quarta-feira, maio 23, 2007

Prosa do labirinto

Persegue-me essa estranha mania de escrever cartas. Um rascunho de poema para hoje à noite: “Em tudo que falo penso tão triste, sentindo tão duro sê-lo...”, o que vem daí não se pode saber, as idéias são cozinhadas num caldeirão no fundo da mente, cento e cinqüenta poemas e nenhum livro. Falando em livro, um passeio na tarde chuvosa do almoço me fez entrar mais uma vez em mais um sebo, mais dois Cortazar para a coleção: “Bestiário”, que li e não tinha, e “Todos os Fogos o Fogo”. A noite cai como uma tempestade de escuridão e faz frio lá fora, e o frio parece que a tudo entristece, ou pelo menos silencia. As pessoas estão sempre a se recolher em si mesmas.
Vou mexer com papéis de desenho. Organizá-los em suas pastas, conforme tamanho e tipo. Toda a criatividade supõe um trabalho material anterior, e não sei que trabalho vem depois, tudo flui rotineiro e impetuoso, dizer as coisas é senti-las antes de dizê-las, para senti-las depois de ditas, tudo novo de novo, os círculos incessantes de tantos pensamentos insistentes.
A solidão no frio sempre parece mais palpável, parece pesar como o ar que se nos corta, sufoca e aflige, joga-nos no chão, deixa-nos como mortos.
Estranhas decisões, não telefonar mais, não escrever, não mandar e-mail, escandalizar a outra pessoa com a auto-indiferença, para que se note a indiferença que lhe causa, sabe-se lá por que motivo, ou a indiferença que se sofre. Nem tudo precisa ter motivo, como se fosse agrilhoado em relação de causa e efeito.
Saber o que fazer com a tristeza não a ameniza e nem a elimina. Torna-a real apenas, torna-a presente, e faz com que faça parte da vida, ao menos de momentos cruciais e inevitáveis.
E quando a arte não se manifesta em inspiração, como ontem foi, tem de haver o trabalho pesado, preparar folhas e folhas de papel, uma certa desordem organizada de tudo que é necessário para pôr para fora o que vem da imaginação, tanto significado tem papéis e rascunhos, pincéis e tintas espalhados pela casa. E houve de sair aquele poema a soar tão estranho quanto começou enquanto mote, em duas partes, prometendo que se alonga. Eu sei o que é isso, sempre me ocorre quando leio Cortázar, as palavras sempre deslocadas no lugar certo, as personagens sempre como pano de fundo de uma realidade à beira do absurdo, como se não fossem assim tão importantes, do mesmo modo que não somos também nada importantes.
Ainda a chuva, ainda essa luta interna por perder-se de caminhos tão conhecidos. Dizer que só é mais uma máscara. O que pode garantir que não seja isso o meu próprio rosto, estupefato por ver-se nesse espelho partido, assustado em não se reconhecer? E pensar que esses sinais se manifestam sorrateiramente, por tudo que sai pelas mãos, vindo não sei de onde, sai das mãos escrevendo, rabiscando, pintando, não pensando, não ligando para nenhuma lógica, razão nenhuma, não se importando com qualquer sentido que faça qualquer coisa, não se dando conta de que estamos a todo tempo inventando o possível dessas realidades que precisamos viver, e buscar outras realidades, verdades, certezas, um rosto no espelho.
Flutuar enquanto anda, quase poder ver através das coisas, quase um estado de ver todo o tempo transcorrer sem as limitações de passado e futuro, tudo de longe, num incompreensível presente. Capacidades nossas humanas tão aquém de tamanha percepção. Estado de esquecimento que qualquer um almejaria, melhor que isso, um estado de alheamento diante de todas as coisas, um nada, vazio, escuridão. E silêncio. Nada que justifique o medo. Nada que justifique não viver. A fuga de todas as fugas, não ter para onde fugir, não ter nem a fuga, nem sua justificação ou necessidade.
Solução possível para o eterno paradoxo, a inexistência da verdade é já uma verdade, a de que qualquer verdade pode não ser verdade, a verdade sendo o que não é pode existir, mas não é o que parece ser.
Manhã fria e chuvosa, até tão tarde ontem à noite e logo cedo hoje de manhã a impressão de que o que há é somente esse labirinto.
Eu já vi esse corredor antes.

