas horas noturnas perdido em silêncio nunca sei mesmo onde estou, que dia é, quem sou.
Há somente distâncias entre as imagens perceptíveis desse mundo lá fora, distâncias impenetráveis e vazias, e estou gritando por você, há muito tempo estou gritando por você. Mas não sei quem você é. E você então não vem. Estou gritando e você não ouve.
Meu ser se torna adensado das histórias que inventa sobre si mesmo, e emaranhado de palavras, enredado de pensamentos, numa prisão suspensa no ar, que pode-se chamar imaginação.
Eu conheço essa tristeza desde os tempos imemoriais em que ela era escondida pela ilusão dos sorrisos e pela falsa impressão de uma felicidade existindo tão tênue e fútil, a não servir para nada, a não ser para enganar os sentidos, para iludir o espírito em sua busca pelo mesmo e inevitável abismo.
Você às vezes é a mulher mais linda do mundo. Às vezes é só uma mulher que me ama. De qualquer modo você é uma fantasia. Existe somente quando fecho os olhos para olhar para dentro. Você sou eu de um modo que desconheço totalmente. Você ainda não nasceu. Eu só vejo você morrendo. Todo dia morrendo diante do espelho para o qual fito meu olhar atônito em busca de uma essência no brilho do olho, um fogo a me consumir a carne, uma dor para atestar a impressão de que estou vivo de fato, vivo e morrendo no ato de olhar no espelho me desintegrando, voando como voa esse pensamento, por sobre o abismo com asas de pássaro coladas com cera. Ícaro tão perto do Sol. Mergulhando na profundeza do abismo. Em direção ao desconhecido, voltando ao ventre da terra que me pariu.
Estou dentro da noite escura, dedilhados de cordas arrastam-se em minha mente. Lágrimas são sons molhados roçando a música do rosto. Meus olhos vêm na noite mais escura. Porque para ver não é preciso luz. Para ver é preciso silêncio. Aquietar a alma no ir e vir do tempo, aplacar qualquer angústia de viver. Aceitar a solidão e domar o medo. Asas sobre o abismo. Último vôo e esquecimento.
Eu sei de repente o que tem do outro lado da aurora que não vem. O que tem por trás do silêncio que não se quebra, eu sei o rosto da morte, eu ouvi o primeiro e último grito da vida. Solitário e perdido na escuridão da noite. Um grito que arranca das entranhas uma estranha vontade de viver.
Eu retornei para casa morto da guerra e todos que comigo lutaram ficaram vivos sepultos no campo de batalha. E carrego agora a maldição de não poder viver e nem ser sepultado na terra manchada de sangue.
Estou construindo um inferno para fugir da salvação. Meu livre arbítrio tirou-me todas as opções. Eu tenho nas mãos o fogo roubado, o fruto proibido e o sangue derramado de meu irmão. Vago em fuga com um sinal divino na testa. Eu não encontrarei paz. Não posso voltar atrás. Nada pode voltar. Nada pode. Nada.
Voltar é abandonar o risco de viver. E a possibilidade quase única de poder morrer.
Eu me lembro muito bem de que vir à vida significou romper a escuridão. Essa mesma escuridão a que me entrego para mergulhar no tempo eterno. Escuridão de silêncio e solidão.
Cantigas de ninar em rituais fúnebres, um berço a sete palmos da terra, bolsa, suco de líquido amniótico, asfixia, um ventre que me comprime. Eu não quero sair. Eu não quero sair da escuridão e ver a luz. A luz que cega. A luz que não deixa ver. Eu não quero olhar direto para o sol. Eu não quero abrir os olhos janelas para um mundo em decomposição. Quero ser luz. Quero entender a escuridão. Quero não ser matéria.
E agora eu quero calar esse grito que nunca ninguém ouviu.
Agora quero ocultar na escuridão essa figura que ninguém viu.
Agora quero esquecer o ar entrando nos pulmões. Me obrigando a respirar.
E pairar com asas de pássaro entre o sol e o abismo.
Almejar o vôo rumo à escuridão.
De silêncio e solidão.
Silêncio.

