segunda-feira, maio 21, 2007

Um monte de coisa tudo junto

Um monte de coisa tudo junto. Assim mesmo que escrevo: uma carta depois de um telefonema, antes disso, no sábado, presente na mudança de uma amiga para o Cento, bem aqui perto do trabalho. Uma alegria indescritível. Meus desenhos no final de semana, pincéis e tintas, finalmente, a leitura de mais um livro do Cortázar, “Os prêmios”, ainda as idéias de Comte-Sponville, um texto do Gonçalo Palácios, e quase li Nietzsche, para uma breve e futura investida contra os Adoradores de Nietzsche, ou Devotos, ou dos bebês-chorões que têm medo do Bicho-Papão de fartos bigodes, ele, sempre ele, Friedrich Wilhelm Nietzsche. Ai que medo! Quanta fé tem esse povo para temer perde-la?
Então do começo, o Bicho-Papão Bigodudo. Costume que tenho de ler alguns blogs de que gosto, e o impulso que não contive de um comentário, uma resposta ao comentário, eu o vilão atacando a presa indefesa, eu o perseguidor, o “ensinador” de coisas fáceis. Penso que um blog aberto a comentários parece um convite a dizer alguma coisa. Se me enganei e ofendi o autor, que ele desconsidere a intromissão primeira e permita essa segunda (e última, se for o caso), somente para esclarecer esse ponto. A minha resposta a resposta ao meu comentário seria mais ou menos essa, que redigi e resolvi manter no meu próprio campo nessa batalha ingênua de fazer de conta que todos temos conteúdo:

A devoção está na escolha do nome: Nietzsche parece tão profundo que não vou descer tanto e tão elevado que nunca vou me elevar tanto. Sou ninguém...
É difícil falar de filosofia, com filósofos. A gente sempre parece arrogante.
Somos todos platônicos? Academicamente platônicos? Tudo tão distante lá em cima e nós diante da impossível e irrealizável ascese.
O amor pode ser difícil, sim. Isso quer dizer que não pode ser fácil?
Ou é um Amor-em-Si tão inatingível? Não poderia existir também o oposto de tudo o que sente sobre o amor?
Uma pessoa boa demais para mim... todas parecem. E isso é tão bom!
Sobre os pensadores, grandes e pequenos, eu diria para sentirmo-nos grandes com os grandes e pequenos com os pequenos. Mas isso poderia parecer mais uma frase arrogante metida a ensinar alguma coisa a alguém, sempre. E eu só queria conversar.
No reino dos sentimentos ilógicos, acaso também não examinei a questão?

Fui buscar, então, no texto de Gonçalo Palácios, a fundamentação excelente para a crítica ao academicismo. Que leiam o livro “Como fazer Filosofia sem Ser Grego, estar Morto ou ser Gênio”. Três anos de estudos de filosofia e uma única vez um professor pediu para abrir um livro, escolher um trecho, um tema e dizer o que pensamos do que estava escrito. O autor era Kant, e o livro, a famigerada e temida “Crítica da Razão Pura”. Escolhi o trecho e disse o que achava. Excelente exercício de pensamento. O professor era o Robinson, a quem ainda não agradeci essa oportunidade inédita. De resto, sempre pediram para expressar o que o filósofo em questão dizia. Papagaios repetidores é o que fomos formados, graduados em comentários de comentaristas de fulano de tal, isso é o que somos. Faço uma exceção ainda à melhor de nossas professoras, a Glória, que sempre soube recortar temas e vários autores e sempre privilegiou o que ela chamava de “problematização” do texto em questão. Glória só existe uma. E ela não tem e nunca teve medo do Bicho-Papão Bigodudo, e nem Devoção.
Sábado, ex-moradora de Poá, atual moradora do Centro, tão perto de tudo. Depois de sua mudança, vindo da direção do Teatro Municipal para a Praça Patriarca, pisando o Viaduto do Chá, lembrei-me de uma noite ter passeado com ela por essa paisagem, da qual ela disse que gostava muito. Agora ela mora ali do lado, pode usufruir dela à vontade. E eu sou um tonto que, apesar de não ter demonstrado, fiquei mais feliz com a felicidade dela, do que com a minha própria. Eu só não sei por que não se desmonta uma cama para subir três andares.
O livro de Cortazar, “Os Prêmios”, várias pessoas ganham numa loteria uma viagem de barco. Alguma coisa pode acontecer, porque o suspense insinua-se em cada linha. Cortazar une a construção excelente dos personagens, numa trama sempre insólita. Leiam o “Jogo da Amarelinha”, “As Armas Secretas”, “Bestiário”, “Prosa do Observatório” e o simpático “História de Cronópios e Famas”. Cortázar é um contista imprescindível.
Acho que ela não vem para as férias. No último telefonema, no domingo, disse isso e me deixou com todas as pulgas atrás da orelha. Algo na resposta inquietou-me. As palavras têm um significado bastante específico aos apaixonados, pena que não seja assim com os filósofos e pretensos filósofos, que sempre buscam o significado exato que as palavras não têm. Ou que teriam se não tivessem o significado que têm. Ela disse que talvez não dê para vir, se ficar de dependência em alguma matéria, tiver que estudar, e tudo o mais. Não foi isso que eu perguntei. Bastava ela dizer que quer muito vir, mas teme problemas que a impeçam. Estudante muito aplicada e disciplinada. Eu fico imaginando como interrompe suas leituras para comer alguma coisa, ir ao banheiro, dormir, tomar banho. Se é que interrompe. Essa é minha birra da filosofia tornada obscura e intangível, precisamos deixar de viver para filosofar, não podemos ser normais, somos seres que pairam num plano inconcebível. Tudo o mais de corriqueiro na vida serve para atrapalhar: viver, ter prazer, amar alguém, sentir saudade, pensar em outra coisa. Então não vou ter nunca essa disciplina. Nunca vou ser filósofo. Gosto de desperdiçar bastante o meu tempo, comigo mesmo. E com alguma coisa em volta. Odeio simplesmente esse temor acadêmico, esse terror "comentariológico", essa absurda ignorância a que nos reduz os mestres e professores doutores em filosofia. Não há nada mais absurdamente besta do que escrever para ninguém entender. Ai que medo! Estamos fadados à miséria do mundo sensível, nunca atingiremos o absoluto do mundo inteligível. Que merda que somos. Que merda fazem de nós.
Enfim, que faltou dizer? Quanto medo temos, de tudo, de nós mesmos! Quão rasteiros somos, como precisamos sempre de um Guru que nos diga Rá, Ba, Tá, Foda-se. Nosso mantra devia ser Ai! Ai! Ai! Ai! O mantra do medo.
Sobre amor e felicidade, essas coisas que não existem, tanto que sempre nos parece preciso inventa-las, assim como inventamos deus. Por medo da escuridão e do nada, nos inventamos sóis, e preenchemos nosso vazio com algo tão mais pobre do que o vazio. (Obrigado, Comte-Sponville, não sou seu devoto, mas você escreve como um cara que toma uma cerveja comigo e tem um papo muito bom).
Platão sabia sobre essa necessidade de inventar as coisas de que precisamos, para sairmos desse "buraco-caverna escuro e vazio”. Inventou um mundo inacessível, para que somente os puros do logos pudessem atingir. E Nietzsche, se não tivesse ficado doente e tivesse comido a Lou Salomé, será que escreveria tão bons aforismos?
Dou minha cara a tapa. Mas nunca ofereço a outra face. Não sou mais cristão.

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