segunda-feira, maio 21, 2007

Um monte de coisa tudo junto

Um monte de coisa tudo junto. Assim mesmo que escrevo: uma carta depois de um telefonema, antes disso, no sábado, presente na mudança de uma amiga para o Cento, bem aqui perto do trabalho. Uma alegria indescritível. Meus desenhos no final de semana, pincéis e tintas, finalmente, a leitura de mais um livro do Cortázar, “Os prêmios”, ainda as idéias de Comte-Sponville, um texto do Gonçalo Palácios, e quase li Nietzsche, para uma breve e futura investida contra os Adoradores de Nietzsche, ou Devotos, ou dos bebês-chorões que têm medo do Bicho-Papão de fartos bigodes, ele, sempre ele, Friedrich Wilhelm Nietzsche. Ai que medo! Quanta fé tem esse povo para temer perde-la?
Então do começo, o Bicho-Papão Bigodudo. Costume que tenho de ler alguns blogs de que gosto, e o impulso que não contive de um comentário, uma resposta ao comentário, eu o vilão atacando a presa indefesa, eu o perseguidor, o “ensinador” de coisas fáceis. Penso que um blog aberto a comentários parece um convite a dizer alguma coisa. Se me enganei e ofendi o autor, que ele desconsidere a intromissão primeira e permita essa segunda (e última, se for o caso), somente para esclarecer esse ponto. A minha resposta a resposta ao meu comentário seria mais ou menos essa, que redigi e resolvi manter no meu próprio campo nessa batalha ingênua de fazer de conta que todos temos conteúdo:

A devoção está na escolha do nome: Nietzsche parece tão profundo que não vou descer tanto e tão elevado que nunca vou me elevar tanto. Sou ninguém...
É difícil falar de filosofia, com filósofos. A gente sempre parece arrogante.
Somos todos platônicos? Academicamente platônicos? Tudo tão distante lá em cima e nós diante da impossível e irrealizável ascese.
O amor pode ser difícil, sim. Isso quer dizer que não pode ser fácil?
Ou é um Amor-em-Si tão inatingível? Não poderia existir também o oposto de tudo o que sente sobre o amor?
Uma pessoa boa demais para mim... todas parecem. E isso é tão bom!
Sobre os pensadores, grandes e pequenos, eu diria para sentirmo-nos grandes com os grandes e pequenos com os pequenos. Mas isso poderia parecer mais uma frase arrogante metida a ensinar alguma coisa a alguém, sempre. E eu só queria conversar.
No reino dos sentimentos ilógicos, acaso também não examinei a questão?

