quinta-feira, maio 10, 2007

O bode na sala

O pobre homem chegou desesperado diante do guru, contando exasperado seu dilema. “Sou muito infeliz, minha mulher não me entende, meus filhos são desonestos e minhas filhas não são virtuosas. Minha família só me visita para brigar comigo, minha vida é um inferno”. Pacientemente, o guru perguntou-lhe se ele tinha um bode. “Um bode? Tenho, mas por que...” “Coloque o bode na sala”, disse-lhe o guru, “e volte daqui um mês”. Depois de um mês volta o homem exasperado: “aquele bode comeu todo o sofá, as cortinas, sujou o tapete, não agüento o cheiro dele mais”. E o guru: “tire o bode da sala!”
Essa piada infame e sem graça ocorreu-me de novo, dia desses, enquanto eu fumava na janela do quarto, observando o parque. Lá adiante pastavam meus bodes, calma e tranqüilamente. De vez em quando vou dar uma volta pelo parque e encontro com eles, encontro sempre amigável, eles me reconhecem, afago-lhes o pelo sujo, como se fossem animais de estimação. Os bodes pastam no parque perto de casa.
Todo santo dia olho a caixa do correio. Nenhuma carta para mim. Olhei ontem, olho hoje e vou olhar amanhã. Não espero nenhuma carta. Acho que espero que me escrevam. Um dia eu juro que levo aquele monte de correspondência que ninguém recolhe, lá para o meu apartamento, separo e coloco debaixo das respectivas portas. Para saber que a caixa está vazia ou para ver uma carta para mim. Espero que me escrevam uma carta.
Eu achava que o desespero era um substantivo que nomeava uma coisa negativa. Comte-Sponville me disse que não. Desesperar é não esperar, e quem não espera não tem o que temer, não tem a expectativa de se frustrar. Filósofos materialistas franceses! Ensinou-me, então, que não é mal viver sem esperança e sem temor. Mas não terminei o livro, quando terminar, conto mais coisa. Estou entre o Desespero e a Beatitude. Brilhante tratado.
Tem um papa aqui do lado do meu trabalho. Peguei um metrô cheio de devotos e padres. E o livro na minha mão. Bem no trecho: “Pascal ateu. Imaginar sua grandeza, liberto de seus penduricalhos! Que mestre teria sido! O desespero tê-lo-ia curado de sua tristeza e de sua ira molestas. Ele teria perdoado aos homens a inexistência de Deus, em vez de torturá-los com seu temor. E a esperança, como uma esponja de vinagre... A aposta é um suplício. Alguém já viu um jogador feliz? A esperança é o mal deles. Os padres são insuportáveis com suas promessas. Por quem nos tomam? Mercadores de esperança, mercadores de ilusões... ‘O contrário de desesperar é crer’, diz Kierkegaard. Pode-se inverter: o contrário de crer é desesperar.” Os devotos e os padres iam descer no Paraíso. Fechei o livro, não dá para ler no metrô lotado, não tem espaço para um livro aberto, quando se está de pé.
Desci na São Bento, com toda a “segurança” do mundo. Para trabalhar e o papa não me ver.
Trinity, obrigado pela música “Vai”. Os bodes passeiam no parque, pastando. Tem uma garrafa de vodka para você na geladeira. E eu consegui escrever um post curto.

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