domingo, novembro 06, 2005

Começo e fim


Vomitei o que não comi, mas saiu o que bebi. Tudo sempre assim acontecendo a despeito de eu existir. Eu nunca estou na cena em que apareço. Sou um figurante de minha vida inteira. Eu não sou personagem. Meu destino desenrola-se a alheio ao fato de eu querer existir ou não.
Vomitei o que não digeri. E mais uma vez perdi o senso sobre as coisas acontecerem ao lado, bem no momento em que não há a menor atenção. Bem no momento em que estou vivendo em standy by, bateria reserva, ávido por migalhas, feliz por estar bem no local em que vai cair o grande raio. Bem no momento em que tenho um relance de alienação, bem no momento em que deveria estar mais prestando atenção.
Eu simplesmente não posso encontrar as respostas das perguntas que não fiz. Eu não posso pensar sobre aquilo que não existe, amor, tão simplesmente impossível, tão facilmente digerível, que saiu no meu vômito no meio da noite. Eu posso conceber a perenidade de tais sentimentos, porque para mim as coisas deviam ser firmes como as rochas e quase eternas como as árvores milenares. Árvores e montanhas, queria que minha solidão pudesse se passar entre árvores e montanhas. Então eu morreria em silêncio e em paz, seria sepultado na relva, naturalmente, e seria eterno como as rochas. Ou quase eterno.
Mas tudo é perene e estou cansado de sentir saudade da próxima vez. Cansado...
Por que eu sou tão infeliz numa noite de felicidade? Por que ao achar o meu lugar eu mais me perco? Por que ao me perder eu tenho dúvida de ter ou não um lugar? Por que a humanidade é pouco? Por que a realidade é tão inútil? Eu tenho sonhos de que não me lembro e fujo por caminhos que não conheço. E não volto ao começo, estou sempre no mesmo lugar sem ser o mesmo. Eu me desfaço no disfarce. Eu me decomponho no que penso e não me reconstruo. Eu me escondo no que falo. Eu simplesmente desapareço no silêncio insuportável.
Um beijo numa noite que acaba me faz pensar na noite que nunca começa, talvez a última tão desejada, em que o amanhecer não venha mais me presentear com a angústia de estar vivo. E o péssimo da vida é não saber a próxima vez. Todo mundo tem saudade do passado, eu também. Mas a saudade que mais me mata é a saudade do futuro, da próxima vez, tão improvável de ser, tão sem chances de acontecer. Eu daria a vida inteira para eternizar um momento, e daria duas encarnações para eternizar uma noite. Mas não tenho a vida nem os seus momentos, eu não tenho tempo, eu não tenho nada que possa dar. E nada posso pedir.
E eu entrei no labirinto dessa linguagem cifrada para esconder de mim mesmo a verdade que eu sei que quer se proclamar. Meu dilema posto toda hora de cada dia que passa sem que nada se apresente de novo ou renovador. O dilema de saber a verdade que tenho que calar.
Cada vez mais a vida é algo muito mais estranho e desconhecido. E é o intervalo que me cabe do tempo posto pela eternidade, que me torna desconhecido de mim mesmo e estranho, um estranho diante do espelho. Não sei quem sou diante de todos os espelhos.
Eu estou a procura das coisas simples no meio de toda complicação que as escondem. As coisas simples não existem. As coisas simples são a gênese das coisas complicadas.
A vida. A morte. O amor. A solidão. A felicidade existir ou não.
A angústia de viver, o medo de sonhar, a dúvida ameaçadora, a possibilidade de a vida acabar e não haver outra. A possibilidade de haver outra e a dúvida não se solucionar.
Eu sei que estou só no grande deserto. Mas tenho que procurar por água. Eu sei que a terrível tempestade a todos afeta, embora me afete de modo particular. Eu sei que estou perdido dentro da noite mais escura, vagando madrugadas adentro, sempre indo embora dos lugares e das situações em que quero estar, por um terrível sentimento de não pertencer a esses lugares e não atuar nessas situações. Eu sei de um certo modo que há um algo em mim de não pertencer a esse mundo que é pouco para mim, ou talvez eu seja pouco para ele. Então o que é pouco pode-se jogar fora. E eu me joguei fora desse mundo várias vezes.
Assustado. Estou assustado com meus pensamentos sempre digressivos, estou atordoado por causa dessa visão estonteante da realidade, exata, ela mesma, sem tirar nem por, com tudo o que tem de necessário, nada além disso. Nada além.
E eu gosto de todos os momentos da vida exatamente quando eles acabam, os bons e os ruins. Sim. Também os bons. Quando eles acabam não preciso sentir a angústia que sempre é não poder vivê-los nunca mais.
Eu já fui profeta da esperança. Hoje sou testemunha de meu próprio desespero.
Eu faço planos de não sentir e sinto tanto não sentí-los que acabo sentindo o que não queria sentir.
Eu não quero amar. Eu não quero sonhar. Eu não quero a ilusão que a realidade impõe para esconder seu rosto maldito. Eu quero aprender todo o silêncio que tanto cultuo. Eu quero experimentar toda a solidão que me é possível, e trancar todas as portas e cerrar todas as janelas e existir como existe o cume da montanha mais inexplorada e o meio da floresta impenetrável.
Quero ver através dos rostos, ouvir além das palavras, compreender além dos pensamentos. Quero sentir a dor de viver única e intransferível. Quero empunhar a espada cansada na batalha derradeira e olhar ao lado e não ver você, porque quero você viva.
Ser sepultado na relva, naturalmente, entre "árvores e esquecimentos e ausências de amanhãs", quero que apaguem meu nome de todas as lembranças e que quando quiserem reverenciar alguma memória que seja minha, respirem o ar da montanha, do alto o vôo infinito que me levou ao nada trará palavras ao vento, histórias de antanho, palavras trazidas pelo vento que nunca foram ditas, mas que o silêncio por elas gerado disse tudo talvez mais do que se diria, sobre uma alma que não é desse mundo e nem desse tempo, que perdeu suas asas nas batalhas da vida e teve que morrer para voar outra vez.
Quem quiser reverenciar minha memória que me esqueça e não mais pronuncie meu nome. Para eu não sentir a tentação de voltar para esse mundo a que não pertenço, muito antes do tempo em que deveria ter vindo. De novo.
Eu me faço ávore. Eu vivo na montanha. Estou no ventre da terra. Nas asas do tempo.
Vôo ainda mais uma vez.
E despareço.
É o começo.
Ou outro fim.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Pleno de vazio