Fui buscar, então, no texto de Gonçalo Palácios, a fundamentação excelente para a crítica ao academicismo. Que leiam o livro “Como fazer Filosofia sem Ser Grego, estar Morto ou ser Gênio”. Três anos de estudos de filosofia e uma única vez um professor pediu para abrir um livro, escolher um trecho, um tema e dizer o que pensamos do que estava escrito. O autor era Kant, e o livro, a famigerada e temida “Crítica da Razão Pura”. Escolhi o trecho e disse o que achava. Excelente exercício de pensamento. O professor era o Robinson, a quem ainda não agradeci essa oportunidade inédita. De resto, sempre pediram para expressar o que o filósofo em questão dizia. Papagaios repetidores é o que fomos formados, graduados em comentários de comentaristas de fulano de tal, isso é o que somos. Faço uma exceção ainda à melhor de nossas professoras, a Glória, que sempre soube recortar temas e vários autores e sempre privilegiou o que ela chamava de “problematização” do texto em questão. Glória só existe uma. E ela não tem e nunca teve medo do Bicho-Papão Bigodudo, e nem Devoção.
Sábado, ex-moradora de Poá, atual moradora do Centro, tão perto de tudo. Depois de sua mudança, vindo da direção do Teatro Municipal para a Praça Patriarca, pisando o Viaduto do Chá, lembrei-me de uma noite ter passeado com ela por essa paisagem, da qual ela disse que gostava muito. Agora ela mora ali do lado, pode usufruir dela à vontade. E eu sou um tonto que, apesar de não ter demonstrado, fiquei mais feliz com a felicidade dela, do que com a minha própria. Eu só não sei por que não se desmonta uma cama para subir três andares.
O livro de Cortazar, “Os Prêmios”, várias pessoas ganham numa loteria uma viagem de barco. Alguma coisa pode acontecer, porque o suspense insinua-se em cada linha. Cortazar une a construção excelente dos personagens, numa trama sempre insólita. Leiam o “Jogo da Amarelinha”, “As Armas Secretas”, “Bestiário”, “Prosa do Observatório” e o simpático “História de Cronópios e Famas”. Cortázar é um contista imprescindível.
Acho que ela não vem para as férias. No último telefonema, no domingo, disse isso e me deixou com todas as pulgas atrás da orelha. Algo na resposta inquietou-me. As palavras têm um significado bastante específico aos apaixonados, pena que não seja assim com os filósofos e pretensos filósofos, que sempre buscam o significado exato que as palavras não têm. Ou que teriam se não tivessem o significado que têm. Ela disse que talvez não dê para vir, se ficar de dependência em alguma matéria, tiver que estudar, e tudo o mais. Não foi isso que eu perguntei. Bastava ela dizer que quer muito vir, mas teme problemas que a impeçam. Estudante muito aplicada e disciplinada. Eu fico imaginando como interrompe suas leituras para comer alguma coisa, ir ao banheiro, dormir, tomar banho. Se é que interrompe. Essa é minha birra da filosofia tornada obscura e intangível, precisamos deixar de viver para filosofar, não podemos ser normais, somos seres que pairam num plano inconcebível. Tudo o mais de corriqueiro na vida serve para atrapalhar: viver, ter prazer, amar alguém, sentir saudade, pensar em outra coisa. Então não vou ter nunca essa disciplina. Nunca vou ser filósofo. Gosto de desperdiçar bastante o meu tempo, comigo mesmo. E com alguma coisa em volta. Odeio simplesmente esse temor acadêmico, esse terror "comentariológico", essa absurda ignorância a que nos reduz os mestres e professores doutores em filosofia. Não há nada mais absurdamente besta do que escrever para ninguém entender. Ai que medo! Estamos fadados à miséria do mundo sensível, nunca atingiremos o absoluto do mundo inteligível. Que merda que somos. Que merda fazem de nós.
Enfim, que faltou dizer? Quanto medo temos, de tudo, de nós mesmos! Quão rasteiros somos, como precisamos sempre de um Guru que nos diga Rá, Ba, Tá, Foda-se. Nosso mantra devia ser Ai! Ai! Ai! Ai! O mantra do medo.
Sobre amor e felicidade, essas coisas que não existem, tanto que sempre nos parece preciso inventa-las, assim como inventamos deus. Por medo da escuridão e do nada, nos inventamos sóis, e preenchemos nosso vazio com algo tão mais pobre do que o vazio. (Obrigado, Comte-Sponville, não sou seu devoto, mas você escreve como um cara que toma uma cerveja comigo e tem um papo muito bom).
Platão sabia sobre essa necessidade de inventar as coisas de que precisamos, para sairmos desse "buraco-caverna escuro e vazio”. Inventou um mundo inacessível, para que somente os puros do logos pudessem atingir. E Nietzsche, se não tivesse ficado doente e tivesse comido a Lou Salomé, será que escreveria tão bons aforismos?
Dou minha cara a tapa. Mas nunca ofereço a outra face. Não sou mais cristão.

