quarta-feira, março 21, 2007

Dimetilcloroizotiazolinona

Isto aqui nem é tão inédito, seguiu hoje numa carta para alguém que está distante e que me faz morrer aos poucos de saudade.

Sempre me impressionou a palavra paralelepípedo. Sempre gostei de palavras exóticas e compridas. Eu lia de tudo, quando garoto, de bula de remédio (meu pai era farmacêutico e as amostras grátis abundavam em casa) a embalagens de tudo quanto é produto. E somente na química é que se encontram os nomes mais compridos que existem, como o do título desse post, que é um componente de shampoo, que aliás não vejo mais.
Dei para escrever cartas, à mão, aquelas que a gente põe no envelope e vai postar no correio. E, devo dizer, é muito mais gostoso do que e-mail. Claro que não ter computador em casa ajuda. Mas limpei minha mesa, tenho agora à disposição meu estoque de papéis e canetas, e os envelopes, que gosto de chegar no correio com tudo pronto, já colado, para selar e mandar embora. Sempre acho como pôr uns anexos. Na última foram três desenhos. Eles vão lá matar a saudade dela e eu fico aqui morrendo de saudade.
Agora que me tornei leitor quase assíduo de Voltaire, vi uma crítica boa dos usos que sempre foram feitos da Palavra, no caso, da palavra da revelação divina. Por ela e por causa dela, matou-se, corrompeu-se, prevaricou-se e praticou-se por séculos inteiros a intolerância.
Os preconceitos instituídos têm o poder de virar lei, dogma, o caminho certo. Quem não cumpre é ímpio ou herege, o que dá no mesmo, já que o destino dos dois era sempre morrer na fogueira ou na tortura na roda.
E é pelos nossos preconceitos, e nunca pelos conceitos, que julgamos e condenamos as pessoas.
A palavra, como já disse, sempre teve o poder de me intrigar, aguçar a curiosidade. Gostava de redação no ginásio, e era bom nisso, por causa dessa curiosidade com as palavras. Sempre cultuei dicionários e gramáticas. As palavras, mágicas, mostravam como era o mundo, ou construíam mundos novos, ou podiam expressar nossas ações e nossos sentimentos, falavam do concreto e do abstrato com a mesma desenvoltura.
Bacharel em filosofia, foi na graduação que as palavras me atrapalharam um pouco. A filosofia e seus argumentos, a preocupação com a verdade, entender de uma forma exatamente aceitável o que tal autor quis dizer naquele texto, ou perder-se no embate de tantos comentadores. Não posso ler sozinho, é impossível ler sozinho um texto filosófico. A tradição vai sempre dizer que existe alguém que já fez isso melhor e mais do que eu. E seus comentários vão valer muito mais do que os meus. Em vez de entender o texto do autor propriamente dito, tenho que entender o texto do comentador daquele autor, ou seja, o que ele escreveu sobre o que entendeu sobre o autor.
Com uma dificuldade adicional: tudo isso está escrito em grego ou latim, em francês ou inglês e mesmo em alemão, dependendo do autor em questão.
A sugestão que eu poderia dar aqui, é que se criasse um órgão acadêmico que classificasse as traduções, tipo um INMETRO da tradução. E que as universidades fomentassem um intercâmbio entre os cursos de letras no sentido de montar um curso que fosse isso. Aí eu ia querer ler Kant e saberia que estava com uma boa tradução. Vão dizer que já existe isso e muitos professores até indicam quais são as melhores traduções. Mas não é só isso, crie-se esse órgão acadêmico e as editoras poderão continuar com seus “bons” tradutores a preços módicos, mas para quem quer fazer um mestrado e doutorado sem ter que aprender uma língua estrangeira, recorreria às traduções das obras dos autores com essa classificação. Seria como uma certificação ISO9002 para as traduções. Se você é um interessado em filosofia, ou estudante, pode até ler as obras traduzidas pelos bons tradutores, mas se quer ser um pesquisador, vai poder ler uma tradução certificada. Não seria chique?
O fato é que eu quero fazer mestrado e doutorado, mas não tenho tempo, dinheiro e paciência para aprender uma língua estrangeira. Não sou xenófobo, mas quero pensar e entender a filosofia em minha própria língua. Utopia, eu sei, mas sempre me vem a imagem de um nativo de nossa terra verde amarela ter que falar outra língua para prestar socorro a gringo em apuros em nossa própria terra: can I help you?
No entanto, como leio e escrevo poesia, sei que alguns jogos de palavras e algumas sutilezas lingüísticas até são de certo modo intraduzíveis. Para isso, teríamos uma tradução especializada, ou melhor, certificada. Dá para imaginar o mercado de trabalho que isso abriria aos que se interessam por dinheiro?
Mas não vou deixar de ser chato. A mulher que amo está há setecentos quilômetros de distância e nos comunicamos por telefone, e-mail e por carta. E eu me sinto o mais aventurado dos homens por falar essa nossa rica língua, pois termino as cartas e os e-mails dizendo “saudades”, “muitas saudades”, “saudades tamanhas” e, na última, “saudade com a consistência de um paralelepípedo”.
Imaginem que eu ia dizer I miss you!
Triste povo que não tem em seu vocabulário a palavra saudade.
Aliás, aproveito para dizer que padeço de saudade.

PS.: dimetilcloroizotiazolinona é um componente de shampoo. Mas acho que já disse isso.

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