quinta-feira, março 29, 2007

Sobre Amor e Distância

Agora há uma enorme distância entre ela e eu, mais ou menos com seus efeitos amenizados por uma comunicação via e-mail, telefone e cartas. Isso mesmo, cartas, aquelas coisas que a gente escreve à mão e tem que ir por lá numa coisa que se chama correio. E a distância é um problema, não vou ser tão tolo a ponto de negar isso. Mas como todo problema, tem uma solução.
O que parece um problema insolúvel são as pessoas a minha volta, encarando essa distância como um problema maior do que já é, esmiuçando todas as nuances possíveis, escarafunchando o máximo possível, para um vaticínio irritante. Um namoro não sobrevive à distância. E eles insistem em dizer: “ela vai arrumar outro”. Ou em perguntar: “quando ela vem aqui?”, “você vai lá?”, “como vocês vão fazer?”, “como é que fica?” etc.
Quando eu era garoto, minha avó materna morava a uns quatrocentos quilômetros de distância. Na impossibilidade de empreender viagens rotineiras de visitas e telefonar, porque tanto eu quanto ela não tínhamos telefone, eu escrevia cartas. Eu devia então esquecer, “amigos”, que a mãe de minha mãe existia, porque afinal de contas, ela estava distante. Mas eu escrevia cartas. Contava como iam as coisas e pedia por notícias. Essas coisas antigas que quase não existem mais hoje em dia, a não ser nas camadas menos abastadas da sociedade. Mandar e receber notícias, ainda que no ritmo do envio e recebimento das cartas pelo correio, davam uma certa sensação de proximidade.
Minha irmã está há oito anos vivendo no Japão. Vez por outra nos encontramos no msn. Onze horas da manhã aqui e onze horas da noite lá. Conversamos até que me dê fome e nela sono, quando eu vou almoçar e ela dormir. Essa minha irmã nasceu quando eu tinha oito anos, foi adotada, quase levada de volta pela mãe dela, não fossem meus veementes protestos, que fizeram meu pai registrá-la no nome deles. Não deixei, a custo de muita choradeira, que levassem o “meu bebê”. Essa minha irmã é na verdade minha prima. Melhor dizer que essa minha irmã foi minha prima. E ela está a doze horas de avião daqui. Melhor seria esquecê-la, porquanto essa distância mais que parece intransponível. Mas nos falamos por msn.
Alguns de meus irmãos e irmãs moram em Osasco, minha mãe mora em Carapicuíba. Melhor nem lembrar que existem, porque afinal, apesar de estarem a um pulo de trem, há uma certa distância. Melhor não amá-los, melhor, então, há que se dizer, desistir de tudo na menor dor de barriga. Não é verdade, ou pelo menos a verdade do que querem e como querem que seja?
Distância. Conheço tanta gente que vive tão distante dos outros que estão cara a cara, ali do lado, na mesa ao lado, na sala ao lado, na casa ao lado, no apartamento ao lado. Ao lado e tão distante.
Então tudo o que ouço hoje é que o amor vai esfriar, que ela vai me esquecer, vai conhecer outra pessoa. Claro que ouço que isso pode acontecer comigo também. E tenho que ficar ouvindo essas “verdades absolutas” que passam ao largo de tudo o que desejo e de tudo o que eu penso.
Daqui a quinze anos, terei sessenta anos de idade. E sei que amarei a arte, tanto quanto amava aos dez anos de idade, quando vi a primeira reprodução de uma pintura a óleo. Enquanto a patuléia luta em vão em busca do amor eterno, eu percebo que o eterno da vida é tudo aquilo que se encontra entre dois eventos importantes da própria vida: o nascimento e a morte.
Poderia recorrer à expressão “amor à vida”, alegando ser esse o amor eterno tão buscado e almejado por todos. Mas não, não me arrisco. Eterna é a vida desde o momento que eu nasci até o momento em que morrerei, nada mais. E sobre felicidade sempre tenho a dizer duas coisas, que para mim são as mais importantes: primeiro, não sou feliz; e segundo, não sou infeliz.
Esse idealizado amor, esse amor que se pretende eterno, esse amor inimaginável, dizem, não existe. E não existe mesmo. Não vou recorrer aqui à idéia platônica de um amor em si. Limito-me a dizer apenas que existe amor. Que não confundamos o amor dirigido a uma pessoa, esse que muda, se engana, esfria e acaba. Sim, o amor por ela, por minha amada ora distante, também faz parte desse amor, dirigido a uma pessoa, que pode acabar. Ou não. Quem sabe ou saberá, quem poderá dizer? Contento-me em não saber o que é o amor, mas simplesmente saber que é amor. E saber que é amor o que agora sinto serve de lenitivo para o problema indiscutível da distância.
No mais, essa relação causa e efeito sem cuidar da conexão necessária, faz com que as pessoas emitam seus mais ridículos e não fundamentados palpites, obra do uso e do costume, do hábito, da repetição dos eventos.
Lembro agora um livro que preciso ler de novo, “O Amor nos Tempos do Cólera”, de Gabriel Garcia Márquez, em que a distância fez o amor não esfriar mas esquentar, a ponto de ele se realizar no fim das contas, aliás, somente quando ele era possível. No mais, sobre amor e vida, uma boa sugestão é lerem “Memórias de Minhas Putas Tristes”, do mesmo Garcia Márquez, e pensar um pouco sobre o assunto.
Posso dizer que amo tanto aquela mulher que ela tem até o direito de não me amar de volta.
Mas isso, definitivamente, o populacho não entende.
O populacho não tem avó nem mãe, prima que virou irmã adotiva.
O populacho não tem amor.