terça-feira, maio 15, 2007

Ataraxia

Estava agora olhando para as construções do Páteo do Colégio, onde fomos parar naquele nosso passeio no Centro. Da janela do escritório, minha prisão domiciliar, ou melhor dizendo, laboral. Fui dormir ontem tarde, muito tarde. Na cama, no escuro, pensei nos papéis enrolados ao lado da estante. E nos pincéis e tintas guardados no armário. Do lado, a prancheta desarmada. Amanhã à noite vou pintar. Há dias atrás, lendo e lendo muito, tomando notas, percebi que minha criatividade adormeceu. Ontem quis acordá-la. Eu a acordarei hoje à noite. As cores no papel branco, a mente esvaziada de tudo: ataraxia.
Ataraxia. Mesmo antes de conhecer essa palavra, sempre soube buscar uma certa ausência de preocupações. Ser nada diante de tudo em volta.
Coleciono os grandes pintores, livro que vem com o jornal de domingo. Van Gogh, Cézane, Da Vinci, Monet, Goya e Picasso, os seis livros que me perturbam o sono. E coleciono meus próprios desenhos, que vez por outra saem das pastas. Gosto muito desse movimento que agora me possui, esse ir e vir e nunca saber onde se está. Ataraxia, ausência de preocupações, a mente vazia, o nada, nossa essência, buscar o deserto, para nele se encontrar.
O mundo é muito rápido e muito fugaz. Violento. O mundo tem tudo o que não precisamos precisar, labirinto onde nos perdemos. O mundo é barulhento. O silêncio é onde nascem minhas mais importantes inquietações. Tagarelice, preste atenção à sua volta, que tudo é só tagarelice. Ninguém sabe de mim, ninguém sabe de você, ninguém sabe de ninguém. Precisamos aprender o silêncio para aprender a palavra que realmente importa, na hora que importa.
Por trás dos prédios há um céu, há terra embaixo do asfalto, há vida lá fora, lá fora de nós mesmos, há muita vida. Há vida a não ser isso tudo que nos disseram que é vida. Mas não vou arriscar, não é simplesmente ir morar no campo ou na praia, uma casa na montanha, há vida nas veias, correndo e pulsando a despeito de todas as vicissitudes humanas. Não vou arriscar, não é a plenitude de tudo quanto é material, bens de consumo e estados do ser. Há muito mais vida e a vida não pode ser só isso.
Meus passos flutuam pelas ruas, meus olhos devoram pessoas, meu olhar alimenta-se de olhares estranhos. E tão familiares... E nada me é tão familiar. Estranhamente.
Acordei hoje e estou vivo. Escolha minha. Ausência de esperanças e temores: desespero. É bom não crer em nada, nada esperar e nada temer. Falsas todas as crenças e esperanças, infundados todos os temores. Vazio e escuridão, silêncio e solidão: labirinto.
Asas de Ícaro, nem tão perto do sol, nem tão perto do mar, nas alturas. Só o vôo. Voar.
Ausência de preocupações. A vida segue seu curso e não somos donos do vento, o tempo nos precede e nos perpassa. O tempo nos consome devora a tempo de nos consumirmos e sermos devorados. Tudo além não passa de uma noite escura. E silenciosa.
Tudo a tempo, a seu tempo.
Ataraxia.

quinta-feira, maio 10, 2007

O bode na sala

O pobre homem chegou desesperado diante do guru, contando exasperado seu dilema. “Sou muito infeliz, minha mulher não me entende, meus filhos são desonestos e minhas filhas não são virtuosas. Minha família só me visita para brigar comigo, minha vida é um inferno”. Pacientemente, o guru perguntou-lhe se ele tinha um bode. “Um bode? Tenho, mas por que...” “Coloque o bode na sala”, disse-lhe o guru, “e volte daqui um mês”. Depois de um mês volta o homem exasperado: “aquele bode comeu todo o sofá, as cortinas, sujou o tapete, não agüento o cheiro dele mais”. E o guru: “tire o bode da sala!”
Essa piada infame e sem graça ocorreu-me de novo, dia desses, enquanto eu fumava na janela do quarto, observando o parque. Lá adiante pastavam meus bodes, calma e tranqüilamente. De vez em quando vou dar uma volta pelo parque e encontro com eles, encontro sempre amigável, eles me reconhecem, afago-lhes o pelo sujo, como se fossem animais de estimação. Os bodes pastam no parque perto de casa.
Todo santo dia olho a caixa do correio. Nenhuma carta para mim. Olhei ontem, olho hoje e vou olhar amanhã. Não espero nenhuma carta. Acho que espero que me escrevam. Um dia eu juro que levo aquele monte de correspondência que ninguém recolhe, lá para o meu apartamento, separo e coloco debaixo das respectivas portas. Para saber que a caixa está vazia ou para ver uma carta para mim. Espero que me escrevam uma carta.
Eu achava que o desespero era um substantivo que nomeava uma coisa negativa. Comte-Sponville me disse que não. Desesperar é não esperar, e quem não espera não tem o que temer, não tem a expectativa de se frustrar. Filósofos materialistas franceses! Ensinou-me, então, que não é mal viver sem esperança e sem temor. Mas não terminei o livro, quando terminar, conto mais coisa. Estou entre o Desespero e a Beatitude. Brilhante tratado.
Tem um papa aqui do lado do meu trabalho. Peguei um metrô cheio de devotos e padres. E o livro na minha mão. Bem no trecho: “Pascal ateu. Imaginar sua grandeza, liberto de seus penduricalhos! Que mestre teria sido! O desespero tê-lo-ia curado de sua tristeza e de sua ira molestas. Ele teria perdoado aos homens a inexistência de Deus, em vez de torturá-los com seu temor. E a esperança, como uma esponja de vinagre... A aposta é um suplício. Alguém já viu um jogador feliz? A esperança é o mal deles. Os padres são insuportáveis com suas promessas. Por quem nos tomam? Mercadores de esperança, mercadores de ilusões... ‘O contrário de desesperar é crer’, diz Kierkegaard. Pode-se inverter: o contrário de crer é desesperar.” Os devotos e os padres iam descer no Paraíso. Fechei o livro, não dá para ler no metrô lotado, não tem espaço para um livro aberto, quando se está de pé.
Desci na São Bento, com toda a “segurança” do mundo. Para trabalhar e o papa não me ver.
Trinity, obrigado pela música “Vai”. Os bodes passeiam no parque, pastando. Tem uma garrafa de vodka para você na geladeira. E eu consegui escrever um post curto.