Agora estou pleno de todo o vazio do mundo. Tudo o que me falta é o sofrimento que me acalentava os dias e enganava-me os pensamentos. E era tudo verdade, sofrer era a única verdade possível. Agora me vejo privado dessa doce ilusão de existir como uma grande desculpa de mim mesmo. Agora estou só sem mascara diante do espelho. Meus olhos querem me enganar sobre o que vejo, minha razão quer se fazer de demência. Mas há coerência nessa lucidez. Há o grande problema insolúvel da vida: estar vivo.
Falta-me conteúdo para uma plausível tristeza. Faltam-me motivos para justificar essa solidão: é o querer ou o poder. É o pegar ou o largar.
Faltam-me escrúpulos exigíveis para os próximos passos. Falta-me necessário esquecimento do passado, falta-me a liberdade de sentir-se livre. Falta-me a consciência clara de não depender de ninguém.
Agora só tenho tudo o que me falta. Agora é só com isso que posso viver e tocar em frente, mesmo diante de caminhos desconhecidos, áridos e perigosos, eu tenho apenas o próximo passo.
Eu sou não o caminho, mas o caminhar que faz o caminho.
Eu sou não a verdade, mas cada pergunta que a busca.
Eu sou não a vida, mas a insuportável espera pela morte.
Eu sou a incógnita, o não-saber. Eu não tenho resposta.
A palavra engasgada na garganta. Isso é a pergunta e a resposta. Ao mesmo tempo.
Agora tudo o que tenho é tudo o que não posso carregar.
E agora tudo o que carrego é exatamente aquilo que não é meu.
Tenho a dor e o medo, tenho o desespero do tempo passando rápido, a angústia inauguradora desse novo amanhecer. No qual não vejo nada de tão novo assim.
Tenho a imposssibilidade dos dias vindouros. A incerteza de cada amanhã. Tenho o agora improvável. O impossível hoje. Todo o nada que sou. Que me restou. E que me gerou.
Tenho que romper a bolsa e nascer, senão morro de novo engasgado.
Tenho que recomeçar. Tenho que respirar. Tenho que acordar. Num mesmo velho dia.
Na mesma insuportável manhã. E ir rumo ao nada. Ser tudo.
Mesmo que ao acordar eu não saiba quem sou. Nem onde estou.
Mesmo que ao acordar eu me sinta terrivelmente vivo.
Para ser nada.