segunda-feira, março 26, 2007

Vendo o mundo pela janela

Devia dizer que a tristeza por vezes pega um avião e vai lá para outro lado do mundo, ou para um outro estado ou outra cidade, para de manhã bem cedo estar já do meu lado, traduzida nesse sentimento um tanto depressivo de estar entregue ao que chamamos rotina.
Todo dia a mesma coisa, esse disfarçar que vive, que o futuro está ali em frente e sorrindo, que amanhã vai ser melhor do que hoje, sem ter certeza de que o hoje é melhor do que o ontem. O diabo é que vivemos o momento que passa, pelo menos nos nossos desejos, sonhos e anseios.
Rotina. Todo dia a mesma coisa. Eu aqui o dia inteiro diante do computador, minha janela para um outro mundo que não esse, ou melhor, para tantos mundos que não esse. Mas o que tenho é esse mundo.
As coisas podiam ser diferentes. Mas elas nunca são diferentes. As coisas são o que são, e mesmo nós poderíamos ser diferentes, mas somos o que somos.
Esse sentimento de inutilidade. Diante da realidade, ficamos procurando sempre dar um sentido a tudo, e esse sentido tem que ser no mínimo útil.
E a rotina estabelecida há tanto por não sei quem diz sempre que se tem que trabalhar, ganhar a vida, ganhando o dinheiro necessário para isso, planejar o futuro, ter uma ambição na vida, sonhos e planos, uma meta que seja, um sentido, portanto, à completa noção de absurdo que nos suscita viver a vida.
E eu queria agora somente e tão somente ser um inútil. Não passar disso, não ter o mínimo de destreza para e vontade para direcionar meu pensamento ao desejo de algo. O que eu almejo é não almejar, o que eu preciso é não precisar, e o que quero é não querer.
Tudo seria fácil, mas não seria real. Real é essa incompletude, esse buscar insano de sabe-se lá o que.
Passou todo esse dia e passou vazio. Com a absurda consciência de que oito horas por dia por trinta anos ou mais de nossa vida, passamos enfurnados num escritório.
Vendo o mundo pela janela.

quinta-feira, março 22, 2007

Profecia (só para atualizar)

Eu tomava uma cerveja com uma amiga. Falávamos de tantas coisas como sempre, do trabalho, da vida, das pessoas. De nossas próprias vidas. Em comum tínhamos a solidão, os dois separados, contávamos nossas mazelas, a falta que faz uma pessoa na vida da gente. Foi quando ela me perguntou se eu achava que não ia aparecer ninguém na minha vida. De súbito, sem pestanejar, respondi que sim, que essa pessoa iria aparecer no dia vinte e dois de novembro de dois mil e seis. Isso seria, caso se concretizasse, uns nove meses depois. Depois disso, até mesmo eu achei graça do que disse, vinte e dois de novembro.
Esse dia chegou e escrevi um e-mail para uma outra amiga, cujo teor é mais ou menos o que se segue abaixo:

Um sonho no meio da noite quis se apresentar como profecia, acordei com a idéia na cabeça de que no vigésimo segundo dia do décimo primeiro mês do meu quadragésimo quarto ano de vida, eu encontraria a mulher da minha vida. Minha manhã foi normal e não devia ser no dia 22º-11º-44º, cuja soma dos algarismos resulta o mesmo que 22-11-2006, o dia em que aquele sonho tão doido pudesse se realizar.
Vou escrever um conto, no qual partes dessa carta terão de aparecer, porque rascunho o conto enquanto escrevo a carta.
Olhei pela sacada para ver o tempo, e vi uma mulher longe na rua de cima, não podia ser ela, não passaria assim tão longe. Esse encontro tinha que se dar cara a cara ou num esbarrão, que eu lhe derrubasse os livros, ou as compras, que a gente sorrisse e risse da situação, duas pessoas tão distraídas encontrarem-se para a vida inteira.
Mas aí eu estaria escolhendo a situação, e mesmo a mulher eu estaria escolhendo, quando ocorre que ela já podia ter aparecido, mas onde estaria, eu que ando mais distraído do que o normal para essas coisas.
Abri um livro no metrô e evitei olhar as pessoas, evitei olhar as mulheres, ela que me escolhesse. Mas no caminho de casa até o trabalho, não fui escolhido por nenhuma. Da estação à porta do prédio em que trabalho, não fui escolhido. Dentro do prédio também não. Cheguei no meio do dia e nada de a profecia se realizar. Eu que tinha aberto uma exceção para crer por um dia em profecias, principalmente aquelas sugeridas pelos sonhos, caí no ceticismo de novo. Mas o dia ainda não terminou, resolvi pensar em outra coisa, talvez na prova de sexta-feira, no que vou ter de ler de Nietzsche, Freud e Marx.
Então pensar outra coisa, como se outra coisa fosse uma coisa que não está na vida, entre tantas dessas coisas de que não gostamos e que não queremos, das quais estamos tão enjoados quase sem perceber, outra coisa como o aparecimento da mulher da minha vida. Acho que ela não é pontual, já devia ter vindo, dias desses qualquer, nesses três anos, os três melhores piores anos da minha vida. De tudo ocorrer assim em pares de opostos, de tudo acontecer assim em possibilidades dentro das impossibilidades ou vice e versa. Os melhores e os piores ao mesmo tempo, tudo ao mesmo tempo dando um cansaço insustentável, sem nenhuma leveza no ser.
Eu que queria voar, rastejo sobre a terra, queria desenhar e pintar e tenho que ler Kant. Queria que ele fosse vivo para ler o que escrevo. Queria que eles todos, os filósofos estivessem vivos e eu escreveria a eles sobre voar e rastejar, arrastar-se na vida sem saber aonde vai dar. E cansado.
Um Objeto Rastejante Não Identificado, melhor definição que recebi até hoje, por ser objeto, por rastejar e por não se identificar com nada ao mesmo tempo que se identifica com tudo.
Escrevo cartas, poemas, eu escrevo como se houvesse alguma verdade ou alguma verossimilhança da realidade com a verdade, alguma coisa muito além de todas as vicissitudes humanas.
A única realidade que me é palpável é que estou sozinho e aprendendo aos poucos e cada vez mais a viver assim. E sei que assim será.
Minha maior aventura é essa quietude, esse recolhimento, esse aprofundar-se para dentro de si mesmo, sem medo do que vou ver, só porque não sei se vou ver.
No quadragésimo quarto ano de minha vida, tudo para trás se dissipando e tudo a frente envolto em brumas.
E amanhã eu sei que nunca mais acreditarei em profecias, e nem em sonhos.