quarta-feira, maio 02, 2007

Sem inspiração

Dizer que venho sempre aqui para dizer nada.
O que é o mesmo que mostrar a nulidade da vida de às vezes quase sempre. Minha mesa de trabalho (a de casa, porque a chamo assim) é o retrato do maior desnorteamento a que estou entregue. De um lado uma pilha de livros, do outro uma pilha de papéis, no meio sempre uma prancheta com papéis para uma idéia nova, mesmo as mais furtivas, os papéis para um desenho e os lápis e canetas. Tudo ali, como se a inspiração viesse sempre quando se quisesse, do nada. E a dura descoberta de que a inspiração vem sempre de algo bem dentro de nós. Nosso arcabouço de leituras do mundo e da realidade. Um feriado inteiro e nada veio. Quatro dias em casa e as únicas idéias aproveitáveis foram lavar e secar e passar roupa, ir ao mercado, depois dormir um pouco. Dar um descanso para a mente que parece querer mesmo só isso: descanso.
Olhar em volta e ver que o tempo passou, que envelheci, que meus sonhos ficaram embotados, meus passos erráticos me levaram a estranhos caminhos, até aqui, onde estou diante do nada, nada que sou e nada que construí.
Não sou artista, desenhista ou pintor, não sou poeta, escritor, nem filósofo e nem projeto de filósofo. Sou esse personagem estranho perdido entre papéis e livros.Agora o que fazer?
Ler os livros e acariciar os papéis com as canetas, numa incompreensível teimosia. Falta luz num túnel que também falta. Falta um norte nesse deserto infinito.
Durante toda a vida há essa especialização horrenda, a de não-ser. E não sendo, segue-se querendo ser menos ainda. Haveria férias para esse mundo. Não quero ser bem informado, saber o que anda passando pela TV, o que deu nos jornais, não quero saber nem a previsão para o tempo de amanhã. Será sempre uma grata surpresa passar calor ou frio, tomar chuva. Não dá para acompanhar a programação do mundo, do lado de cá da janela do escritório.
A verdade é que eu odeio trabalhar. Se há quem goste e crê mesmo que isso dignifica o homem, que trabalhe por mim.
Também acho que vivemos um mundo de faz de conta e nele vamos enganando e sendo enganados. Faz de conta que lutamos por um mundo bem melhor. Pegue o seu crachá ali adiante e vai fazer de conta nesse teatro grotesco. Somos todos felizes e esperançosos, teremos nossa recompensa no céu, a vida é bela, tudo vai acabar bem. Façamos isso, então, nesse horrendo faz de conta.
Sabe o que me importa desse mundo, muitas vezes? Nada! O que o papa veio fazer no Brasil? O que fez ou que está fazendo George Bush? Como anda a guerra no oriente médio? Qual o ministério atual do Lula? Como anda a democracia na América Latina? Será que a China vai mesmo dominar o mundo? Qual é a última do nosso glorioso prefeito? Blá Blá Blá!
Eu já vejo toda a realidade de que necessito pelos olhos de terceiros. Quero a ver a de que não necessito, pelos meus próprios olhos. E necessitar dela.
Vivemos a era da imposição de conhecimento e informação. E é por isso é que somos medidos. Não tenho argumentos para criticar isso e, na falta deles, uso da minha mais fina rabugice: enfiem todo esse mundo no cu.
Agora entendo porque Wittgenstein foi viver numa cabana de pescador em Galway, na costa irlandesa, um pouco antes do fim de sua vida.
E onde ele mandaria a gente enfiar o mundo com todo o conhecimento e a informação nele contidas.