quarta-feira, setembro 17, 2008

Outra reflexão urbana

É bom estar de volta em casa, de volta a esta tão polêmica odiada e amada cidade. Um pouco de frio – sinto falta da garoa -, um quê de anonimato em meio à multidão, aqueles mesmos rostos desfilando suas histórias intangíveis, desafio maior para qualquer tipo de imaginação. Aqui posso me sentir sozinho à vontade, rodeado de gente.
A segunda-feira tem um ar de porre, de ressaca, de humor alterado. Pelo menos é o dia em que ponho para fora todo o lixo, o lixo de todo o fim de semana, quando não o lixo da semana toda. E é dia de devolver os filmes à locadora. Segunda-feira é sempre o começo de nada.
A noite tem um céu nublado. Saio à rua, vou à locadora, os filmes. A noite parece silenciosa em respeito a minha passagem. Eu pareço flutuar em vez de andar. As ruas do bairro parecem me conhecer mais do que eu a elas. As luzes dos postes esboçam um sorriso irônico, como se olhassem quem já tivesse morrido e teimasse em andar por ali.
Vejo um Ford 1930 estacionado em frente ao mercado, placa de Mauá, DJL 1930. Parece posto ali de propósito, não para ser visto com meus olhos, mas com a imaginação. Para me causar estranheza. O passado materializado num automóvel, insinuando como que uma espécie de resistência diante do futuro, ainda que este me pareça um tanto incerto.
Sentada na calçada, a mulher que recolhe latas de alumínio faz palavras cruzadas. Atravesso a rua no cruzamento, e o Ford 1930 ainda olha para mim, com cara de sorrir ironicamente...
O bairro convive comigo há pouco mais de vinte anos. Conheço cada calçada, cada buraco no asfalto e cada árvore. As árvores parecem jazer sufocadas, envoltas de tanto cimento. Com o pensamento, imaginando, vou tirando todo este cimento das calçadas, o asfalto das ruas, os muros e as grades das casas e dos prédios, tanto ferro e tanto vidro, tanta pedra em cativeiro, as árvores não têm mais a terra.
Na porta da locadora, um Porsche de quinhentos mil reais. O dono dele e eu somos sócios dos mesmos filmes.
Volto pelo mesmo caminho que vim, o contrário de uma subida é uma descida. Ainda vou arrancando ferro e cimento, asfalto, as guias e as sarjetas. Eu preciso de terra...
A luz acesa da sala, por um segundo imaginei que você estivesse aqui, que tinha vindo... ensaio diálogos que vou inventando, para depois esquecer. Imagino cenas que nunca vou viver.
Aquele violão adormecido no canto do quarto, quatrocentos livros na estante, os filmes, as pastas de desenho, os rascunhos de poemas que nem sei mais quando vou digitar... isso tudo sou eu, que não sei como usar.
E essas palavras... esse tic-tac incessante no cérebro. Escreve, escreve! Escreve e não vive, assim está bom... porque se vivesse, não escreveria.
Seriam nossos desejos esses sonhos incompletos, pedaços de sonhos que juntos fariam uma história de verdade? Nossos sonhos seriam desses desejos repletos?
Pseudo-poeta é puta que o pariu... “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...”
Não é minha vocação ser pequeno demais para caber em suas ilusões racionalistas. E nem grande demais para lhe cobrir com minha sombra. Eu e você: a diferença entre nós é que você pensa que sabe o que é e eu sei que não sou. A sua vida não é nem uma saga, nada tem de glorioso ou heróico. E minha vida não é uma nota de rodapé. A sua vida é tão igual a minha e a minha tão igual a sua. A sua história é nada e a minha não é tudo. São só histórias... histórias que não modificam em nada o curso causal da contingência fenomênica de que se compõe a (des) ordenação do universo.
Ensaio discursos, profiro e escrevo discursos, imagino discursos que se referem a essas nossas ilusões, a nossas máscaras, nossas fantasias, às nossas hipóteses existenciais e às nossas incertezas mais cruciais.
Vê? É noite e há silêncio. Estamos sós do lado de cá do que podemos chamar de realidade, que é o avesso dessa dança da precisão do acaso. Vê? Nossa solidão é cumulada de uma tristeza latejante, que estranhamente brota dessa estranha saudade de tudo aquilo que não somos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bem vindo a São Paulo de novo. De volta ao amável caos, à solidão urbana em meio à multidão!