Pois foi ainda nesse dia, o vigésimo segundo dia do décimo primeiro mês do quadragésimo quarto ano de minha vida, às 19:40, quando ela chegou em casa e me disse que queria pedir uma coisa. Eu pedi foi uma pizza, a fome era danada, e conversamos sobre tudo o que estávamos acostumados. Eu, que tinha esquecido da bendita profecia, achei de lembrar dela. No fundo, bem que podia ser ela. Mas qual o quê, até que tinha pintado um clima, mas tudo ainda sem uma solução definitiva e favorável. Foi quando lembrei de perguntar o que ela ia querer pedir. Pois ela pediu para ficar uns tempos em minha casa. Uma fração de segundos foi necessária para que eu voltasse um ou dois anos no tempo e tentasse até vislumbrar o futuro que incluía nós dois dividindo o mesmo apartamento, quando voltei a mim para responder rapidamente: “Claro! Claro! Quando você vem?”. Ela me respondeu que na sexta-feira. Ela não veio na sexta, eu pensei que tudo fosse besteira, que tivesse se arrependido. Mas no sábado, quando voltava do trabalho, eis que ela me liga, pedindo ajuda para carregar as malas. Dei meia volta e resumo a história aqui para dizer que sim, ela veio e ficou alguns dias, depois foi passar as férias com a família, depois voltou de novo e depois voltou em definitivo, para terminar lá os estudos.
E que estamos namorando, começamos e continuamos. Mas o resto da história só mesmo no conto, que por ora já tem onze páginas e ameaça virar um romance. Quem sabe! Quem sabe meu romance vire um romance.

quarta-feira, março 21, 2007

Dimetilcloroizotiazolinona

Isto aqui nem é tão inédito, seguiu hoje numa carta para alguém que está distante e que me faz morrer aos poucos de saudade.

Sempre me impressionou a palavra paralelepípedo. Sempre gostei de palavras exóticas e compridas. Eu lia de tudo, quando garoto, de bula de remédio (meu pai era farmacêutico e as amostras grátis abundavam em casa) a embalagens de tudo quanto é produto. E somente na química é que se encontram os nomes mais compridos que existem, como o do título desse post, que é um componente de shampoo, que aliás não vejo mais.
Dei para escrever cartas, à mão, aquelas que a gente põe no envelope e vai postar no correio. E, devo dizer, é muito mais gostoso do que e-mail. Claro que não ter computador em casa ajuda. Mas limpei minha mesa, tenho agora à disposição meu estoque de papéis e canetas, e os envelopes, que gosto de chegar no correio com tudo pronto, já colado, para selar e mandar embora. Sempre acho como pôr uns anexos. Na última foram três desenhos. Eles vão lá matar a saudade dela e eu fico aqui morrendo de saudade.
Agora que me tornei leitor quase assíduo de Voltaire, vi uma crítica boa dos usos que sempre foram feitos da Palavra, no caso, da palavra da revelação divina. Por ela e por causa dela, matou-se, corrompeu-se, prevaricou-se e praticou-se por séculos inteiros a intolerância.
Os preconceitos instituídos têm o poder de virar lei, dogma, o caminho certo. Quem não cumpre é ímpio ou herege, o que dá no mesmo, já que o destino dos dois era sempre morrer na fogueira ou na tortura na roda.
E é pelos nossos preconceitos, e nunca pelos conceitos, que julgamos e condenamos as pessoas.