terça-feira, novembro 01, 2005

Está feito


Está feito tudo que se desfez e que não se pôde mais refazer. Está perfeito o imperfeito de todas as coisas cujas perfeições muito pouco importam. Está terminado o que não se começou e se desistiu de fazer. O que agora é, é o que sempre seria. Ou outra coisa se insinuaria com um gesto ou um passo diferente? Ou outra realidade se faria simplesmente por se querer? Está dito tudo o que não se ouviu e esquecido tudo o que nem se ousou pronunciar. Está sepultado tudo o que ainda nem se deu ao luxo de ao menos morrer. E o que não nasceu partiu para sempre, para dentro da imensidão vazia do universo. Distante, muito distante.
Sou devoto do tempo, único deus que reconheço. Sou filho do silêncio e da solidão e sempre soube disso. Mãe que me afasta do resto da humanidade e pai que nega-me o poder das palavras.
Está certa mais essa incerteza de se ter feito o certo, ou errado muito sem querer. É verdade toda essa ilusão que agora dá lugar ao torpor de quem olha de frente para a luz do sol, cegueira e desorientação, é tudo tão real como todos os sonhos ruins de tantas noites.
Está dado mais um passo que me levará a lugar nenhum, quando me trouxer de onde nem me levou. E está posto mais um caminho que me apresenta todas as possíveis distâncias. E eu as conheço todas, eu já fui ao ponto final de todas as fugas possíveis e imagináveis.
Está tudo triste de um jeito diferente. Tudo mais vazio de coisas das quais nem mesmo precisava. Resta-me ser acalentado então pela solidão e pelo silêncio. Pai e mãe.
Estão perdidas todas as lembranças com exatamente aquele sabor, ou aquele cheiro, ou talvez ainda com aquela sensação de querer viver de novo os momentos por elas trazidos. Tudo paira estranhamente num jardim suspenso no passado, como flores sem água a fenecer numa questão de tempo.
Sou amigo de todas as minhas dores e fiel a todas as minhas lágrimas. Sou consciente de meus mais terríveis temores, talvez não de um único, o maior deles, que sei que existe mas não sei qual é. Sou cúmplice de todas as minhas palavras. E escravo de meu silêncio.
Eu acordo ao me ver dormindo na cama. Eu não sei se vivo ao me ver morto andando à esmo por estranhas estradas. Eu estou pertido aqui tão perto de onde vivo, pois não sei se vivo.
Está perdido tudo aquilo que nem se viu, que não apareceu ou não existiu. Há uma vaga noção de desperdício esse acordar mais uma outra vez em um outro amanhecer. Esse dia, mais um dia, a arrastar-se modorrento a entranhar-se nas profundezas do tempo. Tempo que é tudo o que não volta, que não se refaz, que não se toma, que não se tem, que nos devora avidamente.
Está pensado o pensamento que não se manifestou, está dito o que não virou palavra. Está no olhar que nada vê. Está no grito que não escapa, na lágrima que não é vertida, está na felicidade que não vem, na alegria que não se tem, no abraço que não me contém.
Está tirado tudo o que não se deu.
Resta andar a refazer caminhos que guardam lembranças, na esperança de encontrar restos de tudo aquilo que não fomos, não tivemos e não fizemos. Resta essa angústia por um momento no porvir, que engula tudo o que passou e me faça olhar para frente, para não saber enfim o que estou vendo.
Resta voar ao sabor do vento.
Não há refúgio mais para meus subterfúrgios, não há como esconder tudo o que vivi mostrando tanto para ninguém ver de verdade. Não há mais a esperança de algo que traga juventude ou vontade de viver. Vou cumprir meu tempo na terra como quem nem quisera mesmo ter vindo.
Há ruínas imensas espalhadas em volta de tudo aquilo que não construí. Há um resto devastado de mim mesmo que não vai ser mais cultivado, uma terra árida banhada em sangue. Antigas batalhas não travadas, guerras inteiras em que se dormia ao lado da morte. O vazio de olhar em volta e não saber para onde ir.
A solidão é um deserto. Sou filho do deserto.
E meu grito já escapou na imensidão:
Eu saio de dentro do imenso vazio que contém o mundo
E trago dentro de mim toda a consciência do nada
Meu murmúrio é nada mais que um ranger de dentes
É sair de uma vagina. É entrar numa latrina
É rastejar por dentro do esgoto fugindo
Buscar o grito último para quebrar o silêncio
Lançar-se no abismo infinito de um outro espelho
Sentir a luz dos olhos gotejar sangue
Eu saio liquefeito em meu próprio vômito
Eu me desfaço em cada absurdo passo
Eu não volto, eu só vou
Eu vôo
E sumo