A palavra, como já disse, sempre teve o poder de me intrigar, aguçar a curiosidade. Gostava de redação no ginásio, e era bom nisso, por causa dessa curiosidade com as palavras. Sempre cultuei dicionários e gramáticas. As palavras, mágicas, mostravam como era o mundo, ou construíam mundos novos, ou podiam expressar nossas ações e nossos sentimentos, falavam do concreto e do abstrato com a mesma desenvoltura.
Bacharel em filosofia, foi na graduação que as palavras me atrapalharam um pouco. A filosofia e seus argumentos, a preocupação com a verdade, entender de uma forma exatamente aceitável o que tal autor quis dizer naquele texto, ou perder-se no embate de tantos comentadores. Não posso ler sozinho, é impossível ler sozinho um texto filosófico. A tradição vai sempre dizer que existe alguém que já fez isso melhor e mais do que eu. E seus comentários vão valer muito mais do que os meus. Em vez de entender o texto do autor propriamente dito, tenho que entender o texto do comentador daquele autor, ou seja, o que ele escreveu sobre o que entendeu sobre o autor.
Com uma dificuldade adicional: tudo isso está escrito em grego ou latim, em francês ou inglês e mesmo em alemão, dependendo do autor em questão.
A sugestão que eu poderia dar aqui, é que se criasse um órgão acadêmico que classificasse as traduções, tipo um INMETRO da tradução. E que as universidades fomentassem um intercâmbio entre os cursos de letras no sentido de montar um curso que fosse isso. Aí eu ia querer ler Kant e saberia que estava com uma boa tradução. Vão dizer que já existe isso e muitos professores até indicam quais são as melhores traduções. Mas não é só isso, crie-se esse órgão acadêmico e as editoras poderão continuar com seus “bons” tradutores a preços módicos, mas para quem quer fazer um mestrado e doutorado sem ter que aprender uma língua estrangeira, recorreria às traduções das obras dos autores com essa classificação. Seria como uma certificação ISO9002 para as traduções. Se você é um interessado em filosofia, ou estudante, pode até ler as obras traduzidas pelos bons tradutores, mas se quer ser um pesquisador, vai poder ler uma tradução certificada. Não seria chique?
O fato é que eu quero fazer mestrado e doutorado, mas não tenho tempo, dinheiro e paciência para aprender uma língua estrangeira. Não sou xenófobo, mas quero pensar e entender a filosofia em minha própria língua. Utopia, eu sei, mas sempre me vem a imagem de um nativo de nossa terra verde amarela ter que falar outra língua para prestar socorro a gringo em apuros em nossa própria terra: can I help you?
No entanto, como leio e escrevo poesia, sei que alguns jogos de palavras e algumas sutilezas lingüísticas até são de certo modo intraduzíveis. Para isso, teríamos uma tradução especializada, ou melhor, certificada. Dá para imaginar o mercado de trabalho que isso abriria aos que se interessam por dinheiro?
Mas não vou deixar de ser chato. A mulher que amo está há setecentos quilômetros de distância e nos comunicamos por telefone, e-mail e por carta. E eu me sinto o mais aventurado dos homens por falar essa nossa rica língua, pois termino as cartas e os e-mails dizendo “saudades”, “muitas saudades”, “saudades tamanhas” e, na última, “saudade com a consistência de um paralelepípedo”.
Imaginem que eu ia dizer I miss you!
Triste povo que não tem em seu vocabulário a palavra saudade.
Aliás, aproveito para dizer que padeço de saudade.

PS.: dimetilcloroizotiazolinona é um componente de shampoo. Mas acho que já disse isso.

quinta-feira, março 01, 2007

Sobre amigos e asas, ciclos e círculos

As pessoas se relacionam entre si pela interposição de distâncias, pequenas, médias ou grandes, no tempo e no espaço. E por afinidades ou falta delas, pela confluência ou conflito de interesses, por conveniência, falta do que fazer, pura e simplesmente passatempo. Talvez por falta de uma outra opção. “Já que não tem tu, vai tu mesmo!”. Mas até que desses acidentes pode brotar alguma amizade mais estreita, restando-nos selecionar os nomes associados às pessoas e aos seus atos, sua taxa de consideração e atenção. Não há nada mais simples e mais complicado do que uma boa amizade. Amigo, essa entidade tão metafísica que duvidamos por vezes que exista realmente.
De minha parte, fiz a catarse necessária. As rampas e as salas, as dependências todas da nossa já antiga universidade. E no bar, quando tive oportunidade de sentar-me numa mesa sozinho, num dia em quem não havia quase ninguém, e tomei minha cerveja catártica, olhando em volta os espaços vazios, mesas e cadeiras e copos, o chão, a rua toda, as mesas de bilhar. E fui preenchendo com as contingências de reminiscências ainda tão recentes, certo de que a maior das contingências é aquela que nos reserva o futuro. Não sei encarar o futuro sem olhar para o passado. Não sem uma necessária catarse. Para sair inteiro, despojado, sem mácula ou lacuna, sem nenhum tipo de dependência do que passa ou acaba, daquilo tudo que nunca mais vai ser o mesmo. A não ser eu mesmo, acrescido de tantas outras mesmices tão repetidas ao longo de três anos.
E, para me perguntar agora o que vai ser amanhã, basta olhar para o passado, quando não me perguntava o que vai ser do hoje. Solução de continuidade, avançar sempre sem se prender, sem criar expectativas arbitrárias e autoritárias que me levasse a crer que as coisas têm de ser de um modo e não de outro. Expectativas que me fixariam, exatamente quando mais preciso de mobilidade, de flexibilidade, de continuar uma jornada iniciada quase que ao acaso, por mero descuido, quase que sem querer. Sem querer é que não quero nada. Nada além do que eu tenha e possa ter, nada além do que eu seja e possa ser. Sei que há o desejo, mas esse gênio maligno prende-me muito pouco e, ao invés de ser inimigo do desejo, o desejo é meu brinquedo favorito, meu único e permanente amigo imaginário. Imaginação, isso mesmo, triste daquele que não tem imaginação. As ilusões são rascunhos do que somos e queremos, dependem de uma boa arte final. Esqueçamos os rótulos das coisas, para termos as coisas elas mesmas. Uma fotografia de um momento feliz não é o próprio momento. Então colecionemos os momentos eles mesmos, isso vale muito mais.
Eu preciso de muito pouco e isso é tudo o que tenho. A tranqüila consciência de que fiz, em tudo, a minha parte. Estive ali e disse a que vim. Só não sei se poderei dizer, ao sair, por que fui. Eu simplesmente vou. Eu preciso ir, preciso sair, preciso andar adiante, ser outro e eu mesmo a um só tempo. E essa incapacidade de jogar coisas fora, essa mania de colecionador, faz com que o acúmulo de tanto tenha que ser de um jeito a compactar tudo em pacotes bem menores. Eu lembro e esqueço com a mesma facilidade, para esquecer o que lembro e lembrar o que esqueço e, assim, perder quase nada pelo caminho.
Os três piores melhores anos da minha vida ou, como também gosto de poder dizer ao contrário, os três melhores piores anos de minha vida.
Não tenho espaço na bagagem para mágoas e rancores, nem saudades desnecessárias, mas somente para as imprescindíveis.
Um “ciclo” se fecha. Fecha-se um “círculo”. Fui mal compreendido quando proferi essas minhas frases de algum efeito, mais a mim mesmo do que para os outros. Não entenderam que um ciclo abre outro e que um círculo fechado está sempre circunscrito em um outro que se abre. Contém e está contido. A linguagem poético-filosófica tem o estranho poder de me trair um certo desprendimento, uma descolocação, um sacudir do pó das sandálias para seguir adiante. Uma necessidade de consideração para tudo quanto é pessoa, a ponto de não me afetar por acepções de qualquer ordem, um ódio afeito a hierarquias de qualquer natureza, um nivelamento sempre pelo meio, para colocar tudo e todos no meio e no meio de tudo e todos poder estar.
Daqui a três dias haverá a colação de grau de minha tão tumultuada graduação. Formado em filosofia sem nada saber dela, achando que tudo deve ser assim mesmo. Nenhuma idéia para um projeto de mestrado, muito menos doutorado, resta-me a eficiente administração do tempo que agora tenho não precisando freqüentar aulas e bares, nem me esforçar para agradar a gregos e troianos.
Tudo, talvez, como a tempestade de verão de agora há pouco, relâmpagos e trovões, o céu cinza e muita água abaixo. De repente o silêncio nas nuvens, o céu que se faz limpo e o ar mais fresco. Sentimento de bonança, exterior e interior.
Não sei para que serviu tudo ou para que servirá. Não me importa. A não ser a contabilidade acurada de quem eu era quando entrei e quem sou ao sair desse “ciclo-círculo”. Com tudo circunscrito. O que é para guardar e o que é para deixar de lado, o que tem que ficar para trás. E, principalmente, com tudo aquilo que se abre em mais um “ciclo”. Ou “círculo”. Certo de que sou o ponto móvel de minha existência. Vou aonde quero e posso. E faço o que quero e posso.
E, como diz meu poeta português preferido, “Amei e odiei como toda gente...”, e tudo foi assim instintivo, necessário, tudo foi o que tinha de ser.
Como portas e janelas, minhas imagens preferidas n’alguma metafísica de meus poemas, tudo se fecha e se abre. Ou melhor, em vez de altos e baixos, prefiro a imagem de pairar entre duas imensidões absolutas, o céu e o mar, o tempo e o espaço. Eu e o outro.
E não levarei na bagagem nada além do que possa carregar. Talvez tudo o que não tenha peso e não seja inútil. Vou andar, mas posso precisar correr. Vou rastejar pelo solo, mas posso precisar voar.
E tudo o que agora sei é tão simplesmente sobre asas.
Amigos todos são, porque meu nível de exigência é ínfimo e meu coração é grande como cada círculo que se abre.
E são todos livres para me quererem ou não, para lembrarem de mim ou me esquecerem.
Desde que também sejam dotados de asas...

(Para Trinity)